19 de abril de 2020, Bruno Lima Rocha
Esse texto traz o aporte de duas variáveis para observarmos a crise política do bolsonarismo e sua composição de governo (aliado de ultraliberais e mais de 2500 oficiais militares ocupando postos na administração federal), em plena pandemia. Apontamos a possibilidade concreta do caminho do rumo a alguma forma de paralisia decisória, a chaga das instituições liberais burguesas. Tal fato se dá pelo conflito de poderes constituídos entre o presidente Jair Bolsonaro (seu Gabinete do Ódio, ministros incondicionais e seu gado alucinado), a incompleta Junta Ministerial (supostamente comandada pelo general Braga Netto) e a defesa do modelo econômico austericida e sociopata.
O contraponto para a crise e a meta de criação dos argumentos espantalhos e a falsa polêmica, contrapondo “pandemia X economia”. Daí a manipulação da base bolsonarista através do discurso da antipolítica (contrapondo o moralismo com a política profissional comandada pelo DEM) e a vitória pontual por esquerda na pandemia. Sim, esta se verifica na defesa do serviço público, especificamente do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e a consequente e lógica quebra do discurso neoliberal até mesmo por neoliberais consagrados. Vejamos tais variáveis na ordem apresentada acima.
O discurso antipolítico e a “saúde financeira”
O primeiro argumento espantalho é em relação ao fundo eleitoral e o fundo partidário. Observo que o bloqueio ou o desvio de finalidade do fundo eleitoral é uma manobra permanente para esvaziar o papel da política, especificamente dos partidos políticos. Isso vai ao encontro do discurso despolitizado e reacionário da base do bolsonarismo, ou das pretensões de alguns setores do Judiciário, incluindo o juiz Itagiba Catta Preta, figura conhecida no período do golpe jurídico-parlamentar de 2016, onde por decisão monocrática e autoritária bloqueou o fundo eleitoral e o partidário. A crítica do senador Davi Alcolumbre (presidente do Senado e senador pelo DEM, estado do Amapá) de que se trata de demagogia, a meu ver é correta. Jamais defenderei oligarcas, herdeiros de carreiras políticas e craques em manobras de regimento; mas o tema correto é afirmar que o papel dos partidos políticos oficiais (eleitorais, e se por esquerda, evidentemente reformistas, quando muito) é contestado justamente pela “xepa” do lavajatismo, em crise com a Vaza Jato e o papel pífio de Sérgio Moro à frente da pasta da Justiça.
Medidas concretas são aquelas que rompem com o modelo austericida, de Teoria Quantitativa da Moeda (TQM) e trabalham com a ideia economicamente equivocada que existe um “mal de origem” no déficit público. Se estas falácias fiscalistas não forem devidamente enterradas, todas as medidas de recuperação econômicas vão se tratar de paliativos.
Como vivemos em tempos de muita confusão, de mescla de ideologia com teoria, de opinião com mensuração científica, os temas e argumentos espantalhos se somam. Uma medida concreta, simbolicamente importante, seria a redução dos salários dos primeiros escalões do Estado brasileiro. Mas reforço. São temas absolutamente distintos. A redução de salários de detentores de mandatos eletivos, cargos em comissão e funções gratificadas trazem um significado político, de “estar junto da população”, ou menos implicam alguma solidariedade com a base do funcionalismo que recebe pouco e geralmente atrasado. Mas, os vencimentos das pessoas físicas à frente de mandatos e cargos são temas distintos dos recursos públicos que devem ser garantidos para estados e municípios, com a urgente revisão da dívida pública dos níveis de governo subnacionais e a urgente e necessária redistribuição impositiva sem dilacerar o orçamento sob alguma forma de controle social, garantido como direito na Constituição de 1988.
Portanto, o corte de vencimentos de detentores de mandatos coletivos e ao menos do primeiro escalão dos três níveis de governo seriam gestos significativos, mas com impacto financeiro ínfimo. Ou seja, mais simbólico do que econômico. O que pode implicar em decisão econômica relevante é obrigar – na forma da lei e através de decisão do Banco Central – os três maiores bancos provados do Brasil a emprestar recursos para micro e pequenas empresas, com juros zero e carência mínima de dois anos, de modo a garantir que as pessoas jurídicas maiores geradoras de emprego direto sobrevivam à pandemia e possam ter estímulos para voltar ao nível produtivo no pós-pandemia. O mesmo se dá na saúde financeira de estados e municípios – com a necessidade de enterrar o famigerado Plano Mansueto – e o aumento e agilidade de recursos para populações e setores vulneráveis, como Bolsa Família, Auxílio Emergencial e todo o aporte necessário para o colchão social diante da recessão econômica.
A defesa do sistema universal de seguridade social com o SUS à frente e o Macunaíma da Era Bolsonaro
Antes de tudo é preciso sempre recordar. O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma enorme vitória do povo brasileiro. O atendimento de saúde pública, gratuita e universal é uma conquista concretizada na Constituição de 1988 e tem como origem a luta das pastorais sociais, a tradição de medicina social e sanitária brasileira além da luta de médicas e médicos residentes a partir do último governo da ditadura com Figueiredo. O sistema e as políticas de saúde são bem montadas, e passam por um bom nível de controle social. O que se vê de conflito interno é a presença de secretários municipais e estaduais de saúde, além de autoridades do ministério da Saúde, de vários governos de turno, que não têm vocação nem identidade com o serviço público e fazem destes postos e cargos um trampolim carreirista. Isso sim prejudica além do corte de verbas.
