EaD não é a solução durante a pandemia: precarização do ensino e o abismo da desigualdade

Por Resistência Popular Estudantil – Floripa

Este é o segundo texto de uma série sobre a Educação a Distância (EaD). No primeiro, relatamos a origem e a história da EaD, analisando o tecnicismo e a crença no progresso tecnológico por trás do otimismo atual, além dos impactos e implicações de migrar nossas salas de aula para infraestruturas privadas (como a da Google, uma mega-empresa que vive de coletar e vender nossos dados). Hoje, falaremos sobre os resultados de aderir à EaD em nossas instituições de ensino, como a precarização do trabalho, redução da qualidade do ensino e aprofundamento do abismo de desigualdade entre as escolas privadas e a juventude pobre.

Para onde a EaD tem levado

O avanço da EaD no ensino superior mostra-se mais acentuado quando o assunto é formação docente. Cursos de Pedagogia e Licenciaturas recebem o dobro de matrículas em comparação a demais áreas do ensino superior, e a rede privada é a que mais forma professoras hoje, mais da metade delas na modalidade a distância. Muitos desses cursos oferecem formação rápida para ingresso acelerado no mercado de trabalho, que para estas profissionais já se apresenta bastante precarizado, e vem consolidando uma indústria de cursos online para baratear os custos de formação.

O que se percebe é um sistema educacional que se torna cada dia mais perverso. O mercado forma professoras em EaD de modo apressado e pouco crítico, gestoras se aproveitam do mesmo discurso hegemônico de uso de tecnologias digitais como resposta para demandas atuais de ensino, e as trabalhadoras da educação acabam impedidas de realizar um processo educativo que considere cada contexto e realidade social, além de abordar outras dimensões para além da reprodução conteudista.

Trabalhando muito e ganhando pouco por isso, essas profissionais vêem seu trabalho se esvaziar de sentido, o que se reflete nas estudantes, que não vêem nos conhecimentos apresentados formas de lidar com situações de sofrimento e de transformar suas vidas. Isso também resulta em futuras profissionais reprodutoras de um sistema que as explora. A profissão passa a ser pouco desejada e buscada apenas pela facilidade de formação e ingresso no mercado de trabalho, mas a precarização do serviço e da formação faz com que sua ação pedagógica esteja cada vez mais afastada daquela que é realmente necessária.

Isso sem falar na realidade brasileira de desobrigação de formação pedagógica para atuação docente em instituições privadas, onde, para lecionar cursos EaD, são desejáveis apenas características como “inovação”, “adaptação”, “inteligência pessoal e emocional”, entre outras que fogem aos aspectos relacionais e de contexto, tão essenciais para a atuação profissional docente coerente e comprometida com os sujeitos da ação pedagógica. O cenário que se mostra é o de professoras com formação duvidosa trabalhando em condições precárias e (de)formando pessoas para o mercado de trabalho. Onde foi parar a democratização da educação?

A EaD como solução de emergência

Utilizada para tentar manter uma “normalidade” diante da pandemia, a EaD tem sido um desastre em vários níveis. Em vários casos, ela se resume a “atividades” sem contexto que estudantes deveriam desenvolver de forma “autônoma”. Em outros, ela se trata das mesmas aulas de sempre, só que transmitidas ao vivo. O problema é que estes últimos casos só costumam ocorrer onde há recursos, sejam eles financeiros, humanos e/ou tecnológicos. No caso do sistema público de educação, a falta de recursos não está só do lado da infrastrutura pública sucateada, mas também das próprias estudantes, que muitas vezes não têm acesso à internet ou, se têm, é precário ou exclusivamente através de celulares (que estão longe de serem dispositivos ideais para estudar). Muitas trabalhadoras da educação com frequência não têm treinamento adequado para o uso dessas ferramentas, e agora estão sendo cobradas para que as aprendam a toque de caixa.

Pode até parecer que com “recursos” a EaD poderia substituir a educação presencial. Mas este não é o caso. Muitas universidades citam aulas em laboratório como situações em que é impeditivo realizar educação a distância; na educação básica, o exemplo mais vívido talvez seja o da educação física. Não dá para abstrair os corpos dos sujeitos da educação como se fossem arquivos em uma “nuvem” digital, especialmente no contexto em que vivemos. Assim como Restaurantes Universitários fornecem alimentação adequada e acessível, imprescindível para a permanência de tantas estudantes, sabe-se o papel essencial das merendas escolares para muitas estudantes e suas famílias. Estudantes que, aliás, sentem o estresse de ver no domicílio uma prisão, a ansiedade de ouvir estatísticas obituárias cada vez maiores todos os dias, o peso de perder familiares, de lidar com o medo do endividamento, do despejo, da fome. Há ainda algumas cujas casas sequer são lares, mas ambientes de abuso e falta de perspectiva em vez de acolhimento.

Dessa forma, a manutenção das aulas online em uma falsa normalidade faz mais do que precarizar o ensino. Ela aprofunda o abismo da desigualdade existente por toda a falta de condições materiais na maioria dos lares do país. Mais do que os conteúdos, em si, é o convívio com a estrutura da escola e com as suas trabalhadoras que permite enfrentar muitas dessas ausências, conhecer as dificuldades de cada pessoa, pensar em acessibilidade, em oferecer vislumbres de um mundo mais amplo do que aquele visto dentro de casa. Ao contrário do empresariado da educação, que precisa manter as coisas em funcionamento porque só estão pensando na garantia de seus lucros, nós dizemos que não: nenhuma criança e jovem pode ser deixada para trás!

O que significa não deixá-las para trás? No próximo texto, discutiremos a concepção de educação por trás da EaD e o que acreditamos ser o papel das escolas e universidades em meio à pandemia, na defesa de uma vida digna para todas. Os textos da série serão publicados, um por dia, aqui no Repórter Popular.