Há um processo de longa duração (desde o início da colonização portuguesa, com marco forte nos séculos 18 e 19 através da escravização) de assimetrias sociais na construção do Brasil. Mesmo com falhas, o capitalismo brasileiro foi e seguirá sendo desigual e combinado, avançando e atrasando inextricavelmente. A longa escravização é talvez a principal chave para pensar o país e para pensar o Racionais. De maneira geral, há outros pontos de conflito decorrentes dessa segregação que servirão de matéria para os raps do grupo, tais como o racismo hoje naturalizado (em vias da longa escravização sem reparação); a falácia de democracia racial desde Gilberto Freyre; alienação da mídia em relação à negritude e ao racismo; a violência policial demasiada, principalmente às periferias, e que hoje em dia se configura em um Estado Policial de Ajuste (cerceamento ainda maior das liberdades individuais; supressão das já poucas liberdades democráticas; escalada militar cujos alvos vão de Rafael Braga a Marielle Franco); processos que visam embranquecer e higienizar as cidades, como por exemplo a expulsão dos pobres dos centros. O Racionais é o resultado da acumulação de opressões raciais e sociais, é o efeito colateral do desenvolvimento assimétrico do processo histórico brasileiro. O Racionais surge desse inferno, cobrando reparação e apontando o dedo para os culpados históricos dessas opressões.
A partir disso, esboça-se o desvelamento de um muro, seguindo o conceito de Christian Dunker, professor da Universidade de São Paulo em seu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. O autor chama atenção para o processo de condominização do Brasil, criando uma espécie de mundo de mentira no qual as elites se refugiam principalmente para obter, dentre outras coisas, “ordem e segurança”. Pensando sobre isso à luz do Racionais, percebe-se que eles explicitam esse muro pelo menos a partir de duas noções: a) ao marcarem seu lugar na periferia, cobrando justiça pelo perpétuo estado de exceção causado pelo racismo e pelo desenvolvimento desigual, assumindo seu lugar “de fora do condomínio”, longe das benesses do capitalismo e, por isso, desvelando esse muro que há séculos segrega a sociedade brasileira; b) ao pregarem seu valor através da consciência de classe, se tornam autônomos em relação ao mundo condominizado, negando-o e mantendo a diferença como essencial para suas vidas. Do lugar “de fora” e excluído, tomam para si esse status em chave positiva, elevando o valor dos negros pobres iguais a eles e com isso confrontando o padrão vigente. Saem da posição de “outro” e “de fora” para colocar a burguesia e a elite nesse lugar, alterando a correlação de forças simbólicas que envolvem racismo e classe social no Brasil. Esse muro com diversas tensões pode ser sintetizado assim: negros x brancos; pobres x ricos; classe pobre x Estado, PM, mídia. O grupo injeta força às tensões que envolvem esse muro ao elaborar uma estrutura de conflito, não conciliável e intransigente. Uma postura que é estética e ética, já que seu objetivo é conscientizar seus irmãos. A postura é a todo o momento de guerra – os artistas já disseram que não são artistas, mas terroristas, como o verso “minha palavra vale um tiro/ eu tenho muita munição” demonstra. Aliás, em “Cap. 4, Ver. 3” demoramos alguns versos para saber que se tratam de fato de palavras e não de tiros literais.
Vamos agora a alguns exemplos da explicitação desse muro nas canções do disco através de críticas direcionadas:
Em “Cap. 4, Ver. 3”, rap exemplar do disco e da discografia do grupo, a conscientização se dá pela constatação do muro e, então, pela desalienação em relação à mídia e pela explicitação da violência contra os negros pelas estatísticas introdutórias: “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial (…)”. Através desse estatuto de verdade, que é falado e não cantado, temos mais um dado da preocupação do Racionais em transmitir sua mensagem com objetivos que ultrapassam o estético, sendo composto pelo social, como dito. Desvelar o muro, o estado de exceção em que vivem há séculos, é imprescindível para a busca de conscientização e acusação de que as músicas se propõem. Outro fator importante é a identificação que o grupo procura estabelecer com seus interlocutores principais – negros de periferia como eles. São vários os momentos em que isso fica explícito nas letras “Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor…” ou “Não me olha assim eu sou igual a você”. A noção de comunidade, de reconhecimento, é uma das forças do grupo, força essa que torna possível uma luta contra o racismo e contra todas as opressões. Unidos, “apoiado por mais de 50 mil manos” é que uma mudança pode ser possível. O Racionais se comporta como uma extensão da periferia, busca acabar com a hierarquia que há entre a estrela pop e seu público. Conscientizando seu mano e fazendo-o se reconhecer neles que cantam e que sofrem das mesmas opressões, o grupo almeja, através de suas músicas, mudanças drásticas sem acordos cordiais no mundo objetivo.
Ao explicitar o estado de exceção perpétuo em que vivem as periferias ao redor do país (“Periferia é periferia” e o “Salve” falarão sobre essa unidade entre os oprimidos), o Racionais desvela não só o mundo de miséria e dor das periferias, mas a sociedade brasileira. O problema que o grupo está apontando, a segregação racial e social, é dado estruturante da sociedade brasileira. Walter Garcia, professor da USP, lembrou disso em ensaio sobre o grupo: ao falar da periferia, está-se falando do todo. Só existe uma periferia porque existe um centro, assim como só existe o Racionais MC’s por causa das opressões histórias e sistemáticas que venho falando. Esse estado de exceção perpétuo inicia com a escravização e mantém-se até os dias de hoje.
O Racionais desestrutura a sociedade brasileira. A construção do Brasil moderno se assenta na falta de posicionamento, evitando o conflito, fazendo acordos. O Racionais aponta o dedo e cobra reparação, indica os culpados, se posiciona e obriga seu interlocutor a se posicionar. Em vários momentos há uma menção direta a um interlocutor, que na maioria das vezes ou é o playboy, que é acusado, ou é o mano, que é aconselhado, como vimos. Esse alto número de interpelação coloca o Racionais no lugar oposto a toda uma acumulação de música popular brasileira. O Racionais bate com o pé na porta porque já não é mais possível tentar apagar as contradições brasileiras, o racismo e a desigualdade social. E é por isso que o Racionais, em especial o Sobrevivendo no Inferno, se fazem tão importantes.
Rodrigo Mendes