Texto de Opinião da Resistência Popular Comunitária | Foto em destaque: João Pedro Tavares
Em Porto Alegre, o problema histórico da falta de água na periferia se agrava a cada verão que passa, principalmente para quem mora nas áreas mais altas da cidade ou encostas de morro. É o caso do Morro Santana, o ponto mais alto de Porto Alegre, onde a população tem vivido em clima de desespero nos últimos dias. Desde novembro, a comunidade vem sofrendo com a falta de água e cobrando respostas do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE), que sempre dá desculpas esfarrapadas. Nas ultimas semanas a coisa ficou insustentável, a falta de água se tornou diária… Em alguns pontos, a água sobe o morro por algumas horas, somente de madrugada e quando amanhece já foi embora dos canos. Em outros, ela só chega através de caminhões pipa que abastecem algumas caixas d’água comunitárias, pois não há infraestrutura básica de abastecimento. O povo acorda para trabalhar e não tem um pingo na torneira e quando volta para casa, cansado, a situação segue a mesma. Alguns moradores relatam que estão precisando tomar banho no local de trabalho.
A situação, que já estava insustentável, se agravou ainda mais com a chegada do coronavírus em Porto Alegre na última semana. O governo recomenda não sair de casa, higienizar as mãos e evitar aglomerações com mais de 20 pessoas, mas…
Como se hidratar e lavar as mãos corretamente sem um pingo de água na torneira?
Como evitar sair de casa quando o único ganha pão da família é uma faxina ou uma corrida de aplicativo? Os boletos também vão ser adiados?
Quantas pessoas cabem num ônibus superlotado e qual o risco de contaminação?
As aulas foram suspensas… e agora, sem a merenda, quem vai alimentar as crianças?
E no pior do casos, se estivermos com os sintomas… onde procurar ajuda se os postos de saúde da comunidade foram fechados?
Para os mais pobres, enfrentar uma pandemia sem assistência é como combater fogo sem água.
Mas o título desse texto não é mera figura de linguagem.
Tão comum quanto a falta da água nessa época do ano são as queimadas no Morro Santana. A vegetação fica tão seca que basta um caco de vidro ou uma bituca de cigarro mal apagada pro morro começar a queimar. Só esse ano, já enfrentamos pelo menos 3 incêndios no topo do morro, que chegam cada vez mais perto das casas.
A cada ano que passa, sentimos na pele as mudanças climáticas do planeta, com verões cada vez mais quentes. E não é nenhuma novidade que quem mais sofre com os desastres ambientais também é a população pobre e desassistida. O alto custo de vida, o desemprego e o sucateamento da assistência social obriga os mais precarizados a morarem em locais de risco. É por isso que vemos cada vez mais moradias na encosta do morro, lugar onde a água não chega mas o fogo queima. Sem água, sem saneamento básico e com uma coleta de lixo precária, temos cada vez mais acúmulo de resíduos nessas áreas, potencializando tanto as queimadas quanto a proliferação de doenças. É só lembrarmos do surto de Leishmaniose Visceral Humana, que fez três vítimas no Morro Santana em 2017, sendo uma delas um bebê recém nascido e outra uma senhora de 81 anos. Esta doença é transmitida pelo mosquito-palha, que se prolifera em meio ao lixo em áreas sem saneamento e desmatadas.
Na noite do ultimo sábado (14), um incêndio de grandes proporções, como nunca antes visto, tomou conta do morro. Ironicamente, um dia após a comunidade ter feito uma manifestação na Avenida Protásio Alves reclamando da falta de água. O fogo começou no topo do morro e em meia hora já tinha se espalhado por toda encosta e estava chegando nos pátios das casas. Os bombeiros demoraram a chegar, e quando chegaram, não conseguiam alcançar os focos de incêndio próximos às casas. Foi graças à solidariedade do povo, que se uniu para combater o incêndio da forma que foi possível, com galhos, pás e o que mais estivesse à mão – pois nem água tinha – que o fogo foi apagado. Ninguém ficou ferido gravemente, embora alguns moradores tenham passado mal, tendo que ficar em repouso pela quantidade de fumaça inalada.
Nesse cenário apocalíptico, vemos que só com muita solidariedade que o povo pode se salvar. Precisamos nos unir e lutar por uma vida digna! Fechar avenidas para exigir nossos direitos à água, moradia, saneamento básico, saúde e transporte público de qualidade. Mas não podemos ficar esperando dos governantes. É urgente nos unirmos em mutirões para auxiliar famílias necessitadas! Participar das associações de bairro e pensar em soluções coletivas para nossos problemas, criar brigadas comunitárias de combate ao incêndio, bancos de alimentos para os desempregados e campanhas de solidariedade entre as comunidades vizinhas. É o momento de romper com o individualismo e construir novas relações humanas, baseadas no apoio mútuo, ombro a ombro, no coletivo. Só o povo salva o povo!
Fotos: A Voz do Morro e Coletivo Visão Periférica