[Parte 1] Como a reforma da previdência ataca direitos de trabalhadores/as e beneficia o mercado de capitais.

Amanhã, 14 de junho de 2019, trabalhadores e trabalhadoras de diversas categorias dos 26 estados da federação e do Distrito Federal organizam paralisações respondendo a uma convocatória nacional por greve geral contra a reforma da previdência. Além de aderir à greve e ir às ruas, escrevi algumas linhas para contribuir na discussão do nosso povo sobre a Reforma.

Em fevereiro do ano passado escrevi no Repórter Popular sobre a proposta de Reforma da Previdência do então Governo Temer. A votação da Reforma da Previdência foi suspensa temporariamente em virtude do decreto de Intervenção Federal no Rio de Janeiro. Um ano depois, a pauta retornou imersa num projeto de Governo neoliberal. Precisamente no dia 20 de fevereiro de 2019, Jair Bolsonaro e Paulo Guedes entregaram à Câmara nova proposta de Reforma da Previdência visando a cumprir sua tarefa maior perante o mercado: o arrocho nos direitos sociais e a capitalização do fundo previdenciário.

Dessa forma, torno a escrever sobre Reforma da Previdência, aproveitando linhas e ideias do meu texto anterior, mas revisando e adicionando os novos elementos da proposta e do Governo Bolsonaro. O texto será publicado em duas partes: a primeira parte contextualizando a proposta de Guedes e desnudando o seu objetivo e a segunda parte trazendo aspectos práticos de aplicação da reforma em nossas vidas.

(I) Os urubus que sobrevoam nossa previdência.

A previdência no nosso país surgiu através de iniciativa de trabalhadores nas primeiras décadas do século XX para garantirem meios de subsistência quando não fosse possível trabalhar quer de forma eventual – por doença – quer de forma permanente -por velhice. Empregados de uma mesma empresa, sem a participação do poder público, instituíam fundos de apoio mútuo, nos quais podia o empregador colaborar ou não. Eram valores pequenos e que não eram suficiente para garantir a sobrevivência digna todos trabalhadores idosos ou acidentados.

Gradualmente o Estado foi intervindo na previdência social, culminando com a criação de Caixas de Aposentarias e Pensões para determinadas categorias, onde ainda era mínima a intervenção do poder público, e, posteriormente, o Instituto de Aposentadorias e Pensões, que definiu uma maior intervenção do Estado. Não era justo, entretanto, que com tanto trabalho e pouco dinheiro apenas os trabalhadores suportassem a previdência. A capacidade de mobilização e reivindicação dos trabalhadores por melhores condições de trabalho e pela participação também do empregador e do Estado no fundo previdenciário determinou a existência e o fortalecimento da perspectiva solidária de Previdência.

Atualmente a Previdência faz parte da seguridade social, que é um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (CF/88). A seguridade social se divide em três: previdência social, assistência social e saúde.

O modelo previdenciário atual é estabelecido pela Constituição Federal de 1988, como um direito social. A Previdência Pública brasileira possui dois Regimes: Regime Geral de Previdência Social e (PGPS), que abrange todos os trabalhadores com atividade remunerada e servidores públicos não
estatutários; e Regime Próprio da Previdência Social (RPPS), para quem possui cargos efetivos nos
âmbitos da união, estados e municípios.

A previdência social tem o objetivo de assegurar às pessoas meios indispensáveis à manutenção da vida em diversos aspectos – inclusive diante da incapacidade para trabalhar – através de “benefícios”. Ela representa uma perspectiva solidária de proteção social, pois todos contribuem para a existência de pessoas que por algum motivo, transitório ou permanente, não podem mais trabalhar.

A narrativa de necessidade de redução de gastos previdenciários não é nova no nosso país e sempre retorna como “solução” diante de conjunturas de desemprego, inflação e crise econômica. A previdência protege o lado mais fraco da corda que os de cima sempre querem arrebentar. Mas o que
temos no Brasil é um histórico de contrarreformas, levados a cabo por governos do PSDB, PT e PMDB.
Nos últimos anos, algumas emendas constitucionais já alteraram critérios para os “benefícios”,
implicando em perdas de direitos e prejuízo para os/as trabalhadores/as. Sucessivos governos tiveram participação nesses ataques.

