Breve reflexão sobre a Bolívia a partir do golpe de Estado de 10 de novembro de 2019

17 de novembro de 2019 – Bruno Lima Rocha

Introdução

As palavras que seguem tentam trazer alguma reflexão sobre o golpe de Estado ocorrido no domingo dia 10 de novembro quando o Alto Comando das Forças  Armadas Bolivianas recomendou a renúncia do presidente constitucional Evo Morale Ayma e seu vice, Álvaro García Linera. Não se trata de um texto de agitação, mas a permanente tentativa de trazer  algum debate mesmo  no calor do momento. Aponto em forma de tópicos de modo a facilitar a compreensão.

Tópico zero: Quem mandou chamar a OEA para fazer uma auditoria vinculante? Não bastou a eleição fraudada de Honduras em novembro de 2017? Será que houve algum grau de “inocência” supondo que a mesma OEA iria se comportar com a desenvoltura do início da crise hondurenha em junho de 2019? Realmente não é descritível o absurdo. Já que era para ter referência em alguma instituição gringa, porque não convocaram a Fundação Carter (ver https://www.cartercenter.org/countries/bolivia.html). Em geral esta fundação ou centro de direitos humanos vinculados ao ex-presidente dos EUA Jimmy Carter (democrata da Georgia, cristão renovado, 1976-1980 no mandato). Tais missões incluem, por exemplo, a avaliação dos processos eleitorais venezuelanos, em geral com resultados positivos ainda que com falhas e penalidades de todas as chapas concorrentes. Ou seja, porque o gabinete do MAS aceitou a presença  da OEA?! Não tem explicação lógica alguma!

A presidenta interina “eleita” de forma indireta na sessão sem quórum do Senado

No dia 12 de novembro a segunda vicepresidenta do Senado, senadora Jeanine Áñéz Chávez (eleita pelo Partido Progresso Bolívia – Convergência Nacional) depois perfilada na aliança União Democrática da assume a linha sucessória da Presidência da República em uma sessão suspendida por falta de quórum, tanto na Câmara de Deputados como no Senado. A bancada do MAS/IPSP (Movimento ao Socialismo/Instrumento Político pela Soberania dos Povos)  equivale a 2/3 de ambas as casas legislativas e não compareceram. Antes, essa mesma bancada foi a público exigindo garantias e punição para o fascista Luis Fernando Camacho e seus seguidores. Não obtiveram nenhuma das duas exigências e se retiraram. Pela regra constitucional, o mandato tampão seria de 90 dias de governo sem governo. Seria….

Já no dia 13 de novembro a TV boliviana, canal PAT (com base em Santa Cruz de la Sierra e ligada umbilicalmente aos capitais que dominam o Comitê Cívico Pró-Santa Cruz e as  hordas fascistoides), coloca um advogado constitucionalista e um cientista político justificando todo o processo de eleger uma presidenta para mandato tampão sem ter quórum nem na Câmara e nem no Senado. Segundo o que relatam, Em Alto, acima de La Paz, e no Chapare, zona tropical de Cochabamba, fortes redutos aymaras e do MAS, estariam sob ocupação militar conjunta do Exército e Polícia Nacional. Em 90 dias a senadora irmã de pastor pentecostal terá de organizar eleições gerais. Parece a Argentina depois da “revolução libertadora” de junho de 1955 dos oligarcas e militares gorilistas, propondo “democracia” sem a maior base popular. Jeanine pode ser sucedida por uma “junta cívico-militar”? Pode seguir como títere de empresários cruceños e militares arrivistas?

E caso venham as eleições? E se o MAS ganha? E se o MAS não concorre? Como impedir o MAS de concorrer? Apenas criminalizando o partido?

Cabe trazer um “detalhe”. A Bolívia cresce há mais de 13 anos uma média de 4% ao ano e tem investimentos pesados de China é Rússia, além de outros países. Esse capital externo vai seguir no país? Pelo visto não, e o acionar de capitais russos e chineses é tão oportunista como a direção do MAS vem se provando irresponsável e recalcitrante. Estaríamos diante

A Bolívia da direita colonizada em júbilo. A direita boliviana como a caricatura que haveria deixado de ser. 

