Qual a diferença entre o Oscar e o Festival de Cannes?

No próximo dia 9 de fevereiro ocorre mais uma edição do Oscar, maior premiação de cinema do mundo. O Festival de Cannes, o festival de cinema mais famoso do mundo, acontece sempre mais cedo, ali por maio do ano anterior. A ideia deste texto é expor em linhas gerais as diferenças entre esses dois que são os momentos em que o cinema é mais debatido a nível internacional.

            Vamos começar pelos itálicos que marquei no primeiro parágrafo: o Oscar é uma premiação, do inglês “Academy Awards”, literalmente ‘Prêmio da Academia’. Portanto, se trata de uma competição pelos prêmios, desde os técnicos, como fotografia, montagem, mixagem de som, por exemplo, até os mais artísticos, digamos assim, como melhor filme, direção, melhor filme em língua estrangeira, ator e atriz, etc. (Isto já gerou tensões ao longo da premiação, esnobada, por exemplo, por Woody Allen, que a critica por estimular a competição entre artistas.) Seu pressuposto é premiar os melhores do ano, ou assim é como se apresenta implicitamente a academia estadunidense, que naturalmente molda a premiação de acordo com sua ótica estadunidense. Não é á toa o prêmio de filme em língua estrangeira, vulgarmente chamado somente de “filme estrangeiro” (estrangeiro porque o local é o inglês). Este é o pressuposto central para o Oscar: trata-se de um festival dos EUA que premiará filmes estadunidenses, que julgam ser os melhores. (Um bom exercício é comparar anualmente os vencedores das categorias de melhor filme, que é sempre em inglês, e o em língua estrangeira – tenho para mim que quase sempre os estrangeiros são melhores).

            Já o Festival de Cannes, que até 2002 (o festival é de 1946, dezessete anos mais novo que o Oscar, que é de 1929) era chamado de “Festival international du film”, em tradução literal ‘Festival internacional do filme’. O cosmopolitismo está no nome do evento, “internacional”, demonstrando então que seu pressuposto é totalmente contrário ao do Oscar: se lá a categoria de melhor filme já é afunilada por uma questão ideológica de nacionalismo em detrimento do que é exógeno, o Festival de Cannes se propõe como um lugar plural, polifônico (claro que há limites e é interessante ver quantos filmes americanos e africanos, por exemplo, conquistaram a Palma de Ouro, maior prêmio do festival). Outra coisa que precisamos sinalar para seguir é que Cannes é um festival, não uma premiação, embora também entregue prêmios. Há na ideia de um “festival de cinema” que haja mostras de filmes, que haja interação entre o público do evento, que o cinema fervilhe sendo pauta de um debate constante. Veremos melhor isso quando explorarmos quem são as pessoas que votam. O Festival de Cannes, por exemplo, tem mostra não competitiva, se mostrando como um profusor de debate e não apenas como um agente que distribui prêmios.

            Vista a diferença elementar entre os dois, vejamos quem dá as cartas. No Oscar os filmes são indicados pela Academia, composta creio eu que majoritariamente por críticos de cinema (estadunidenses) e talvez por produtores de filmes. Para a categoria de filme em língua estrangeira o responsável por candidatar seu filme é seu país de origem. Uma coisa já seria estranha porque delega primeiro ao país a tarefa de indicar o filme x  ou y para a premiação sem necessariamente atentar para um juízo crítico e estético nessa escolha. Para isso seria preciso que críticos da própria Academia elegessem os filmes, o que não acontece. A Academia só escolhe depois de uma primeira peneira. Onde está o outro problema? Temos visto ultimamente o avanço da direita conservadora ao redor do mundo. No Brasil não é diferente, e quando do impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e posse interina de Michel Temer em uma virada conservadora, vimos um claro boicote do então atual governo ao filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, que protestou, justamente no Festival de Cannes, sobre o golpe parlamentar levado a cabo no Congresso nacional. Questões políticas e ideológicas dos governos interferem diretamente na possibilidade de indicação e vitória de filmes, o que não tem o menor cabimento. O Festival de Cannes, por ser um festival internacional conforme indicado em seu nome até o início do segundo milênio, não passa por esse problema, cuja constituição ímpar e singular dos filmes em competição faz muito mais sentido para o cinema enquanto sétima arte.

Os prêmios principais

            No Oscar, como já indicado, são pessoas ligadas à crítica de cinema as aptas a voto. Se só tem gente estadunidense lá, ou sua maioria, isto eu não sei, é óbvio que não há quase nada de matiz para a escolha. Além disso, são pessoas de uma única categoria – críticos de cinema – o que não permite uma visada de olhar diferente, uma sensibilidade outra, além, claro, de se tratar de gente do mesmo país que pensa mais ou menos igual, e mesmo se discordam, têm no nacionalismo norteamericano um ponto forte de convergência. Esse grupo seleto vota para todas as categorias. Em Cannes há três prêmios importantes: o primeiro dele, a Palma de Ouro, o Grande Prêmio (“Grand prix” em francês) e o Prêmio do Júri. Me faltam conhecimentos exatos para dizer quem vota nos dois últimos: creio que o júri seja formado por críticos de cinema. Mas a principal diferença entre Cannes e Oscar neste quesito está na comparação de seus prêmios principais. A Palma de Ouro é decidida por uma banca de jurados formados por artistas do cinema, isto que muda tudo: quando vemos diretores, atrizes (creio que roteiristas também) decidindo, temos gente de dentro votando, trazendo olhares diversos, com sensibilidade artística, atentando a diferentes partes do filme, como roteiro, direção, atuações, etc. A banca tem um presidente, ou dois, como foi no caso dos irmãos Coen há alguns anos, e este presidente tem poder de voto acima dos outros integrantes, embora o resultado final sempre passe por amplo debate interno. É claro que essas duas visões diferentes de quem pode votar interfere no resultado final, que impulsiona carreiras e enterra outras. Vencer ou não esses prêmios pode significar um bom ou mau caminho na sétima arte, possibilitando ou não uma acumulação estética importante para os artistas implicados na situação.

