Violência, realismo e manutenção do sistema em Sicario

Texto escrito por Evelin Padilha e Rodrigo Mendes

 

O grande filme Sicario, de Dennis Villeneuve (2015) explora em sua superfície uma contradição estruturante da sociedade capitalista que é o seu desenvolvimento indissociável à desigualdade econômica e social. O sistema funciona a partir de duas peças centrais: avanço e retrocesso, que de maneira conjunta, indo e vindo, constantemente, formam a engrenagem do capitalismo. Nesse caso, só existe uma Nova York porque existe um Haiti. E esse desenvolvimento assimétrico cria etapas distintas do capitalismo em uma mesma sociedade, conforme é exposto em Sicario. Para além do alinhamento entre México e Estados Unidos, há uma aplicação do capitalismo ultra desenvolvido a partir das tecnologias bélicas norte-americanas, sistemas de inteligência e alta funcionalidade e discrição, junto a uma demonstração de poder brutal através da tortura e demonstração de um “controle do direito à vida” que percebe-se nitidamente nas cenas que mostram os corpos expostos nas ruas ou engessados dentro das paredes (cena inicial). Essa violência explícita é diferente na superfície mas é parecida na estrutura, e o diretor não se acovarda ao colocar lado a lado essas formas de violência e suas conseqüências, como veremos. O processo de violência é contínuo e tem dois lados: vem da opressão sistemática de quem está acima na hierarquia capitalista, os Estados Unidos, mas volta também a eles, como ocorre na primeira cena.

Outro ponto sobre essa violência que o filme evidencia é a atuação conjunta entre os cartéis, as milícias e as polícias. O melhor exemplo é um policial mexicano que temos contato ao longo da narrativa – em desenvolvimento paralelo –, mas que indica que terá um papel bem decisivo. As cenas são montadas dando a entender um modo de vida comum, ou seja, de um cidadão também oprimido pelo processo social – mas por ser um policial indica se tratar também de um opressor e que tem espaço estimado e de certo poderio justamente pelo nicho que ocupa dentro da sociedade –, e que depois descobrimos sua atuação em conjunto com uma ponta do cartel de tráfico de drogas. Esse personagem sintetiza a complexidade desse universo e explora a fragilidade de uma leitura rasa, ultrapassando uma análise purista e amena. Dá a dimensão do aparato e abrangência do tráfico de drogas, das redes que se articulam dentro e fora do sistema institucional ao apresentar essa ligação entre cidadãos com institucionalidade dentro da sociedade – preservando seus cargos de poder – ao passo que atuam no narcotráfico juntamente com cidadãos comuns. Nos possibilita, inclusive, através de uma visão Nietzchiana colocar em colapso ao questionar as seguintes referências antagônicas (morais e éticas): quem é bom ou ruim? e o que é certo ou errado? O Policial que tem sua imagem socialmente construída como alguém honesto e cidadão “de bem”; regular, que obece a lei, é o mesmo que pode ser visto como um bandido e cidadão “do mau”; irregular, que trangride as normas e leis oficiais. Não só o indivíduo mas o sistema institucional como um todo pode-se e (deve-se) questionar. E justamente por essa organização globalizada do capitalismo tem-se as consequências, por exemplo, da violência extrema a que são acometidos as/os moradoras/es daquela periferia.

Sicario é muito bem dirigido, com noção exata de construção de planos que, aqui, tem por objetivo criar uma ambiência tensa. Por exemplo, em uma das melhores cenas do filme, antes de chegarmos ao engarrafamento, acompanhamos uma filmagem aérea, provavelmente com uma câmera acoplada a um dos aviões que compõe o cenário, e a trilha sonora ajuda com quadro de tensão ao misturar-se ao som do tempo real da cena, ou seja, dos aviões, cujo resultado é um som abafado, grave e distorcido, que dói ao ouvir e já cria o clima. Seguidos aos planos aéreos e por isso mesmo abertos, começamos a ver o engarrafamento, palco da cena, e aos poucos a câmera vai ficando estável enquanto os carros vão sumindo em sua pequenez em meio à multidão. Temos a noção do tamanho da área que, em questão, seria dominada por um cartel de drogas que é, a princípio, o alvo da grande operação. Temos até aqui a primeira parte da filmagem da cena. Segue-se uma aproximação lenta até que pousamos na pista e depois dentro do carro dos policiais. É um movimento preciso, de fora para dentro, do aberto para o fechado, aumentando a tensão cada vez que fecha o nosso horizonte visual. (Villeneuve é muito bom nesse tipo filme, sendo exemplos bons do mesmo modo de fazer cinematográfico – filmes tensos habilmente dirigidos – Os SuspeitosO homem duplicado, além de Os Incêndios e até o último Blade Runner, que é interessante).

