O papo reto no “Sobrevivendo no Inferno”, do Racionais MC’s

Esse texto tem como objetivo responder à pergunta: a quem se dirige o disco Sobrevivendo no Inferno (1997), do grupo de rap Racionais MC’s, a partir de suas músicas? O questionamento surgiu a partir da audição de “Capítulo 4, Versículo 3”, na qual foi constatada a aparição de mais de trinta interlocuções (menções a alguém criando assim um diálogo, como tu, você, ou chamar pelo nome, como “Eaí, mano Brown, cuzão, cade você?”). A partir de então começou-se a questionar a validade de tratar isso como fator estruturante daqueles raps, como algo que segura a estrutura das músicas.

Nas onze faixas passíveis de análise (desconsideramos a sexta, “…”, por ser instrumental, já que buscamos as interlocuções nas letra), foi possível constatar que o disco de dirige em sua grande maioria aos interlocutores que são iguais aos narradores das músicas, ou seja, quem começa essa conversa: jovens homens negros pobres de periferia. O número de interlocuções aos manos é 145 em todas as músicas do disco, isso contra só 18 aos inimigos, que são os playboys, empresários etc. A partir daqui podemos afirmar, a partir da análise dos dados de todos os raps de Sobrevivendo no Inferno, respondendo então à pergunta inicial, que o disco se dirige majoritariamente aos seus manos, seus iguais.

Essas vozes do disco, que vem dos narradores das músicas, seguem um código de conduta periférico chamado proceder. Este é pautado pela palavra dada, não necessariamente escrita, por uma ética justa e intransigente, pelo certo, que é andar na linha, mas saber do que é preciso fazer para sobreviver ao “cotidiano suicida” da favela. Também esses narradores partem de uma posição a que o pesquisador Tiaraju D’Andrea chamou de sujeito periférico, que é quem se reconhece como morador da favela, passa a ter orgulho disso, e age politicamente a partir disso: as vozes nos raps de Sobrevivendo no Inferno são sujeitos periféricos e querem criar outros sujeitos periféricos, sempre pautados pelo proceder, em quem os ouve, os seus interlocutores principais, os manos. (A noção de proceder encontrei no trabalho de Daniel Hirata.)

Depois de constatar que o disco se dirige em sua maioria aos manos, jovens negros periféricos, pode-se dizer que há nos raps dois lugares essenciais que compõem as músicas, um preenchido pelos narradores, aquelas vozes que começam o diálogo conscientizador – isto é importante, a interlocução em massa aos manos é porque há uma necessidade de conscientizar frente à onde de violência, de racismo, de genocídio ao povo negro periférico urbano. O outro espaço é ocupado pelo receptor, quem recebe essas mensagens, esse proceder. Assim, no fundo dos raps, em sua estrutura elementar, temos um movimento a que podemos chamar de papo reto, um movimento pendular entre quem fala e quem escuta, cujo objetivo é a conscientização dos jovens negros pobres de periferia. Abdias Nascimento, sociólogo e militante da luta negra brasileira, diz que foi sempre negado ao negro brasileiro o direito da conscientização, de se auto-afirmar negro e lutar a partir disso frente aos 400 anos de escravização institucional. Talvez por isso a urgência de conscientização que se explicita no Racionais, e que só acabará quando o genocídio acabar.

Rodrigo Mendes