As críticas ao SUS e as noções de desalento, não são responsabilidade do sistema em si, mas sim dos seus “gestores” e das nefastas políticas de teto de gastos e cortes de verbas. A principal razão do mau funcionamento, quando este ocorre, se dá primeiro porque os recursos não chegam, e se há problema de gestão, esse é secundário, é um bode expiatório no argumento contra o SUS. Outro problema é que o sistema não dá conta de tudo porque a tributação no Brasil não incide sobre a riqueza e sim sobre o salário e o consumo. Temos a ideia da excelência de mercado e aí parece que um status no Brasil é ter plano de saúde e não toda a sociedade ter direito a uma carteira nacional de saúde. Por fim, a distribuição de baixa, média e alta complexidade na regionalização da saúde precisa ser respeitada. Por exemplo,em regiões já organizadas, tomando por exemplo os vales conexos à Região Metropolitana de Porto Alegre, é preciso repetir o óbvio. É fundamental que os hospitais regionais estejam equipados para evitar a “ambulançoterapia” e quebrar essa cadeia de clientelismo político que alcança as pessoas em situação mais desesperada. Há toda uma indústria do transporte de pacientes, pessoas que se lançam na carreira política nestas atividades, e a existência de “casas de hospedagem” para tratamento em capitais. O SUS com pleno funcionamento evita o clientelismo e não permite que essas manobras execráveis se repitam.
Por fim, é curioso observar que o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, típico oligarca de família de médicos, ganhou popularidade à frente da pasta justamente por defender o SUS. Ou seja, fazendo o inverso de seu padrão de votação de verbas como deputado federal e radicalmente oposto ao que fez no primeiro ano de ministério sob indicação de Ronaldo Caiado (DEM de Goiás, hoje governador de estado, mas outrora fundador da UDR, extrema direita do latifúndio, na década de ’80). Caiado e Mandetta não são exceções como defensores do interesse privado, são a regra. O avanço da medicina privada no Brasil é muito agressivo, tem representantes nos parlamentos estaduais e no congresso nacional, além de termos muitas famílias de políticos oligarcas vinculadas às áreas médicas. Desmontar ou enfraquecer o SUS é meta permanente dos capitais privados na área da saúde e caso consigam realmente desmontar com o SUS é como condenar à morte a maioria da população.
Luiz Henrique Mandetta se transforma em Macunaíma ao ir de encontro aos devaneios de Bolsonaro e suas teses absurdas. Sai com 80% de apoio e aprovação, isso é mais do que o dobro do que o presidente olavista tem. Ao sair do governo onde foi ministro da Saúde – de fato e de direito – apenas por dois meses (justamente no correr na pandemia), abre ainda mais espaço para o protagonismo do DEM, como fiador da aliança histórica com o PSDB, alinhando a direita oligárquica novamente, contando inclusive com o suporte das Organizações Globo e sua cúpula.
Apontando conclusões
No dia 16 de abril, Luiz Henrique Mandetta foi substituído na pasta da Saúde, levando consigo todo o seu primeiro escalão. Nas coletivas diárias durante a pandemia, Bolsonaro viu a estrela do oligarca sul-matogrossense subir e brilhar. Luiz Henrique de batismo, ortopedista de formação e político desde o berço, tem vantagens incomensuráveis diante do seu presidente (sim, fez campanha para Bolsonaro e levantou cartaz de “Tchau querida” no golpe de 2016) seriam estas: sabe falar português; desfruta do poder e da tomada de decisões; tem alguma formação útil e prática como gestor de saúde pública. Enfim, como bom Macunaíma e camaleão, vestiu o colete do SUS, jaleco de médico e salvou a própria reputação.
A solução dos imbecis foi a pior possível. Primeiro, o fritaram sendo que o próprio Bolsonaro é quem comanda a desobediência às orientações da OMS – isso após se pronunciar dia 13 de março reconhecendo o acerto das mesmas -, segundo, indicaram alguém cuja trajetória é a face da versão empresarial do bolsonarismo. Da cota do empresário Meyer Nigri surge Nelson Teich, aquele a quem o inconsciente de Bolsonaro insiste em chamar de “Rubens”. Anunciado dia 16 e empossado no 24º aniversário do Massacre de Eldorado do Carajás (17 de abril), Teich é um empresário de saúde privada que já foi médico embora não tenha nenhuma experiência em saúde pública. É tão “capacitado” como Paulo Guedes, com uma leve exceção. Como médico de formação, Nelson Teich pode ter ainda algum pudor com sua própria reputação, ao inverso do especulador à frente da pasta da Economia (aquele que nunca produziu um prego não irá jamais comandar a contento uma recuperação econômica com necessária reconversão industrial e produção parcialmente planificada).
O protofascismo brasileiro gerou um ex-astrólogo que tem uma legião de imbecis e agora um Macunaíma para a direita oligárquica chamar de seu e usar como capital político e simbólico diante do perigoso energúmeno parido pelo udenismo lavajateiro.
Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em economia política, doutor e mestre em ciência política, professor nos cursos de relações internacionais, jornalismo e direito.
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