Essa câmera acoplada no avião nos interessa por outro motivo. Claro que nesse tipo de filmagens (planos aéreos) quase sempre a opção é ter uma câmera presa ao helicóptero, avião etc. No entanto, aqui representa outra coisa: significa uma aproximação muito grande entre o que é filmado e o espectador. Isso nos dá a sensação de estarmos presentes na cena, o que claro aumenta o nível de tensão da forma, da qual somos quase cúmplices através desse mecanismo narrativo. Porque isso funciona quase como um narrador em primeira pessoa, que em geral no cinema é representado pela câmera subjetiva, mas que aqui existe de outro jeito. Villeneuve diminui a distância entre nós e o filme, o que imprimi um valor de realismo impressionante para a obra. Outros dois bons exemplos para ilustrar isso são: a) na cena em que se segue ao engarrafamento e a execução de alguns “suspeitos”, o caminho continua, sempre veloz e intimidador com carros com metralhadoras .50 em cima. Em certo momento, percebemos que a câmera está novamente acoplada a um desses carros, sofrendo os mesmos movimentos que eles em atrito com o chão. Nem é preciso dizer aqui, assim como antes, que isso funciona novamente como aproximação daquele mundo filmado e o telespectador, trazendo veracidade e tensão para a cena (a duração dos planos e cenas também é algo importante, sem cortes muito rápidos e uma montagem simples, o diretor faz com que as imagens se sobressaiam – a trilha sonora também não é exagerada, o tudo melhor); b) na segunda grande cena do filme, a da entrada no túnel para o final da missão e do filme. Ali, Villeneuve grava de uma maneira que nunca vimos em filmes desse tipo: com câmera de visão noturna e infravermelho. Foi uma sacada genial por duas razões: a primeira porque dá, de novo, uma sensação de realidade e tensão impressionante – o diretor intercala as duas visões e assim introduz a cena; outra razão é que esse era o único modo verossímil de gravar aquela cena, já que a operação é provavelmente de madrugada e não há luz para iluminar; mais uma vez como um narrador em primeira pessoa, Villeneuve suprime a distância entre nós e o filme, criando uma estética de muita força de representação.

Retornando para o conteúdo e saindo da forma, ao fim e ao cabo, o filme coloca em questão a ambivalência da violência. o caminho desta, que surge em algum lugar, volta como um revide. Como dito antes, é mencionado no filme que certa violência praticada pelo cartel tinha sido aprendida com as forças militares norte-americanas. Questiona, tendo como ponto central a personagem Kate Macer (Emily Blunt), que se vê quase em um dilema: ir até as últimas consequências para acabar com o cartel que causou mortes a sua equipe e por sua atuação extremamente violenta na cidade, mesmo que isso signifique ultrapassar sua jurisprudência e ver seus colegas praticarem abertamente tortura e liberarem as armas visando o objetivo finalista, o velho e canalha “os fins justificam os meios”. Essa personagem, em tensão o filme todo, entra em choque com outro, o de Alejandro, interpretado maravilhosamente por Benicio Del Toro. Este, que perdeu sua esposa e filha de maneira cruel pelo cartel-alvo, não mede seus impulsos violentos para vingar essas mortes. O filme articula esses dois lados da mesma violência sem responder a qual lado se inclinar, justamente porque a realidade é complexa demais. A extrema violência é a única mediadora de todas essas vidas (e mortes) em jogo, e Villeneuve é bom o bastante para não rebaixar o filme a um nível fetichista frente a violência, mas tampouco para escondê-la de maneira piegas e sentimentalmente barato. Prefere mostrá-la da maneira mai real que consiga. E de fato consegue com sucesso.

O desfecho desse embate se dá ao final do filme, no último confronto entre os personagens principais, representando os lados éticos e “efetivos” da missão, respectivamente. O filme é anticlímax, talvez por sua violência, e é o que vemos ao final, quando Alejandro mata o chefe do cartel, todos seus homens e sua família, que estava sentada jantando. Era para ser o clímax, mas na verdade funciona ao contrário, mostra a crueza de toda aquela violência enraizada que perpassa as relações internas e externas no narcotráfico. Por isso, podemos dizer que as muitas ações que percorrem a narrativa estão para além do bem e do mal.