A senadora que assume na Bolívia em sessão sem quórum no Senado é tia de Narco, irmã de pastor picareta, apoiada por fascistas com empresas de agro negócio e contas fantasmas no Panamá e sua primeira reunião foi com a milicada gorilia e vende pátria que deu o golpe no domingo. Jeanine toma posse com a bíblia na mão blasfemando já no primeiro discurso. É um momento de júbilo para latino-americanos que incorporam o complexo de “sudaca” e de “cucaracha”. A maldita direita miamera pró EUA deve estar tendo gozos múltiplos em suas alucinações de dominada que domina no seu quintal.

Para além da caricatura, existem laços bem profundos com a economia política do crime que o Departamento de Justiça através da DEA finge combater. No departamento de Beni, de onde vem a presidenta ilegítima Jeanine Á^néz Chávez os nexos político-criminais são muito mais profundos do que se imagina. Traduzi o relato da Rede Erbol de outubro de 2017, após  a prisão de dois narcotraficantes bolivianos em solo brasileiro levando 480 kgs de cocaína em uma avião leve.

“Fábio Andrade Lima Lobo é filho da excandidata do MAS a vice-governadora Carmen Lima Lobo. Seu pai é  o capo narco colombiano Célimo Andrade (ex-membro do Cartel de Cáli).  Já o outro preso, Carlos Andrés Áñéz Dorado é sobrinho da senadora Jeanine Añez Chávez, de acordo com o Ministro.

São dois outros os familiares de Fabio Andrade com ligação política.  À época eram o prefeito de San Joaquín e um ex-candidato para a assembleia departamental de Beni asambleísta departamental, o primeiro pela aliança MNR-UD e o segundo pela UD. (ver também a https://www.diariodocentrodomundo.com.br/senadora-presidenta-da-bolivia-foi-acusada-de-ligacao-com-trafico-apos-sobrinho-ser-preso-com-480-kg-de-cocaina-no-brasil/)

Enquanto circulavam denúncias desse gênero (e pela experiência acumulada, isso é só o começo, vide Honduras e o caso do irmão do presidente preso nos EUA por narcotráfico) o comando da Polícia Nacional golpista fazia um pronunciamento público. Na cerimônia improvisada, o substituto do golpista que renunciou na segunda após o golpe, dizia que a instituição respeita a bandeira Whipala, que a mesma representa todo o país, ocidente e oriente bolivianos, indígenas e não indígenas e não vai mais tolerar o desrespeito à bandeira indígena. A senadora Jeanine Áñez Chávez, do partido Unidade Democrática (UD), do departamento de Beni, advogada e ex-diretora do conglomerado de comunicação Totalvisión repetiu o mesmo gesto. Ela, a presidenta tampão, “eleita” no Senado sem quórum, fez o mesmo gesto de desrespeito aos símbolos originários. Será que consegue “governar” sem essa lealdade, sem esse respaldo da maioria da população do país?

Solidariedade aos povos da Bolívia e crítica ao MAS, sem tergiversar

Sei que o tema é delicado, mas não há como negar que a direção do MAS, a partir de sua dupla de governo, realmente forçou a barra. Foram ao plebiscito em fevereiro de 2016 e perderam. Não era para terem concorrido à 4a reeleição e poderiam sim, perfeitamente, produzir um gigantesco processo de consulta e participação popular de modo a indicar a nova chapa do então oficialismo. Fizeram tudo ao contrário, rachando as bases sociais e indígenas e criando condições para um voto protesto no oligarca Carlos Mesa (à frente de um guarda chuva chamada de Comunidade Cidadã e ainda por cima com um vice com mestrado em administração pública por Harvard!), o ex-vice de Goni (Gonzalo Sánchez de Lozada) posto a correr em outubro de 2003 na Guerra do Gás. Por mais absurdo que possa ser o  adversário de Evo, houve muita subestimação na convocatória do “voto de protesto”

É fato. Personalismo radicalizado não deixa de ser personalismo. Um colega professor universitário na área da geografia, com muitas conexões bolivianas além de experiência direta na região, vem alertando para o tema e de forma apropriada. Nos quatorze anos de Evo e seu vicepresidente campeão das manobras, houve abundância de tensões na relação soberania dos Territórios e a ênfase no modelo extrativista para bater caixa, superávit, manter índices de crescimento e assim atingir as metas de governo foram as mazelas constantes de Evo e Linera.

