EaD não é a solução durante a pandemia: o sentido da educação e a luta por uma vida digna

Por Resistência Popular Estudantil – Floripa

Este é o terceiro texto de uma série sobre a Educação a Distância (EaD). No primeiro, relatamos a origem e a história da EaD, analisando o tecnicismo e a crença no progresso tecnológico por trás do otimismo atual, além dos impactos e implicações de migrar nossas salas de aula para infraestruturas privadas (como a da Google, uma mega-empresa que vive de coletar e vender nossos dados). No segundo, discutimos consequências da adesão à EaD em nossas instituições de ensino, como a precarização do trabalho, redução da qualidade do ensino e aprofundamento do abismo de desigualdade entre as escolas privadas e a juventude pobre. Nesta parte final, discutimos a concepção de educação por trás da EaD e o que acreditamos ser o papel das escolas e universidades em meio à pandemia, na defesa de uma vida digna para todas.

“Educação” a distância?

A partir do que foi discutido em nosso primeiro texto, sobre a história da EaD, é possível entender por que ela já foi celebrada como “democratização”. O que ela faz ao levar conhecimento técnico onde este é de difícil acesso é certamente louvável. Ela ultrapassa não só barreiras geográficas como as de outros tipos, possibilitando que muitas trabalhadoras, mesmo em centros urbanos, consigam obter educação formal e melhorar suas vidas. Mas é realmente a “educação” que a EaD democratiza?

Comparar as cartas de Paulo do século I à EaD é mais que tentar naturalizar esta última: é dizer que evangelizar é o mesmo que educar. Mas educar é muito mais: é preparar para a vida, o que vale tanto para crianças quanto para a educação que buscam pessoas adultas. A vida não é só o que fazemos com corpos e objetos, mas também umas com as outras, enquanto sociedade. Toda educação ensina alguma coisa “técnica”, mas também socializa é um modelo prático de relações entre as pessoas.

Evangelizar é propagar uma ideia pronta, mas a sociedade que queremos é uma em que as pessoas convivam entre diferentes perspectivas. Para isso é preciso aprender a ouvir, analisar, dialogar, argumentar e chegar a acordos. Não estamos falando só de educação como fenômeno político – como algo que fomenta o convívio entre as pessoas, que embasa a democracia – mas da própria produção de conhecimento científico. Conhecimento de verdade é o que se põe à prova, que pode ser e é criticado. A educação exige debate, desafio; (con)vivências que nos causem estranhamento, seja na física ou no estudo de línguas, na biologia, na história. Na educação básica, trata-se de ampliar os horizontes de quem, de outro modo, poderia crescer confinada aos muros de uma tradição conformista; na superior, de produzir e transmitir não só as conclusões às quais outras pessoas já chegaram, mas o próprio raciocínio pra chegar a novas conclusões. Enfatizamos que o aspecto coletivo e social deste processo é uma de suas características mais essenciais. Não importa o quanto textos, vídeos e aparelhos estejam na mediação do processo de aprendizado, este se dá pela interação humana acima de tudo.

É isto que entende por educação quem defende a Educação a Distância e a “democratização” com ela promovida? Provavelmente não. A EaD pode ser fundamental para democratizar a “instrução”, tanto quanto o Youtube permite que pessoas possam aprender a consertar seus próprios computadores ou o SciHub leva artigos acadêmicos para pessoas que não poderiam pagar por eles talvez daí a tendência ao anacronismo que vimos no primeiro texto: qualquer transmissão de “dados” à distância pode ser reinterpretada como EaD! É obviamente benéfico que certos tipos de instrução cheguem onde faz falta, mas isso não substitui um espaço coletivo dedicado à aprendizagem. A EaD pode democratizar também as “credenciais”, isto é, diplomas e certificados que abrem portas num mercado de trabalho competitivo. Porém, esse “credencialismo” – em que remuneração tem mais a ver com diferenças socioculturais entre classess do que com a utilidade e a onerosidade do trabalho – também precisa ser criticado, especialmente porque afunda a classe trabalhadora em dívidas sem lhes oferecer a real experiência de uma educação superior como local de debate crítico, formação, de produção do conhecimento e de extensão a partir das demandas da sociedade, para além da formação que o mercado quer de nós. 

