Para salvar seu cargo, o presidente interino Michel Temer (PMDB) cumpre uma agenda que violenta diversos direitos. Recentemente, além da liberação de mais de R$ 5 bilhões em emendas para parlamentares votarem pelo arquivamento de denúncias contra si mesmo, Temer liberou recursos para o grande agronegócio, na tentativa de renovar o apoio da chamada Bancada Ruralista, dona de 211 deputados da Câmara Federal.
Um novo ataque, desta vez vindo do Supremo Tribunal Federal, preocupa principalmente os indígenas, que novamente devem sofrer as consequências dos interesses ruralistas. O chamado marco temporal é uma tese do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto, que surgiu em 2009, ao lado das 19 “condicionantes” inventadas pelo também ex-ministro do STF Carlos Alberto Menezes Direito no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O resultado é uma tentativa de malandragem jurídica ruralista para limitar as demarcações das terras indígenas. Diz esse argumento que os direitos territoriais dos povos indígenas só têm validade se eles estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988.
Reportagem do Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
O marco temporal estabelece que só teriam direito à demarcação os povos que estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Assim, ignora o histórico de remoções forçadas e outras violências sofridas ao longo de séculos pelos povos indígenas. A tese pode ser adotada em julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) marcados para o dia 16 de agosto. Saiba, no fim da notícia, quais são as ações em jogo no Supremo. “O marco temporal é inconstitucional. Na Constituição são reconhecidos os nossos direitos originários. A gente vem gritando, lutando para que as pessoas entendam essa questão”, afirmou Tiago Honório dos Santos, professor, membro da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) e morador da Terra Indígena Tenondé Porã, em Parelheiros (SP). Ele esteve presente em um ato-debate realizado na USP para discutir e alertar sobre o tema. “O argumento [do marco temporal] é absolutamente insustentável e falho em sua própria base”, disse em audiência no Senado Luciano Mariz Maia, coordenador da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (6CCR/MPF). Ele acrescentou que o STF tem a responsabilidade de garantir as terras aos povos indígenas independente de data e lembrou do Parecer da Advocacia Geral da União (AGU) assinado por Temer, em julho, obrigando todos os órgãos do Executivo a aplicar o marco temporal, além de vedar a ampliação de terras já demarcadas: “O que temos é uma organização do Estado incapaz de garantir o direito dos índios à sua terra sem turbação, sem violência, e o Estado brasileiro sendo deficiente no seu dever de demarcar as terras indígenas”.
A presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Lia Zanotta, destacou que o marco temporal “apaga e invisibiliza a ocupação das terras originárias dos povos indígenas porque as populações originárias foram levadas a expulsões, a realocamentos”. Zanotta lembra que o próprio Estado brasileiro promoveu várias destas expulsões. Ela também participou da audiência pública no Senado Federal. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha afirmou, na USP, que o momento atual é marcado por “um presidente que não liga a mínima para a sua popularidade e que é capaz de fazer qualquer negócio para evitar tudo que lhe cai em cima e, com isso, o agronegócio está levando todas”. Nas palavras da antropóloga, o marco temporal é uma “doutrina completamente inventada e falaciosa”.
A pauta quilombola também fez parte do debate na USP. No dia 16, também haverá o julgamento pelo STF de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) visando derrubar o Decreto 4.887/2003, que regula a titulação de quilombos no país. A ação foi proposta pelo Partido Democratas (DEM). No julgamento, também existe o risco de adoção do marco temporal. “Titular terra indígena, titular terras de quilombos, essas terras ficam para as futuras gerações das comunidades. Votar pelo marco temporal é um voto racista. A pretensão da ADI é uma pretensão racista”, criticou Oriel Rodrigues de Moraes, assessor jurídico da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).
Entenda as ações no STF
A ACO 362, primeira na pauta, foi ajuizada nos anos 1980 pelo estado de Mato Grosso(MT) contra a União e a Funai, pedindo indenização pela desapropriação de terras incluídas no Parque Indígena do Xingu (PIX), criado em 1961. O estado de Mato Grosso defende que não eram de ocupação tradicional dos povos indígenas, mas um parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) defende a tradicionalidade da ocupação indígena no PIX, contrariando o pedido do estado de MT.
Já a ACO 366 questiona terras indígenas dos povos Nambikwara e Pareci e também foi movida pelo estado do Mato Grosso contra a Funai e a União. Semelhante à 362, ela foi ajuizada na década de 1990, pede indenização pela inclusão de áreas que não seriam de ocupação tradicional indígena. Neste caso, a PGR também defende a improcedência do pedido do estado do MT.
A última que será julgada no dia 16 é a ACO 469, sobre a Terra Indígena Ventarra, do povo Kaingang. Movida pela Funai, ela pede a anulação dos títulos de propriedade de imóveis rurais concedidos pelo governo do Rio Grande do Sul nesta terra, conforme exige a Constituição. A ação é simbólica dos riscos trazidos pela tese do “marco temporal”: durante a política de confinamento dos indígenas em reservas diminutas, os Kaingang foram expulsos de sua terra tradicional, à qual só conseguiram retornar após a Constituinte, com a demarcação realizada somente na década de 1990. Sem relator, a ação tem parecer da PGR favorável aos indígenas e está com pedido de vistas da ministra Carmen Lúcia, que deve ser a primeira a votar.
* Também foram utilizadas informações publicadas na Carta Capital e do Instituto Humanistas Unisinos