Bruno Lima Rocha, 24 de abril de 2018
A América Latina está diante de uma nova guinada à direita, em um período quando o mecanismo eleitoral, a frágil soberania popular parcialmente tolerada pela democracia indireta liberal-burguesa, se vê ameaçado. Até a ilusão de indicar um mandatário em formato quase plebiscitário está concorrendo contra sutis manipulações (através de algoritmos e fake news) culminando com fraudes escancaradas e grosseiras, como é o caso atual de Honduras.
Em 26 de novembro de 2017 foram realizadas eleições gerais no país centro-americano que nos anos ’80 foi base territorial para a chamada “contra revolução” da América Central, com ênfase na presença imperialista contra o regime sandinista na Nicarágua. Durante a aplicação da “teoria do dominó” na Era Reagan acompanhada do emprego da guerra de extermínio de terra arrasada, Honduras foi o país que recebeu maior contingente de contras nicaraguenses e cujos oficiais de carreira nas forças armadas têm a maior proporção de pessoal militar treinado nos EUA.
A história das eleições de 2017 tem relação direta com o passado pró-imperialista dos anos ’80. O presidente Juan Orlando Hernández (JOH, eleito em janeiro de 2014, oligarca e pró-yankee do Partido Conservador) modificou a constituição do país garantindo o estatuto da reeleição. Vale lembrar que em junho de 2009, o então presidente José Manuel Zelaya Rosales (um oligarca remodelado do Partido Liberal), eleito em 2006, tentou modificar a carta magna do país (escrita por generais formados na Escola das Américas, liderados pelo ditador-general Policarpo Paz García, e decretada em janeiro de 1982) e a resposta da Suprema Corte de Justiça foi autorizar a intervenção militar e empossar a Ricardo Micheletti – cujo governo não foi reconhecido internacionalmente – até a eleição do conservador Porfírio Lobo (em um pleito onde foi proibido a Zelaya de concorrer) em 2010. Desde então a presença política do Partido Liberal – que em um típico giro latino e centro-americano se torna uma legenda progressista e de centro-esquerda – vem sendo tolhida pela força do aparelho de Estado e com a cumplicidade de órgãos internacionais. O próprio Zelaya Rosales retornou ao país após o golpe, ficando protegido dentro da Embaixada do Brasil em Tegucigalpa por mais de quatro meses, até partir para o exílio definitivo. Zelaya participou em 2017 da campanha vitoriosa e fraudada pelo Partido Conservador e hoje coordena a desobediência civil contra o golpe eleitoral.
Não bastasse mudar as regras do jogo com a partida em andamento, JOH concorreu contra Salvador Nasralla (Partido Liberal e indicado político de Zelaya Rosales), e estava perdendo na contagem de votos quando houve um mais que suspeito apagão elétrico no país (a contagem de votos é manual e as cédulas em papel), levando ao Tribunal Supremo Eleitoral de Honduras (TSE) a suspender o anúncio do vencedor. Passados 17 dias, a corte eleitoral dominada por partidários de JOH e apoiadores do golpe de 2009 reconhece a vitória da situação, convertendo Honduras em uma autêntica ditadura civil. O fato político, uma fraude eleitoral evidente através de um governo que alterna a Constituição – permitindo a auto reeleição e não é impedido pela Suprema Corte, o oposto do que ocorrera em 2009 – implica em um novo padrão na América Latina.
Honduras reproduziu na América Central uma vergonhosa fraude eleitoral como a ocorrida no pleito presidencial do México em 2006. Na ocasião Felipe Calderón (concorrendo pelo Partido da Ação Nacional, PAN, de corte neoliberal e que rompera com mais de 70 anos de domínio priista) ganhou a corrida fraudando as urnas contra Andrés Manuel López Obrador (do Partido da Revolução Democrática, PRD, então ex-governador do Distrito Federal de Cidade do México). Novamente a fraude se seu na contagem eleitoral levando o país tanto ao impasse como definindo a ilegitimidade do governo “eleito”. Os votos da cidadania mexicana começaram a ser contados em seis de julho e os resultados só foram confirmados em setembro de 2006. Em Honduras ocorreu algo muito semelhante, somado ao requinte de um suspeito acidente de helicóptero onde estava a irmã do presidente JOH e mais cinco pessoas, mas no momento exato em que o candidato eleito Nasralla estava em Washington pedindo o apoio – não concedido – do Departamento de Estado e da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Para além da coalizão eleitoral que ganhou, mas não levou, se verifica diariamente em Honduras um contínuo estado de desobediência civil e indignação coletiva, iniciados em julho de 2009 quando do primeiro golpe civil com aval da Suprema Corte. Tal padrão se mantém e ganhou intensidade na virada do ano de 2017 e agora em 2018. Mais da metade da população sequer reconhece o governo reeleito através da fraude e o Poder Executivo “governa” através do frágil apoio das forças armadas do país e com o aval da Casa Branca.
Como o governo ilegítimo de Juan Orlando Hernandez atua de forma discricionária e assina uma série de parcerias público-privadas, sistemas de concessões e privatizações de quase toda a frágil infraestrutura existente no país, já se afirma que o Partido Conservador em consonância com os EUA instalaram um regime. Este teria como base um poder autoritário civil, eleições fraudadas, frágil legitimidade e, ao mesmo tempo, um consenso de elite local de desmonte das condições básicas do país aderir ao Sistema de Integração Centro-Americano (SICA) e o Mercado Comum do istmo, mas de forma livre e independente, sem abrir para a presença do capital transnacional de forma absurda, sem controle algum e com ausência de soberania. A grande possibilidade do povo hondurenho, do país e dos países vizinhos de alcançar um desenvolvimento baseado em suas próprias necessidades e demandas, seria justamente o oposto, promovendo uma integração horizontal entre os países centroamericanos e sempre defendendo os recursos naturais e a infraestrutura já existentes.
Trata-se de um país com quase dez milhões de habitantes, convivendo com um altíssimo índice de extrema pobreza. O presidente ilegítimo JOH aplica de forma integral o novo modelo de dominação latino-americana: judicialização da política e fraudes dentro do frágil sistema de consulta eleitoral. No centro decisório, as metas estratégicas de desmonte das capacidades nacionais e privatização de áreas estratégicas como setor elétrico, vias públicas, águas. O regime executa mais de 500 projetos privatizantes após a fraude eleitoral.
Honduras se apresenta como o laboratório da distopia neoliberal latino-americana, com o aumento do custo de vida e da pobreza, assim como da rebelião permanente.
Bruno Lima Rocha é cientista político, professor de relações internacionais e de jornalismo
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