O povo no Paraguai tomou as ruas nas primeiras semanas de março de 2021. Com o aumento de casos de Coronavírus e o país batendo seus piores níveis, a população não viu outra alternativa a não ser protestar. Para entender melhor as motivações, a organização dos protestos, os objetivos e os exemplos da luta paraguaia contra o descaso do governo de seu país, fizemos essa entrevista exclusiva com Alma Monges, que nasceu no Paraguai, é cientista política e socióloga pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila); mestre em Ciência Política e doutoranda em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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RP – Qual o motivo das mobilizações? É a forma do governo de lidar com a pandemia? Se sim, qual é a situação da pandemia no país?
Alma – Os paraguaios e as paraguaias se juntaram para criticar o mau manejo da emergência sanitária, assim como a crise social e econômica, que se agravou com a pandemia. Segundo informações que saíram nos últimos dias, havia um esquema de desvio de dinheiro no Ministério da Saúde. O efeito foi a falta de insumos básicos nos hospitais. Somada à falta de medicamento, os paraguaios responsabilizam o presidente pela má gestão da pandemia e a falta de vacinas, que situa o Paraguai junto com o Uruguai como um dos últimos países na América Latina que ainda não começaram uma campanha de vacinação nacional.
Estas foram as causas principais, mas o clima político já estava tenso há meses. O governo de Mario Abdo Benítez (presidente paraguaio pelo Partido Colorado), sempre foi muito impopular. Sua vitória em 2018 já foi alvo de denúncias de fraude. O desgaste ficou mais evidente nas manifestações de 2019 contra um acordo secreto entre o presidente Mario Abdo Benítez e Jair Bolsonaro sobre a Usina de Itaipu que desfavorecia o Paraguai, e que só não resultaram no impeachment de Benítez graças à recomposição com seu adversário interno no Partido Colorado, o ex-presidente Horácio Cartes [que convenceu parlamentares do partido a não votarem pelo afastamento do mandatário].
A situação da pandemia é muito complicada no Paraguai. O país tem poucas unidades de terapia intensiva e quase todas estão lotadas. O serviço público de saúde tem falta de insumos básicos, de medicamentos, em parte, por causa da corrupção que foi descoberta há dias, mas sempre foi um sistema muito pobre, que só melhorou no governo de Fernando Lugo (2008-2012), mas que depois do golpe, o que tinha melhorado foi destruído novamente. A corrupção no Paraguai é estrutural e totalmente vinculada à presença do Partido Colorado no poder há mais de 70 anos.
RP – Que grupos estão presentes nos protestos? São partidos, grupos autônomos, grupos de bairros, organizações sindicais…?
Alma – Não saberia falar exatamente quais, porque muitas pessoas não estão organizadas. As manifestações contemplam um espectro muito grande de organizações políticas, até mesmo colorados. Mas grande parte da esquerda está lá, como Frente Guasú e o Partido Comunista Paraguaio. Mas não é uma manifestação que tenha uma organização na frente, é mais de cidadãos indignados em uma luta contra o descaso do governo.
É importante entender que o Paraguai tem uma estrutura política bipartidária bem tradicional. Está conformada pelo Partido Colorado (ANR), partido do ditador Stroessner e de Abdo Benítez, e o partido liberal, o PLRA. Sendo que a ANR tem 2.500.000 filiados, em uma país de 7.000.000 de habitantes, e o PLRA tem, aproximadamente 1.500.000 filiados. Ou seja, as pessoas vêm de famílias de partidos tradicionais. É como a paixão por um time de futebol, que passa de pais e mães para filhos e filhas. Acho que muitos dos jovens que estão nas marchas são pessoas que querem sair deste bipartidarismo, por isso uma das palavras de ordem gritadas nos protestos é “Fora ANR, Fora todos”.
É uma diversidade de grupos. Estas manifestações foram autoconvocadas por redes sociais, então tem uma diversidade de atores, mas na maioria são cidadãos indignados.
RP – Profissionais da saúde tem participado dos protestos?
Alma – Muitos profissionais da saúde apoiam as manifestações e exigem vacinação para eles e para a população. Não saberia dizer se o sindicato dessa categoria está participando ou apoiando as manifestações.
