Para quem gosta de cinema, digo, do formato cinema, dessa forma que é gravada, editada, montada e exibida numa tela, assistir a filmes antigos, lá dos primórdios da história da sétima arte, tem uma sensação muito instigante. Isso porque assistimos àqueles filmes com uma sensação interessante de distância: olhamos de agora, com uma cabeça que sabe o potencial do cinema – sabemos dos enormes efeitos especiais de hoje em dia, que dão vida ao Rei leão e fazem carros esportivos virarem robôs gigantes –, vemos de hoje a ontem, quando do início dessa arte, cujos primeiros passos foram dados pelos irmãos Lumières, na França, quando inventaram uma câmera que gravava (ou melhor, tirava 24 fotos no intervalo de 1 segundo, os famosos FPS, frames per second) – o cinematógrafo –, e vemos um cinema em construção, um cinema em movimento rumo a sua própria constituição, testando efeitos, montagens, modos de gravar e enquadrar…
A vocês deve interessar, então, O inferno (L’Inferno, 1911), dirigido por Adolfo Padovan, Francesco Bertolini e Giuseppe de Liguoro. Trata-se da primeira adaptação do clássico de Dante Alighieri, A divina comédia, do início do século 14 – mais uma distância. Em verdade, é a adaptação da primeira – e mais interessante – parte do épico, “Inferno”, dispensando, imagino que por razões técnicas, “Purgatório” e “Paraíso”, pois em 1911 fazer um longa era difícil, e só a primeira parte já deu pouco mais de 1 hora. (O filme está disponível no Youtube com legenda em português https://www.youtube.com/watch?v=eXpA2NH2Pw0&t=232s. Tenho o arquivo em torrent, também, a quem quiser.)
O que o filme tem de interessante? Muita coisa. A primeira é a própria ereção do filme, com o perdão da má palavra, o ato de colocá-lo em pé, 60 minutos corridos há pouco mais de 20 anos depois de saber-se possível a gravação de imagens. Para além desse comentário meio metafísico, há coisas materiais muito interessantes: o uso das locações é muito bem pensado e enquadrado – somente áreas naturais, alguma floresta, muitas áreas com rochas, e um rio, que representa o Aqueronte. O barqueiro que leva as almas para o inferno, Caronte, também está lá, e as almas são representadas por figurantes nus, sujos, que se contorcem ou gesticulam de modo estranho, imprimindo um “realismo” particular. Neblina e/ou fumaça cobre(m) alguns cenários, dando um toque meio mítico para a coisa. A representação de um cão de três cabeças, o Cérbero, figura amedrontadora, é do porte de um pastor alemão, com três cabeças, nada intimidador para os olhos de hoje, mas potente para a época.
Seu desenrolar, sua narrativa – outra coisa notável para um filme de tal época – vai desde quando Dante se encontra perdido na floresta até quando, com a ajuda de Virgílio, alcança o Purgatório, vendo novamente as estrelas. Nesse ínterim, acompanhamos a dupla em todos os nove círculos do Inferno até seu centro, no qual se encontra Lúcifer, “o imperador do reino doloroso”, que devora almas como se fossem arcos ou anéis de vidro, tudo e todos congelados – contrariando quem esperava um fogo ardente, o núcleo do Inferno, para Dante, é gelado. Lúcifer, na má tradução que tenho do livro, tem este tamanho: “Eu, com minha estatura, mais próximo estou de um gigante do que um gigante comparado com o braço, apenas, de Lúcifer”. Para sua representação fílmica, o enquadramento é fundamental: um plano geral, aberto, com cristais de vidro no primeiro plano, Lúcifer bem ao fundo, enorme – só vemos sua cabeça e asas. A dupla caminha em sua direção, tudo gravado sem cortes, e vemos lentamente Virgílio e Dante se apequenarem frente a Lúcifer, saindo do primeiro para o segundo plano de filmagem – isto é coisa muito sofisticada, aprimorada posteriormente por Orson Welles em quadros clássicos de Cidadão Kane ou O processo. Ajudam a compor o cenário uma montagem, melhor seria dizer sobreposição de imagens, recorte e colagem – literalmente – de fragmentos de outras filmagens que representam almas que vagam de um lado a outro ao redor de Lúcifer, como que esperando para serem devoradas – como é possível ver na imagem destacada desse texto.
Algo importante de frisar é que este filme é antes d’ O Encouraçado Potemkin (1925), que é uma aula de montagem cinematográfica, e antes de Os Nibelungos (1924), do mestre expressionista alemão Fritz Lang, que também encarou o desafio de representar dragões e outras coisas medievais nas primeiras décadas de cinema. O Inferno era originalmente mudo, com trechos escritos narrativos que indicavam a sequência lógica do filme, seu enredo e diálogos; no entanto, recebeu a posteriori – não sei dizer quando, mas a banda em questão, Tangerine Dream, foi formada na década de 1960 – uma trilha sonora que, a meu ver, destoa em muitos momentos do longa, apesar de em alguns momentos haver consonância.
Assistir a’O Inferno é uma grande experiência cinematográfica, pois ao mesmo tempo em que vemos uma obra, enxergamos, no fundo, o cinema em movimento, o trabalho para consolidar daquilo uma linguagem – pensando aqui em longa-metragem, pois antecede esse filme George Méliès, que é considerado o pai do cinema. Um deleite para quem se interessa pela sétima arte.
Rodrigo Mendes