Sim, governar é fazer escolhas, mas antes de nada é fazer andar os processos legitimadores destas escolhas. E, mais importante, passando por consulta soberana, já que a própria constituição Plurinacional assegura isso.

Deu tudo errado na dupla institucionalização incompleta. Não tem nada perdido, mas os racistas colonizados viraram a mesa e com os altos mandos militares ao lado e ajudando. Há que se rever a relação com as Forças Armadas, ao menos as forças eleitorais que se dedicam a ganhar parcelas de poder na urna da democracia liberal pós-colonial. Muitas lições, aprendidas na rua, nos assassinatos em Cochabamba e na rebelião de El Alto que está bem longe de terminar.

Sim, em alto e bom som há que se compreender. A luta na Bolívia não é por Evo nem pelo MAS, não apenas. Vai muito além disso, ultrapassa as condenáveis maquinações de Álvaro García Linera e tem um significado concreto para toda América Latina e Caribe.

Tal significado pode incidir na apreciação de nossas sociedades sobre outros países. Os governos “amigos” como Rússia e China fazem jogo duplo, reconhecendo “de facto” o governo de Jeanine – a eleita no Senado sem quórum – enquanto dizem que houve um golpe de Estado. O jogo no Sistema Internacional não é sujo não, é imundo e asqueroso.

A base do equívoco das análises “progressistas”:  desconsiderar que é Whipala ou nada!

Existe um problema de fundo em muitas, muitas análises de colegas das esquerdas (sem ironias e senões) a respeito da crise institucional e do golpe de Estado na Bolívia, ocorrido no domingo 10 de novembro.

Em geral não trazem nada de novo, e ao contrário, há uma tendência em desconhecer ou desconsiderar (o que é quase o mesmo efeito). Ao não levar em conta o mais importante, o Estado Plurinacional e o fato de que em geral na Bolívia, quem ganha não leva, porque não há capacidade estatal para governar se houver um mínimo de consenso de oposição de ao menos metade das Nações originárias.

Além de não querer ler o que acontece no território, ao contrário, há uma tendência em desconhecer ou desconsiderar (o que é quase o mesmo efeito). Faltou uma institucionalidade originária e popular que pudesse fazer frente ao aparelho de repressão do Estado? Sim, sem dúvida. Ou seja, o problema não era o modelo em si, mas a condição incompleta do modelo, sob a tutela do MAS de García Linera mandando muito acima do IPSP dos Povos.

É duro falar isso agora, mas os fatos são os fatos. Já da parte de cá dos Andes, ou fazemos um esforço gigantesco para não apenas compreender a luta das 36 Nações Originárias da terra de Juana Azurduy e Bartolina Sisa, ou jamais iremos mensurar as reais possibilidades das lutas dos povos dos Brasis, incluindo a defesa incondicional dos territórios indígenas e quilombolas, assim como a urgente necessidade de promover um ecumenismo desde a base para contrapormos ao Cristofascismo tão bem retratado e denunciado por teólogas de avançada como Nancy Cardoso.

A evidência conclusiva

Para nós latino-americanos só nos resta fazer como José Gervasio Artigas, sendo brancos ou não, e mergulhar nas raízes das lutas de resistência deste pedaço de mundo, aplicar um estatuto de igualdade absoluta, tanto nas reivindicações como no estatuto da juridicidade e pelear ao lado de Andrés Guazurarí (Andresito Guacurarí y Artigas) e Joaquín Lenzina (el Negro Ansina). Somente assim vamos compreender que “nada podemos esperar a não ser de nós mesmos!”.

“A la huella a la huella, de Bartolina Sisa y Juana Azurduy!”

Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em economía política, doutor e mestre em ciência política e professor nos cursos de relações internacionais, direito e comunicação social. Contatos: blimarocha@gmail.com (para E-mail e Facebook) / estrategiaeanaliseblog.com (para textos e audiovisual) / estrategiaeanalise.com.br (arquivos desde 2000) e t.me/estrategiaeanalise (grupo aberto do Telegram).