A Emenda 20/98, aprovada durante o governo FHC, foi o fim da aposentadoria por tempo de serviço, pois o que passou a contar foi o tempo de contribuição. Além disso, também permitiu a limitação das aposentadorias e pensões ao teto. Um ano depois foi instituído o fator previdenciário, uma conta que é aplicada ao salário do trabalhador e que leva em conta idade e tempo de contribuição para definir o valor do beneficio. Durante o governo Lula, a Emenda 41/2003 ataca os servidores públicos, com a desregulamentação dos direitos previdenciários destes. Por fim, no governo da presidenta Dilma Roussef é aprovada a Lei 12.618/2012, que institui o Regime de Previdência Complementar para os
servidores.

(II) O cálculo da previdência social.

O déficit na previdência é um argumento ideológico mentiroso. Sua única finalidade é arrochar cada vez mais os investimentos em políticas públicas de seguridade social. O governo, através de seus meios de comunicação, busca enfiar goela abaixo a ideia de que a reforma da previdência é “um mal necessário”, pois se algo não for feito, o nosso país pode entrar em colapso econômico em um futuro próximo.

Essa manobra perversa se utiliza de recursos públicos para financiar campanhas de propaganda que buscam influenciar a opinião pública a apoiar a Reforma da Previdência baseada em argumentos mentirosos. Ao mesmo tempo o Governo Bolsonaro e de Paulo Guedes sempre se voltou ao capital, tendo uma agenda repleta de reuniões com bancos, seguradoras, empresas privadas e entidades patronais, mostrando claramente o compromisso do governo com o mercado financeiro.

Ilustrativamente, podemos imaginar a previdência social como era no começo do século passado: uma caixa. Segundo a Constituição Federal e a Lei Orgânica da Previdência Social, trabalhadores/as, empresas e o governo depositam contribuições nesta caixa. Empregados/as assalariados/as, trabalhadores/as domésticos/as e trabalhadores/as avulsos; contribuinte individual e microempreendedor/a individual (MEI), empregador/a urbano/a, empregador/a rural e trabalhador/a em tese devem contribuir.

Existe também uma receita constituída de impostos destinados ao fundo da seguridade social: Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), concursos de prognósticos*, dentre outros.

Desta caixa saem o pagamento de aposentadorias, pensões por morte, auxílio-doença, auxílio-acidente e outros. O Instituto Nacional do Seguro Social, criado em 1990, é o órgão do governo que administra o dinheiro desta nossa caixa.

Para defender a Reforma da Previdência, governo e empresariado afirmam que a não previsibilidade das “aposentadorias especiais” (trabalhadores rurais, garimpeiros, pescadores, marisqueiros e indígenas) e do benefício de prestação continuada (benefício que têm direito pessoas extremamente pobres) geraram cumulativamente nos anos anteriores uma crise na previdência de forma que o dinheiro mais saiu que entrou da nossa caixa, motivo pelo qual é necessária uma “reforma” para
reajustar “o que entra e sai”. Assim, a reforma da previdência, ao lado da antiga PEC 241, aprovada com o objetivo de limitar os gastos públicos nos próximos 20 anos e que, na prática, vai retirar verbas da educação e da saúde para privilegiar o pagamento da dívida pública – seria uma solução para conter a crise econômica brasileira.

Para defender a Reforma os Governos (primeiro Temer e agora Bolsonaro) investem em propagandas diárias em comerciais e programas de TV. Propagandas que mostram os “benefícios” do trabalho na terceira idade, uma perversidade do capitalismo que se sustenta com a ideia de sugar ao máximo a força de trabalho das pessoas, e que para isso tenta nos convencer de que trabalhar até morrer é
uma boa ideia desconsiderando aspectos humanos da existência, como tempo de lazer, descanso, etc.
Outras propagandas apontam a inevitabilidade da reforma, justificando com a necessidade de contingenciamento imediato de gastos para não quebrar o país e garantindo que a reforma vai atingir todos e “acabar com os privilégios”.

