Um olhar sobre Petrópolis: desastres urbanos e justiça socioambiental

Artigo de opinião por Melka Barros*

 

Morro da Oficina, um dos locais mais atingidos pela tragédia.

               Desde o início do mês de fevereiro Petrópolis, cidade localizada na região serrana do Rio de Janeiro, está sendo atingida por enchentes. Apenas no dia 20 de março foram 260mm, ultrapassando a média do mês. As enchentes provocaram deslizamento de terras, deixaram um total de 233 mortos; 4 pessoas estão desaparecidas e centenas de desabrigados. A chuva, entretanto, é apenas coadjuvante do cenário de segregação socioespacial urbana que possibilita a ocorrência dessas tragédias.

              A formação histórica das cidades, seu desenvolvimento e organização foram planejados para constituir bairros com infraestrutura dedicada às poucas famílias ricas e brancas do país.  Inicialmente, o centro das cidades era o núcleo de moradia dos habitantes. Com o crescimento do espaço urbano, o centro se tornou um local superlotado, de trânsito fluente, além de ser um espaço de comércio e serviços. A cidade foi crescendo para a periferia, criando novos núcleos.

            Para a população pobre e negra foram construídos loteamentos periféricos ao redor de indústrias; ou campos de concentração para migrantes que fugiam da seca, no caso do nordeste; ou mesmo nenhum espaço, ao que estas famílias responderam com ocupações e formação de assentamentos irregulares instalados em áreas de risco (encosta de morros ou à beira de rios), sem saneamento básico ou arborização. Para os ricos, o Estado construiu núcleos com saneamento básico, vias de trânsito, arborização e serviços estatais.

          O caso da cidade de Petrópolis salta aos olhos por ser uma conjunção entre o estado brasileiro, a família imperial e o mercado imobiliário que não só não asseguraram o direito à moradia adequada, como também expulsaram a população pobre da cidade para áreas com grandes riscos de deslizamentos de terra.

            Enquanto o mercado imobiliário especula os imóveis das áreas urbanas destinadas ao turismo em Petrópolis, a família imperial cobra taxas da população pela posse dos terrenos e os governos federal, estadual e municipal desviam recursos originalmente destinados para construção de habitações populares e infraestrutura urbana. Não parece um caso fácil de analisar, mas a luta social aliada aos instrumentos de política urbana e ambiental oferecidos pelo direito poderiam amenizar as tragédias causadas pelas enchentes.

                 Para enfrentar a especulação imobiliária, é necessário fortalecer os movimentos sociais e ocupações urbanas em áreas seguras, reivindicando os instrumentos de política urbana que estão assegurados na Constituição Federal e Estatuto das Cidades, em especial: parcelamento do solo urbano, edificação ou utilização compulsórios para evitar a especulação, IPTU progressivo no tempo para tornar oneroso manter terrenos especulados, desapropriação  e usucapião especial de imóvel urbano para garantir o direito à moradia adequada daqueles que ocupam os terrenos urbanos.

             Para enfrentar a família real, é necessário acabar com seus privilégios, o que passa por abolir o instituto da enfiteuse do direito brasileiro. Até o Código Civil de 2002, existia ao lado da posse e da propriedade um instituto de direito real chamado enfiteuse, que permitia ao “dono das terras” cobrar taxas de pessoas que vivessem nelas. A enfiteuse foi historicamente utilizada, sobretudo pela igreja católica e família real, que até hoje cobram duas taxas pela ocupação de “suas” terras: uma anual, chamada foro, e outra caso a pessoa que ocupe queria “comprar” a propriedade, essa se chama “laudêmio”.

              Para este assunto é importante esclarecer que a enfiteuse não se trata de um imposto, já que este é criado pela constituição, cobrado exclusivamente pelo Estado que o recolhe e, teoricamente, tem a obrigação de com esse valor custear as despesas dos serviços públicos. As taxas da enfiteuse são cobradas pela família imperial e destinadas apenas a garantir seus privilégios.  A legislação civil de 2002 proibiu a criação de novas enfiteuses, mas manteve as antigas, de maneira que se faz necessária a organização dos movimentos sociais urbanos e rurais em torno dessa pauta, para que este instrumento colonial seja completamente extinto.

            Para enfrentar o desvio de recursos, é necessário exigir o planejamento participativo nas definições do orçamento público. A Lei de Responsabilidade Fiscal institucionalizou o chamado orçamento participativo no parágrafo primeiro do art. 48 e dispõe que a transparência será assegurada mediante incentivo à participação popular com realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão do Plano Plurianual, documento onde estão apresentadas as diretrizes e objetivos a médio prazo para a administração pública, e da Lei de Diretrizes Orçamentárias, documento anual que define as prioridades do orçamento público no ano seguinte.

             O orçamento participativo consiste em um mecanismo direto de participação popular em que a população, desde núcleos estabelecidos em bairros até assembleias envolvendo toda a cidade, pode fazer um levantamento das necessidades sociais, discutir e decidir sobre valores destinados a políticas públicas, assim como fiscalizar o direcionamento destes recursos. Na grande maioria das cidades o orçamento participativo não existe ou acontece apenas através de audiências que não vinculam as decisões da administração, mas a pressão popular pode fazer este mecanismo funcionar como deveria.

             No caso de Petrópolis, após as chuvas de 2011, houve recurso federal disponibilizado pelo antigo Ministério das Cidades, hoje Ministério do Desenvolvimento Regional, para recuperação de encostas, reflorestamento das margens dos rios e demolições de casas em locais de risco. Além da construção de novas moradias para os moradores que vivem em terrenos instáveis, mas o recurso se perdeu no caminho e até hoje não houve mudanças na infraestrutura urbana da cidade.

            Para além da falta de infraestruturas preventivas, a intervenção do poder público tem sido absolutamente insuficiente na mitigação dos impactos socioeconômicos das tragédias. No desastre de fevereiro deste ano em Petrópolis, foram dias de demora até que os agentes públicos começassem a buscar pelos desaparecidos nas áreas de deslizamento, e até o momento as famílias que perderam suas casas seguem sem qualquer perspectiva de realocação Os abrigos, em que grande parte dos atingidos estão, têm sido cada vez mais insuficientes e precários, com as famílias sofrendo constante pressão para encontrarem outro lugar, enquanto o programa do Aluguel Social sofreu uma série de limitações para o acesso após a tragédia. Neste contexto, apenas a solidariedade popular tem garantido a sobrevivência  de grande parte das vítimas, por meio das doações recebidas e das ajudas voluntárias vindas de diversos locais do país.

        Além de Petrópolis, neste ano de 2022 enchentes provocaram destruições e desabrigamentos em cidades dos estados de Goiás, Minas Gerais e Bahia e poderiam ter atingido diversas outras cidades, já que a segregação, desigualdade social e degradação do meio ambiente atravessam as cidades de norte a sul do país. A busca pela justiça socioambiental urbana passa por organizar o povo pobre das cidades para que possam incidir sobre o seu planejamento e organização. Para tanto, o direito urbanístico oferece instrumentos que podem ser úteis.

 

* Melka Barros é escritora e militante de Direitos Humanos e da luta pelos territórios de povos tradicionais no Ceará.