Sabemos que o modelo escolar predominante hoje tampouco conduz a essa definição de educação. Inúmeras escolas dizem “preparar para a vida”, mas isso frequentemente implica reproduzir a sociedade como ela é, com todas as suas mazelas. Mesmo quando o modelo de educação autoritário e industrial é subvertido, é para atender aos interesses de mercado: as elites querem que aprendamos todas a sermos “resilientes”, “flexíveis”, “empreendedoras” e “emocionalmente inteligentes”. Em outras palavras, que nos vejamos como agentes do mercado, nos adaptemos às decisões que as elites tomam, soframos os problemas sociais sem entender que são sociais. É a luta cotidiana das trabalhadoras nas escolas públicas – e também em algumas particulares – que torna a educação muito mais do que essa instrução técnica, uma educação que cria novas relações sociais e abre brechas para o conhecimento crítico que pode transformar a realidade. 

Quando o Fórum Econômico Mundial argumenta a favor da EaD, não apenas temporariamente mas como um “legado” da pandemia para a educação do futuro, sabemos que essa modalidade de educação promove valores que vão na contramão da sociedade que queremos construir. Através da naturalização da EaD e de nosso engajamento acrítico com ela, aprendemos que “educação” significa receber um depósito de conteúdo pronto isoladamente em nossas casas, gerenciando nossos próprios problemas de aprendizado usando ferramentas monopolizadas por empresas, sem buscar alternativas para a promoção de igualdade e solidariedade nesse processo. Isso não é educação a distância, mas tão somente distância: ficamos cada vez mais longes do mundo que deveríamos estar construindo no rastro de destruição que a pandemia deixa no tecido social.

Educação e vida digna

Durante a pandemia, a vida das pessoas, sobretudo da classe trabalhadora e dos outros setores oprimidos, está em risco. Não é só o vírus que enfrentamos, mas a diminuição da renda que afeta as condições materiais do povo. A pandemia só agravou uma crise anterior, de extrema precarização das nossas vidas aqui de baixo, com um aumento de custos das coisas mais básicas, como arroz, feijão, ônibus e aluguel, fora a política intensa de ataques aos direitos trabalhistas. Só cresce o número de trabalhadoras informais e o desemprego. Estamos sem um horizonte de vida digna, seja antes ou após a pandemia.

Nesse contexto, precisamos olhar para os currículos e entender que os conteúdos são apenas parte do que é função da escola ou da universidade. Sem comida no prato, fica difícil pensar no conteúdo perdido ou aquele que deve ser vencido online. As escolas e universidades públicas nesse momento podem ser espaços que atenuem os efeitos da pandemia e busquem garantir condições mais dignas para resistir a esse momento, através da distribuição de alimento e outros recursos, oferecendo seu espaço físico para uso dos órgãos de saúde e também permitindo que as professoras possam contribuir nesse momento em ações de apoio mútuo, não em planejamento de aulas. Sabemos que nossas escolas sempre foram porta de acesso para outros direitos sociais em nossas comunidades: local de informação e mobilização para vacinação, campanhas de saúde, políticas de assistência social, defesa dos direitos das crianças e das mulheres em casos de abuso, em muitos casos também um ponto de ajuda mútua onde as comunidades se organizam durante emergências e catástrofes. Nossas instituições de ensino devem pensar antes de tudo em nossas comunidades.

Além disso, pensar a EaD como nossa única chance de democratização de uma educação a algumas localidades e situações limita muito nossos sonhos sobre outro mundo. Temos que nos permitir sonhar por uma educação do tempo, em que todas aquelas com interesse e vontade de aprender possam ter a oportunidade para se demorar naquilo, sem ter a preocupação encaixotando sua vontade e seu direito a uma noite livre dentro da agenda cansativa da classe trabalhadora. Precisamos sonhar uma educação interiorizada, que chegue nos assentamentos e acampamentos da reforma agrária, quilombos e aldeias, em cada comunidade com o interesse de ter em seu território uma instituição pública de ensino. Nesse modelo, não é a cidade que oferece o ensino de longe a partir de uma realidade outra, mas a educação se dá de forma territorializada, fincada no chão em que brota como troca e a escola como um espaço de socialização, não mera transmissão de dados. É preciso sonhar e é preciso lutar cotidianamente para construir o projeto de educação que queremos para os povos oprimidos, sem o qual não existe vida digna!