Araraquara passa por um momento trágico. Para além da pandemia de Covid-19, com 100% dos leitos ocupados nos hospitais públicos e particulares, com uma alta taxa de transmissão na cidade e a circulação da variante do vírus, setores empresariais da cidade fizeram novamente manifestação para a reabertura do comércio na última quinta-feira de fevereiro (25). A tragédia da situação está em perceber que não são essas pessoas que se expõem ao risco de contágio, uma vez que ficam atrás de seus escritórios, ou até mesmo em suas casas, enquanto trabalhadoras e trabalhadores são obrigadas/os a ocuparem a linha de frente do comércio, atendendo diariamente centenas de pessoas, voltando a suas casas pelo transporte público lotado e colocando a própria vida e de suas famílias em risco.
Para quem trabalha, a pandemia é uma sinuca de bico: se trabalho, me exponho ao risco do contágio; se não trabalho, fico sem salário, sem auxílio emergencial, e, nas últimas consequências, as contas chegam sem ter como pagá-las, a fome se instaura na família. Para os patrões, o lucro, as vendas, o negócio, são primordiais, e “valem a pena” continuar tocando os negócios independente da situação caótica da cidade – e do Brasil, que enfrenta seu pior momento da pandemia desde 2020. Há uma dimensão em perceber que, parando o comércio por 15 dias ou um mês, para os grandes empresários da região, influentes e determinantes para as políticas adotadas pela prefeitura, a perda de dinheiro não faz cócegas ao montante final. Mas, são estes que se aproveitam do desespero da classe trabalhadora e colocam-se ao mesmo lado dizendo “não podemos deixar nossos funcionários na mão!”, em uma dissimulação sem tamanho, como se não houvessem alternativas. Vale diferenciar que também não estamos falando dos “microempreendedores”, ou melhor dizendo, daqueles que possuem um negócio próprio mas que seu capital é direcionado apenas a manutenção da própria vida, que tentam se dizer patrões, mas estão condicionados ao trabalho diário.
A Prefeitura, por outro lado, em sua política de concessão, diante à menor pressão do empresariado, com meia dúzia de gatos pingados em uma carreata, mostra o que é suficiente para justificar a flexibilização dos decretos de isolamento da cidade. Não basta que a saúde esteja em colapso, não basta a situação caótica nacional, tampouco basta que vidas estão sendo perdidas. O que importa é manter a “normalidade” e os panos quentes em cima da situação, agradando aos maiores interessados a reabertura do comércio, e deixando (como de costume) a maioria da população, em especial das periferias, as trabalhadoras e trabalhadores, aos frangalhos. Não há disposição em levantar a bandeira de vacinação em massa para a cidade, assim como aconteceu na cidade de Serrana frente a altas de transmissão do vírus, nem mesmo iniciar qualquer discussão sobre ações voltadas à população mais economicamente vulnerável da cidade, com planos de distribuição de cestas básicas, de incentivo a diminuição de tarifas públicas ou até mesmo aquelas inseridas nas contas de luz, água, gás – enfim, qualquer tipo de suporte econômico.
Não cabe a nós julgarmos o Lockdown, uma vez que essa estratégia vem sendo defendida por pesquisadoras e pesquisadores de todo o mundo como a única maneira realmente eficaz de controle do covid-19, enquanto não há uma ampla vacinação. O que nos cabe aqui é apontar que, para que haja a construção qualitativa do entendimento e, mais importante, da aceitação do lockdown, é preciso que se tenha plena garantia de direitos sociais e econômicos. Em termos simples, é preciso que se tenha a garantia de comida na mesa, que o salário seja mantido, e no caso de pessoas autônomas, que haja a garantia de segurança de que sua família não terá a luz e a água cortada, o gás acabado, a barriga vazia. E mais do que isso, é preciso a segurança de que a saúde pública seja capaz de cuidar dos doentes e que não permita que lhes falte ar, leito, medicamento, atendimento.
No dia 2 de Março, outra notícia abala a segurança dos/das trabalhadores/as do comércio: a redução de 50% do salário, frente a um acordo feito Sincomércio (o sindicato patronal, ou seja, um sindicato de patrões) e o Sincomerciário, estabelecendo a redução do salário até 31 de Março, assim como outras alterações, como a divisão das férias em três momentos, a suspensão do pagamento do adiantamento salarial e a criação de um banco de horas referentes aos dias não trabalhados. A desculpa, como já dado uma pista acima, é sempre o discurso de “preservar a condição do trabalhador e da empresa”, ou ainda, nas próprias palavras do presidente do Sincomércio, em entrevista a ACidadeOn, “para que a gente possa dar um pouco mais de tranquilidade aos empresários com relação a seus trabalhadores”, “[…] onde conseguimos algumas flexibilizações para beneficiar, tanto as empresas e para a manutenção de emprego para que possamos ter fluxo de caixa um fôlego e fazer frente a essas obrigações trabalhistas que são pesadas.” A preocupação é com o negócio, com os trabalhadores e trabalhadoras? A flexibilização de seus direitos é a ordem.
O isolamento escancarou uma face muito importante da política institucional brasileira – o povo está somente com ele mesmo, não podendo contar com as falsas promessas políticas, com o rosto preocupado do prefeito em quase todos os jornais de São Paulo. Reaprendemos que é a própria população que a ajuda, em um grande ciclo de solidariedade, de doações de alimentos, de troca de informações, que faz a vida funcionar. São nossas ações reais, do dia a dia, que constroem a nossa sobrevivência. São as hortas comunitárias que colocam os vegetais e a luta na mesa por um preço mais acessível, uma vez que as idas ao mercado estão cada vez mais difíceis; são os educadores e educadoras que constroem junto aos estudantes a informação, a crítica; são os trabalhadores e trabalhadoras que organizam a sua comunidade. Enquanto professores e professoras tentam articular a ida de seus estudantes para o vestibular, os órgãos públicos e, até mesmo a universidade que perdeu sua função social, fecham suas portas (ou melhor, seus ônibus) para mantê-los em suas garagens. Da prefeitura, dos políticos, esperamos apenas promessas vazias, repletas de desculpas, cheias de uma esperança irreal que não virá sem ações reais, pois sabemos com quem as negociações são feitas – com os empresários e com todas as instâncias que não correspondem ao povo.
A nossa luta, direta, constrói uma realidade melhor para que possamos não somente sobreviver, mas viver com dignidade.
Pela vacinação em massa. Por uma vida digna.
Por Barbara Barbieri