RP – Quais as expectativas do povo pra essas lutas? Derrubar governo? Pressionar por medidas sanitárias mais adequadas?
Alma – Acho que são altas, mas não sei se conseguirão. A demanda é que o presidente renuncie e que se chame a novas eleições.
Até agora, conseguiram a destituição do ministro da Saúde, Julio Mazzoleni, e de outros três ministros de perfil de extrema-direita, mas as manifestações continuaram, o que coloca os acontecimentos políticos que surgirão nos próximos dias no Paraguai em xeque.
Uma das principais forças opositoras, Frente Guasú, uma coalizão de partidos de centro-esquerda, a qual pertence o ex-presidente Fernando Lugo, já afirmou que fará um pedido de impeachment contra Mário Abdo Benitez, mas ainda não o apresentou. Se fizerem o pedido, para que seja aprovado será necessária uma divisão interna no Partido Colorado. Ou seja, o grupo do Horácio Cartes, ex-presidente do país (antecessor de Benítez), terá que apoiar.
* Até o dia 7 de março, data da realização da entrevista, o pedido de impeachment ainda não estava feito.
RP – É possível pensar no futuro e o que essas lutas podem deixar para o povo paraguaio em termos de organização popular?
Alma – Sim. Me parece muito lindo e interessante o que está acontecendo. Como falei acima, uma das principais palavras de ordem, dos jovens nas manifestações é “ANR nunca mais”. Essa demanda é muito importante, considerando que este é o partido do general Alfredo Stroessner, ditador do país por 35 anos (1954-1989). Desde 1947, fora os quatro anos da presidência de Fernando Lugo (2008-2012), é a ANR/Partido Colorado que está no poder. Um dado relevante é que Mario Abdo Benítez é filho do ex-secretário pessoal de Stroessner, ou seja, sua relação com a ditadura militar é mais que estreita.
No Paraguai é urgente derrubar o Partido Colorado e toda a estrutura que eles criaram. Precisamos destruir o bipartidarismo e que novas forças e organizações políticas de esquerda tenham mais protagonismo. Precisamos que muitas dessas pessoas que se estão se revoltando ante o estado no qual o país se encontra, se juntem a organizações com agendas políticas mais igualitárias, de esquerda e assim possamos fortalecer a luta popular contra o descaso do governo.
RP – Quais os principais desafios de fazer luta na rua num período em que precisamos fazer isolamento social? Esse é um desafio que o povo brasileiro enfrenta, pois está amarrado pelo medo e pelo alto número de mortes causadas pela Covid.
Alma – O principal desafio é manter se com vida. As aglomerações que estão fazendo no Paraguai provavelmente vão gerar mais contaminados, mas aí nos encontramos em uma encruzilhada compartilhada por vários países, em especial o Brasil. Ou morremos por falta de UTIs e medicamentos, ou saímos à lutamos exigindo mudanças. Vale a pena lembrar que o índice de contágio no Paraguai e no Brasil são diferentes, não é que seja uma justificativa, mas a situação de São Paulo, por exemplo, é diferente da de Assunção (capital do Paraguai). Isso faz os Paraguaios sentirem a pandemia de outra forma.
RP – Que exemplos da luta paraguaia contra o descaso do governo consideram que nós, brasileiros e brasileiras, podemos tirar desse processo de lutas no Paraguai?
Sejam quais forem os resultados das mobilizações em curso no país, além de já terem promovido um deslocamento da correlação de forças internas, também assinalam um exemplo importante para a região e, mais especificamente, para o Brasil. Por meio da mobilização popular, a sociedade paraguaia está questionando a continuidade de um governo reacionário, corrupto e descomprometido com o povo, o que, nas condições da pandemia, leva à morte de milhares de pessoas. O que vivemos no Brasil, se não algo ainda pior? Não custa lembrar que, em um primeiro momento, o atual governo paraguaio impôs medidas de isolamento social, ao contrário do governo Bolsonaro, que não apenas se recusa a fazê-lo, mas boicota qualquer esforço de contenção à pandemia.