Por trás desse discurso falacioso, a verdade é que uma análise feita pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) confirma que os cálculos apresentados pelo governo são falsos e manipuladores, pois incluem como contribuições que entram na nossa caixa apenas aquelas levadas por empresas e trabalhadores e não aquelas que o próprio governo tem
a obrigação de contribuir, pois são receitas vinculadas à previdência pela Constituição Federal. A Anfip
através de estudo detalhado deixa claro que a Reforma não acaba com privilégios e atinge majoritariamente a aposentadoria de trabalhadores com remuneração mensal menor que 02 (dois)
salários-mínimos (https://www.anfip.org.br/reformadaprevidencia.php)

Assim, o objetivo da Reforma da Previdência é fazer com que o Estado invista cada vez menos em seguridade social, que passará a contar apenas com as contribuições de trabalhadores/as e empresas, sendo que as últimas quase sempre estão em débito com a nossa “caixa” de previdência, de forma que apenas os/as trabalhadores/as passem a sustentar a caixa.

Além disso, após a década de 1990 entrou no cenário brasileiro o mecanismo da Desvinculação de Receitas da União (DRU), uma decisão do Governo Federal que permite que parte das receitas da seguridade social – 20% até 2016 e 30% de 2016 a 2023 – seja utilizada para pagar juros da dívida pública (https://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o- assunto/dru). Com isso, o governo desvia o dinheiro da previdência para o mercado de capitais e gera o esvaziamento da nossa “caixa”.

É evidente que as alterações propostas pelo governo sinalizam a privatização da previdência brasileira, pois ao mesmo tempo em que desobriga o Estado da gestão da previdência, abre caminho para que bancos e seguradoras capitalizem e usem o dinheiro do trabalhador/a.

Fontes:
BATICH, Mariana. Previdência do trabalhador: uma trajetória inesperada. São Paulo Perspec., São
Paulo, v. 18, n. 3, p. 33-40, Setembro de 2004. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0102-88392004000300004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 Mai 2019.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.
______. Emenda Constitucional no 20, de 15 de dezembro de 1998. Modifica o sistema de previdência
social, estabelece normas de transição e dá outras providências. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc20.htm>. Acesso em: 15 mai. 2019.
______. Emenda Constitucional no 41, de 19 de dezembro de 2003. Modifica os arts. 37, 40, 42, 48, 96,
149 e 201 da Constituição Federal, revoga o inciso IX do § 3 do art. 142 da Constituição Federal e dispositivos da Emenda Constitucional no 20, de 15 de dezembro de 1998, e dá outras providências.
Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc41.htm>. Acesso em: 15 mai. 2019.
______. Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá
outras providências. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8742compilado.htm>.
Acesso em: 15 mai. 2019.
______. Lei no 12.654, de 28 de maio de 2012. Institui o regime de previdência complementar para os
servidores públicos federais titulares de cargo efetivo, inclusive os membros dos órgãos que menciona;
fixa o limite máximo para a concessão de aposentadorias e pensões pelo regime de previdência de que
trata o art. 40 da Constituição Federal; autoriza a criação de 3 (três) entidades fechadas de previdência
complementar, denominadas Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do
Poder Executivo (Funpresp-Exe), Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal
do Poder Legislativo (Funpresp-Leg) e Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público
Federal do Poder Judiciário (Funpresp-Jud); altera dispositivos da Lei no 10.887, de 18 de junho de 2004; e dá outras providências. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2012/Lei/L12618.htm>. Acesso em: 15 mai. 2019.
______. Projeto de Emenda à Constituição 6/2019. Modifica o sistema de previdência social, estabelece
regras de transição e disposições transitórias, e dá outras providências. Disponível em < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra codteor=1712459&filename=PEC+6/2019>. Acesso em: 15 mai. 2019.
SENADO. DRU. Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o- assunto/dru>. Acesso
em: 19 mai. 2019.
SINDIFISCO NACIONAL. PEC 06/19 – Nova Previdência: Impacto sobre os Direitos do Servidor.
Disponível em <http://previdencia.anfip.org.br/livros-e-cartilhas/>. Acesso em: 15 mai. 2019.
UNAFISCO NACIONAL. A drástica redução da pensão por morte e da aposentadoria por incapacidade permanente na PEC 6/2019. Nota Técnica 14/2019. Disponível em <http://previdencia.anfip.org.br/livros-e-cartilhas/>. Acesso em: 15 mai. 2019.

UNAFISCO NACIONAL. Estimativa do tamanho do mercado (faturamento para as instituições
financeiras num regime de capitalização financeira para a Previdência). Nota Técnica 12/2019.
Disponível em <http://previdencia.anfip.org.br/livros-e-cartilhas/>. Acesso em: 15 mai. 2019.