Que horas ela volta? de Anna Muylaert

O cinema, assim como a arte em geral, tende, em sua maioria, a se apoiar em situações recorrentes e usuais referentes ao momento em que a sua sociedade vive. Nos últimos anos, o Brasil tem produzido obras-primas de certa forma realistas. Que Horas Ela Volta? é um exemplo. Como este, alguns outros filmes abordaram temas semelhantes, como O Som ao Redor ou Branco Sai, Preto Fica (este último entre os maiores brasileiros da década). Aqui, o poder do filme de Anna Muylaert supera barreiras entre as classes sociais e coloca-se, ao fim, como um estudo claríssimo e crível das desigualdades das quais o Brasil padece.

Val, personagem de Regina Cazé, é uma empregada doméstica domesticada, aceitando os muros impostos por Bárbara, sua patroa. Quando analisamos tal personagem temos o perfeito exemplo de como essas trabalhadoras são discriminadas: Val sente-se inferior e coloca-se nesta posição. Quando sua filha vem morar com ela a fim de prestar vestibular para Arquitetura (o curso escolhido pode significar, metaforicamente, a arquitetura das classes sociais e como elas se ergueram ou como a tentativa de uma nova arquitetura de sociedade) o contexto social da casa na qual vivem começa a mudar, momento este construído magistralmente pela diretora, que aprofunda seus personagens de modo fantástico e sem apelar a desfechos já esperados.

É interessantíssimo analisar que, com a chegada da filha de Val, as personalidades dos personagens – principalmente os patrões – começam a mudar drasticamente, mostrando ao espectador que o ódio de classe encontrava-se apenas adormecido, sublimado, e que quando chegasse a hora, se mostrariam arrogantes e egoístas frente aos problemas muito maiores da menina. Tal representação em cena não teria sido tão bem sucedida se não fossem as atuações seguras dirigidas firmemente por Muylaert. Naturalmente, a protagonista nos chama mais atenção. Casé incorpora Val de modo brilhante, não há outro adjetivo. Em muitos momentos, a atriz trabalha apenas com o olhar, como na cena inicial em que limpa o vidro junto a sua colega de serviço e esta pronuncia algo que não deveria. Ou, de quando em quando, Val parece não chorar, porém, não está alegre ou séria, mantendo seu rosto triste nesse limiar, criando uma aura de sentimentos profundos em gestos mínimos. Fantástica.

Muito se falou no alcance que o filme teve, dialogando com todas classes sociais do Brasil, inclusive com a dominante, a direita, a reacionária, os principais alvos que o filme pretendia alcançar. Que horas ela volta? tenta conciliar os contrários. O filme nos parece dizer: para acabarmos com a desigualdade é preciso que a parte que está no poder, a que possui meios para tal, convença-se de que isto é realmente necessário. A abordagem de Muylaert vai a esse encontro, pois, a qualquer momento, poderia facilmente tender a diálogos raivosos por parte dos trabalhadores (com toda razão), criticando tal discrepância na sociedade. Mas não, mantém-se simples e deixa que suas imagens falem por si só (não estou dizendo que é bom nem mal, apenas está no filme). Há alguns exageros dentro desse último quesito, como nas cenas em que a diretora mostra exaustivamente Val em ambientes sujos ao redor de varais ou mostrando a personagem em um ônibus lotado. Ao menos servem para estabelecer o contraste com a casa-grande.

Em meio às diferenças econômicas, Muylaert une Bárbara e Val (e depois a filha desta) pelo meio familiar. Este talvez seja o ponto mais genial do filme, e que, por fim, justifica seu título. A pergunta “Que horas ela volta?” junta as três protagonistas mulheres, porém, percebemos a clara diferença ao analisarmos as respectivas vidas separadamente. Val e sua filha padeceram na hora de cuidar de seus filhos, pois precisavam de renda para sustentá-los. Ao contrário, Bárbara tinha tudo que precisava para tal, porém, não conseguia dar a atenção necessária a seu filho, que por fim, acaba por buscar afeto em Val, que o trata como se fosse seu próprio descendente e doa-lhe todo o amor que, por motivos maiores, não pode dar à sua filha. É uma relação intrínseca de grande complexidade, triste, e que é conduzida, como dito acima, de modo magnífico pela diretora.

Tal relação de amor mãe-filho(a) é também aprofundada na cena em que Val entra, pela primeira vez, na piscina. Tal localidade da casa era considerada como a última divisa entre patrões e empregados, e que havia sido quebrada na cena maravilhosa em que Jéssica (filha de Val), cai de supetão na água. Não foi à toa que Anna filmou esta parte em câmera lenta, para que o espectador percebesse claramente a imersão total de Jéssica na vida de Bárbara e sua família. Dialogando com a cena citada acima, (Val na piscina) Anna estabelece uma forte ligação entre mãe e filha. Val acaba por cometer tal ato impensado por causa de sua filha. Foi a aprovação no vestibular desta que faz com que a mãe se sentisse à vontade para, enfim, ter alguns minutos de alegria dentro da piscina, compondo, assim, uma das cenas mais bonitas do filme.

Ao final, temos Val saindo do emprego, finalmente negando tal situação a fim de cuidar de sua filha e seu neto, (recém descoberto), que proporcionou a última peça de ligação entre as mulheres (citado acima). Na última cena, a utilização da trilha sonora junto à palavra “mãe”, tão esperada por Val, acaba prejudicando o impacto que esse simples substantivo possui no contexto. Contudo, mais uma vez, tal problema não influencia no poder do filme de Anna, e assim esperamos que a película sirva como mais um incentivo à luta e demonstração da situação de milhares de empregadas domésticas, que são obrigadas a ver a vida pela cozinha, jamais se sentindo à vontade na sala de estar.

 

Rodrigo Estrella Mendes