Quem pode concorrer?

            No Oscar é obrigatório que o filme, para ser indicado, tenha passado por salas de cinema. Isso parece meio óbvio, mas não é por duas razões: a primeira é que muitos filmes “estrangeiros” não têm o apelo midiático e comercial para ser exibidos nas telonas estadunidenses, o que acaba bloqueando a indicação, ou mesmo se indicados, prejudica a ampla difusão do filme para que os críticos tenham acesso para poderem votar. Em Cannes, por se tratar de um festival, é um pouco diferente: os filmes, para participarem do evento, têm que estrear em Cannes; não é permitido concorrer se o filme não for inédito.

Prêmios e vencedores

            Para encerrar este texto, vamos ver e comentar rapidamente os dois últimos vencedores no Oscar e em Cannes. Comecemos por este último. O vencedor de 2019 em Cannes foi Parasita, filme que está fortemente cotado para vencer o Oscar de melhor filme em língua estrangeira. Seria a segunda vez na história que um filme vence a Palma de Ouro e depois o prêmio da Academia – a primeira vez que isto aconteceu foi com Amour, filme de 2012 de Michel Haneke. Parasita é um filme estranho, um pouco bizarro, violento e bem construído, desde o roteiro até a montagem, explicitando as duas pontas do capitalismo, os ricos e os pobres, sugerindo uma ambiguidade interessante pelo título: quem são os parasitas? (Devo a meu professor Guto Leite este questionamento.) Não podemos falar do Oscar porque, embora premie filmes de 2019, o evento é em 2020 e ainda não ocorreu. 1917 está bem cotado, um filme de guerra simulando um longo plano-sequencia, que aliás é muito bem executado pelo diretor Sam Mendes e pelo diretor de fotografia Roger Deakins, o mesmo de Onde os fracos não têm vez.

            Em 2018 quem venceu em Cannes foi outro oriental, dessa vez japonês (Parasita é sul-coreano): Assunto de família. Grande filme de Koreeda, diretor experiente e autor da obra-prima Boneca inflável. O longa vencedor trata de uma família fora dos padrões e que, pelo cotidiano de pobreza e carestia, se vira com pequenos delitos. Ao final, como Parasita, há o que se chama de plot twist, uma grande virada da narrativa, uma grande surpresa, etc. (Talvez seja mais sutil que isso.) Já no Oscar o vencedor foi o aborrecido Green book, filme piegas, sem graça e conservador, além de clichê, que conta a história de um negro rico cujo empregado é branco e pobre, além de racista, claro, e depois do road movie o personagem branco (aqui sim uma coisa boa, interpretado muito bem por Viggo Mortensen) deixa de ser racista e ambos viram amigos. Uma palhaçada.

            Último comentário: o Oscar premia primeiro os produtores do filme, produção executiva e tal, e o diretor. Muitas vezes vemos subir ao palco cinco ou seis pessoas, porque o diretor é um, os produtores são quatro, cinco. Que concepção de filme vemos aqui? A produção historicamente é aquela que se preocupa com os lucros, com a vendagem do filme. O diretor é quem concebe a obra, ajusta sua forma em detalhes, pensa no todo ou em parte os elementos constitutivos do filme (Ingmar Bergman era um que sabia de todos os aspectos de sua obra, desde o roteiro à fotografia, da gravação do som à atuação do figurante). O Oscar parece privilegiar o papel executivo da produção, o que não faz nenhum sentido se o centro da premiação é, ou deveria ser, o cinema. Claro que faz sentido, isso é uma provocação para pensar as diferenças que estou me propondo a analisar. Em Cannes o prêmio vai, obviamente, para o diretor, a pessoa mais importante na feitura da obra. Há uma curiosidade interessante em relação a isso: o único filme na história do Festival de Cannes que premiou com a Palma de Ouro não somente a direção foi Azul é a cor mais quente, de Abdellatif Kechiche, quando Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos receberam também por sua atuação. O filme gerou polêmica. Minha opinião em síntese: muito bom filme com cenas desnecessárias devido ao machismo estrutural.

            Por aqui encerramos esse pequeno passeio pelos dois dos maiores momentos do cinema internacionalmente falando. Deu para perceber que prefiro o Festival de Cannes, acho que ele trata o cinema da forma como deveria (um pouco, claro, porque ainda é francês), ou seja, encarando a arte como plural, diversa, às vezes tensa, violenta, mas que segue representando sempre algum elemento presente de nossa vida. Quando bem formalizada, temos um grande filme e o assistimos com prazer, antes de mais nada fruindo a arte.

Rodrigo Mendes

Foto da capa: https://www.google.com/search?q=oscar+e+cannes&rlz=1C1CHBD_pt-PTBR881BR881&sxsrf=ACYBGNQoPfcEsqEUDz0PxX1vy5SsJlEwFg:1580410563106&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwiT_NmRgKznAhXLLLkGHUboB0YQ_AUoAnoECAwQBA&biw=1920&bih=937#imgrc=wvaoRLhwlMRHBM: