O Governo Vanazzi (PT) tem projeto de fechar a Casa de Acolhimento para Crianças e Adolescentes. Após decisão arbitrária e sem diálogo, organizações da sociedade civil fizeram forte oposição ao governo que, sentindo a resistência, deu um passo atrás. Agora, devem primeiro fazer uma proposta a ser apresentada. Apesar do tema ter esfriado, o fechamento do serviço, ofertado diretamente pelo Poder Público, segue na pauta do dia.
O que está acontecendo
Para falar do que está acontecendo agora em São Leopoldo é preciso considerar um processo mais amplo. A Casa de Acolhimento para Crianças e Adolescentes é a única instituição 100% pública da cidade para crianças e adolescentes que perderam os vínculos com a família. De 4 anos para cá, no mínimo, ela vem perdendo servidores mês a mês, muito em virtude de políticas de contratação precária e temporária de educadores e atendentes sociais. Devemos apontar o problema na gestão municipal anterior do PSDB, mas o sucateamento seguiu no governo do PT, o que é inegável. Atualmente, a instituição tem praticamente a metade do número de servidores que já teve, o que prejudica o atendimento às crianças e adolescentes, diminuindo a capacidade protetiva.
Existe 16 vagas, mas apenas metade está sendo ocupada, enquanto há excedente nos acolhimentos de entidades privadas (Organizações da Sociedade Civil, antigamente chamadas de ONGs). Entre os atuais acolhidos, muitos estão fora da casa, o que costuma ser denominado de “evasão”. Para a política de Assistência Social, a evasão não deveria ser um mero dado de “esvaziamento”, mas um indicador de problemas a serem enfrentados: ou a instituição vai mal, ou a equipe não está capacitada, ou a rede de serviços de assistência social, saúde e educação não trabalham juntas. Se a Casa de Acolhimento vai mal – e isso ninguém nega – é preciso olhar para todos equipamentos públicos da Assistência Social (que são 10 em São Leopoldo) para entender que nenhum deles vai bem por motivos bem parecidos. Infelizmente o governo, usando informações descontextualizadas, tomou a decisão de fechar a Casa de Acolhimento, inicialmente, sem discussão alguma com a sociedade civil ou com os trabalhadores. É importante lembrar ainda que existe desde 2014 um processo de reordenamento dos serviços que nunca foi colocado em prática. Esse reordenamento, esquecido todos esses anos, é um plano, acordado com o governo federal, para adequar os serviços de acolhimento, com o objetivo de promover mais qualidade em vários sentidos. Se ele tivesse sido levado à cabo pelos governos municipais talvez o debate fosse diferente hoje.
Problemas financeiros são apenas uma parte da questão
É preciso falar que não houve debate sério e bem embasado sobre a questão financeira. Em fevereiro deste ano, trabalhadores da Casa de Acolhimento estiveram no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) para falar dos problemas e praticamente pediram ajuda. Eles, mais que ninguém, sabem dos problemas, pois os sentem diariamente. Infelizmente o CMAS – formado por metade de representantes do governo e metade da sociedade civil – não fez absolutamente nada. Meses depois, estoura a questão. Os valores apresentados pela gestão da Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS) não possuem dados discriminados e foram apresentados em lâminas, sem nenhum comprovante e sem se ouvir quem trabalha na instituição. Além disso, não mostra os valores ao longo dos anos, mas apenas um recorte curto de tempo. Para completar, comparou-se, usando critérios distintos, o investimento governamental na Casa de Acolhimento com o investimento em parcerias com as entidades privadas. Ocultou que as entidades privadas precisam de muitas outras fontes de recursos para manter suas instituições. Elas fazem campanhas de doações, captam recursos com empresas, buscam outros editais etc. Ou seja, mostrou-se um gasto total com a Casa de Acolhimento não comprovado (e não discriminado), com um gasto parcial das entidades privadas. Além disso muito se falou da crise no país, do congelamento de gastos federais, o que é verdade. Mas não explica tudo.
Sobre o financiamento da instituição e a posição de quem luta por direitos
É fato que o governo golpista de Temer do PMDB está atacando direitos através de ajuste fiscal. Mas primeiro é preciso dizer que esses cortes não foram comprovados quando apareceram os números específicos da instituição em questão ou dos acolhimentos ofertados por entidades privadas da Assistência Social. Quando se falou de números para tratar da Casa de Acolhimento, não se discriminou nada, não se falou nem comprovou em que foi gasto o recurso, muito menos a origem desses recursos, se municipal ou se federal. O governo municipal afirma que há atrasos de repasses do governo federal. Mas isto acontece com praticamente todos os recursos para todos os serviços. E isso não é novidade.
A Casa de Acolhimento, assim como toda Assistência Social, nunca teve financiamento majoritariamente do governo federal. Para se ter uma ideia, em 2016, ao fazer o plano de cofinaciamento com o Governo Federal, o município se comprometia a investir 13,7 milhões, enquanto o Governo Federal enviaria 3 milhões. Significa que quase 82% do orçamento é de responsabilidade do município. E esse percentual, vale dizer, é o padrão ao longo dos anos, inclusive durante os governos petistas Lula e Dilma. Ou seja, mesmo que o repasse federal tenha diminuído – o que não se comprovou neste momento específico – não é motivo suficiente para tomar esta medida tão drástica e sem debate. Se o município não quer ou não pode financiar a Assistência Social, que diga, se responsabilize e o debate virá para lutarmos por prioridades.
O orçamento da Assistência Social é mais amplo e a decisão sobre como alocar, em grande parte, é do governo municipal, já que ele é o principal financiador da política pública. Então, se quisermos falar de crise, temos que falar de crise em toda Assistência Social e, portanto, das escolhas do montante orçamentário do município. O recorte do problema sobre uma unidade específica é um erro de gestão ou é má fé. É preciso sim lutar contra o golpe nos direitos promovidos pelo governo Temer, o que não significa que temos que abrir mão de brigar por direitos quando quem erra ou ataca é o governo municipal, seja ele do partido que for. Os direitos avançam quando lutamos, não quando vacilamos para escolher as batalhas de acordo com o calendário eleitoral.
O processo de (falta de) debate sobre o fechamento da instituição
Até o dia 12 de Julho não houve diálogo. Primeiro foram boatos e conversas de corredor, colegas se entristecendo sem poder dizer nada, pois em nenhum momento se fez um debate público e minimamente democrático para que todas posições fossem ouvidas. A boataria correu solta, chegando até o Judiciário e o Ministério Público. O MP, diante da iminência do fechamento da Casa de Acolhimento fez um documento listando todos os problemas que já haviam sido apontados por este órgão e que não tiverem nenhuma ação por parte do governo municipal. Além disso, o MP requereu uma série de ações, que não eram novidade, entre elas, o aumento de equipe, além de questões relativas à garantia de direitos de boa habitação, transporte, vestuário etc.
Após uma conversa da SDS com representantes da sociedade civil organizada, se decidiu por uma plenária conjunta com pauta única com os Conselhos de Assistência Social (CMAS) e dos Direitos da Criança e do Adolescente (COMDEDICA). Nesta plenária realizada dia 4 de Julho, a pauta era vaga: “Situação da Casa de Acolhimento”. A própria pauta isolou a questão para não debater os problemas de conjunto da Assistência Social. Nesta plenária, ao longo da explanação por parte do governo e da SDS, praticamente foram jogados números ao ar, sem critérios, sem comprovações e com muitas omissões. Nenhum conselheiro recebeu esses dados de antemão para estudar e poder fazer perguntas com qualidade. Os técnicos da SDS envolvidos certamente cumpriram ordens e não puderam definir quais números seriam apresentados, nem como. Essa manobra irá ficar na conta do governo, não dos trabalhadores da gestão da Assistência Social. Como se tudo já não estivesse suficientemente confuso, em seguida, um setor da SDS apresentou uma proposta de Grupo de Trabalho para tratar do problema, mas a própria secretária da pasta deu a entender que a decisão não era sobre debater, mas sim sobre como “fazer a transição”.
Após grande debate e indignação generalizada por parte de trabalhadores, representantes de entidades e até de conselheiros ligados ao governo, uma representante da Procuradoria Geral do Município afirmou que a decisão do governo era pelo fechamento. A revolta no plenário foi grande, pois isso aconteceu do meio para o fim da plenária, após longos debates. Muitas pessoas manifestaram sua indignação falando que aquela plenária era uma encenação e não diálogo. O governo só se manifestou abertamente por meio de advogados – uma postura lamentável para um governo que se auto-intitula “popular e democrático”. Com isso tudo e com a desorganização do governo para organizar seus votos, venceu a decisão de que os conselhos iriam deliberar por posicionamento contrário ao fechamento da Casa de Acolhimento. A tônica se tornou: “se o governo de lá diz que vai fechar, os conselhos aqui dizem que querem manter e vamos seguir o debate”. Decidiu-se também por construir audiência pública e fazer uma nota pública dos conselhos que seria proposta pelo Fórum de Direitos da Criança e do Adolescente da cidade para apreciação posterior dos demais conselheiros. E foi essa nota o motivo de mais disputas acirradas na semana seguinte.
A polêmica da Nota Pública
A nota pública seria definida nas plenárias ordinárias do CMAS no dia 11 e do COMDEDICA no dia 12 de Junho. No CMAS o governo fez novamente um papel lamentável, pedindo revisão da deliberação sobre a nota na plenária anterior. A margem de manobra do governo foi o fato de não ter havido, na plenária do dia 4, um procedimento padrão do tipo “levantar a mão” para votar, pois a plenária tinha sido longa e dura e o fim foi confuso e disperso. Após ouvir a gravação da plenária do dia 4, o governo se apegou a isso e fez uma nova votação sabendo que ganharia. O mal-estar foi generalizado entre os conselheiros não-governamentais do CMAS e outras pessoas presentes. A proposta de nota tocava em pontos centrais como a falta de debate, o atropelo, a importância do conselho e a defesa e garantia de direitos. Vale dizer que ao mesmo tempo dava margens para se entender que o serviço fosse mantido com as mesmas vagas, sem reforçar se deveria ser ou não pela Casa de Acolhimento. De qualquer forma o governo não gostou do teor da nota e fez o que fez. No dia seguinte, no COMDEDICA, a conversa foi diferente. O governo pareceu recuar para abrir o debate: agora não está mais falando que a matéria está decidida e que vai primeiro encaminhar uma proposta aos conselhos.
O risco de fechamento segue e, talvez, seja maior
Não há motivos para se tranquilizar. Desde o início da boataria se falava em “achar um jeito de remanejar as vagas para entidades”. Quando o debate veio a público em 4 de Julho, veio sem nenhuma proposta de resolução. Mas muitos trabalhadores e mesmo a decisão do CMAS e COMDEDICA foi de defender a oferta do serviço pela Casa de Acolhimento, ou seja, ofertar diretamente pelo Poder Público. O que é diferente de manter o serviço de qualquer forma. O governo recuou, é verdade, mas foi estratégico, pois apaziguou os ânimos e pode até ter neutralizado algumas forças de oposição. No entanto, de forma alguma garante que a Casa de Acolhimento em si vai seguir, pelo contrário. O recuo foi no sentido de apresentar uma proposta sobre como fazer daqui para frente, mas não há nenhum indício de disposição a abrir diálogo para manter a Casa de Acolhimento como unidade ofertante. A perversidade do debate original foi amenizada. Mas o risco agora é maior, pois conseguiram apagar o incêndio para manter o projeto de fechamento da instituição. Digam o que quiserem, mas em qualquer governo de um partido tradicionalmente de direita, iriam chamar isso de terceirização.
É bom lembrar que estamos falando de seres humanos, não de recursos ou números. Estamos falando de uma instituição cheia de problemas, mas que é ainda um espaço de resistência e garantia de direitos. Estamos falando de pessoas que depois de terem vários vínculos sociais e familiares rompidos, criam vínculos com um espaço e uma equipe. É muito triste estarmos discutindo isso agora ouvindo frases do tipo “quanto custa uma criança?” quando poderíamos estar debatendo concepção de trabalho, mudanças de perspectivas para realizar um atendimento menos moralizante e mais respeitoso e cuidadoso. Falando do que me compete na Assistência Social devido ao cargo que exerço, poderíamos estar buscando analisar dados e realizar pesquisas que pudessem embasar mudanças no conjunto do atendimento. Infelizmente não estamos nos preocupando com isso, porque o que sobrou de espaço de debate está escoando para uma preocupação do tipo “como diminuir o impacto de mais um rompimento de vínculo na vida dessas pessoas”. A derrota do Sistema Único de Assistência Social é essa: quase nunca conseguir debater o que precisa fazer pra melhorar, pois vive debatendo como fazer o menos pior. A sensação que fica é que a tesoura dos governos começa sempre por cortar onde há mais vulnerabilidade.
Paulo Crochemore é trabalhador do SUAS de São Leopoldo, sociólogo da Secretaria de Desenvolvimento Social da Prefeitura Municipal de São Leopoldo