Hegemonismo disfarçado de “unidade” e a unidade que se forja com luta e organização

Por Bruno Lima Rocha – 14 de junho de 2020 – charge de Rafael Costa

Ao longo das últimas duas semanas venho promovendo na coluna que produzo para algumas emissoras livres e comunitárias um debate direto e tranquilo. Trata-se de aderir ou não (fisicamente) aos atos antifascistas e antirracistas. Também abordo o tema da unidade possível e do leque de alianças desejável. Não me refiro em momento algum a quem está preocupado com a pandemia e como todas e todos nós, entendemos que a orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o isolamento social está correta. Se a preocupação maior for a de evitar a propagação do contágio por aglomeração e contato físico, não há sombra de dúvida que é uma posição sólida e honesta intelectualmente. Tampouco na crítica, jamais me refiro a individualidades e sempre a lideranças consolidadas, com cargos eletivos ou postos de direção em partidos e movimentos. Também fica a crítica para as celebridades e subcelebridades, acadêmicas, artísticas ou esportivas que, sem compromisso político, aproveitam momentos de organização social para se promover.

O tema é de fundo. Cada vez que se proclama unidade e, em especial, da centro-esquerda para a esquerda eleitoral e para com as esquerdas ainda mais à esquerda, muitas das vezes a luta é por hegemonismo e não por unidade. Porque unidade tática implica em divisão de tarefas e em aceitar os limites de cada ato. Por exemplo: se o acordo único de três setores é ficar no protesto estacionário em uma praça, e o acordo de dois setores é uma marcha e, após o ato, um terceiro grupo quer seguir, se trata de uma unidade tática, faz parte da luta política. Algo semelhante ocorre na marcação de posições, estética dos atos, tipos de fala e discurso e, algo ainda meio fora de moda na centro-esquerda, a necessária consequência para segurar as palavras de ordem no mundo físico.

A unidade programática vai sendo construída e a melhor forma de estragar tudo, de deixar todas e todos desconfiando de quase tudo é a busca por “faturar em cima de algo”, de modo particular. Delegações que nunca existiram, intérpretes de internet sem legitimação daqueles e daquelas a quem se diz interpretar e a sempre perigosa taxonomia pós-fato. Explico e exemplifico: a análise do Marx, da Comuna de Paris, onde ele não tinha correligionário algum – ou quase nenhum – e jamais incidiu através do SPD alemão (Partido Social Democrata Alemão), que por sinal invadia Paris junto aos soldados do governo traidor de Versailles. Não se trata de análise, mas sim de pura propaganda, o mesmo que se fez no Brasil com 2013, “chutometria” ampla geral e irrestrita, teses absurdas de quem ouviu falar de umas ideais estapafúrdias de Manuel Castells (ainda quando ele era entusiasta da internet) e sai reproduzindo colonizadamente em nosso país tropical. É a sina dos imitadores. Temas da moda, sem base social e, no campo da pesquisa sociológica, sem pesquisa de campo. Trata-se de interpretação de conveniência. Logo, vai ao encontro das versões da moda ou hegemônicas. Parece que 2013 é agora, embora com maior abrangência.

Ocorre, no Brasil de 2020, tudo de novo: gente que não conhece o que está sendo organizado no país, desconsidera o esforço gigantesco de pessoas da esquerda dentro das torcidas organizadas, de modo a transformar uma ala inteira em antifascista. Daí, diante do poder de alguma trajetória cumprida e do poder imbuído pelo sofá da sala, “intelectuais de butique” declamam: “eu não conheço, logo, morro de medo”. Briosos “social-democratas” vomitando regra da janela e desfazendo de tudo o que corre à margem de sua capacidade de interpretação, já que inserção social essa gente já  quase não tem mesmo.

Enfim, com oportunismo não sai unidade alguma, assim como presepada e molecagem em matérias sensacionalistas. Dá problema igual, já que a cultura política está tristemente marcada por individualismos e não por gente com alguma capacidade de produção intelectual se colocando a serviço de causas coletivas. Trata-se de servir à luta do povo e não delas ir se servindo para auto-promoção. Nestes quinze anos de produção semanal ou diária na internet brasileira, venho tendo a sorte e também o cuidado de saber que a imensa maioria de quem me atura aqui está no primeiro bloco, dedicando suas vidas e voltando parcelas importantes de seu cotidiano a pensar e projetar a realização coletiva e a justiça social.

É assim mesmo, com alteridade, pisando na humildade, que a gente pode estar ao lado e a serviço das causas coletivas e não ao contrário. O mesmo se dá no processo político. Felizmente venho de uma tradição que quem propõe encaminha, onde as responsabilidades se distribuem (tarefa de todos, sem atribuição é tarefa de ninguém e não se cumpre) e as delegações acontecem e são cobradas. De onde venho, acordo se cumpre, é uma tradição em que ninguém se auto-elege, mas sim briga, no bom sentido, para estar à frente e se doar. Não tem outra forma.

Espantar os oportunistas é tarefa coletiva e traçar a unidade é através do convívio em luta e do bom debate, fraterno e sem ironia ou pilhéria. O inverso também é verdadeiro. Sinto que é uma pena ter de debater isso em pleno junho da pandemia, em 2020. Mas, se isso nos cabe, não resta outra posição a não ser assumir o bom combate.

 

Paradoxos dos intelectuais do século XXI

Intelectual orgânico é orgânico de alguma entidade, partido, movimento, instituição coletiva, enfim, está vinculado a alguma força política e social, compartilhando espaços e instâncias. Do contrário é um paradoxo. A pessoa quer ser orgânica, mas não se organiza e quer dar linha sem se submeter à decisão coletiva. Perdoem-me a escatologia, mas isso é querer defecar regra ao falar ou digitar.

Não se trata, em absoluto, de subordinar a produção analítica a alguma linha política a priori. Análise é coisa séria e não pode ter travas, censura ou qualquer tipo de constrangimento. Mas linha não é isso. Linha é coletiva, implica no compromisso de muita gente e ficar determinando na internet “faz isso ou faz aquilo” quase sempre acaba substituindo ou querendo substituir a decisão coletiva, como se fosse possível ter uma ação do coletivo sem coletividade.

Modestamente, quero fazer um pequeno aporte. A análise do inimigo é liberada, assim como de forças concorrentes. O que pode mudar é o tipo de publicidade que o texto ou a fala podem ter. Daí a recomendar o que deve ser feito é tarefa da instância devida, legitimamente eleita e sob o controle coletivo.

 

Personagens da internet e compromisso político

Sinceramente, entendo que esta versão é a mais absurda de todas. Porque se for o tema do humor jornalístico – como o repórter interpretado por Marcelo Tas, o inesquecível Ernesto Varela, pegando no pé da ditadura decadente e da cartolagem – aí é compreensível. Se for o humor político, de grande tradição no Brasil, melhor ainda. Mas nenhuma destas duas versões do humor tem o peso de grandes “influenciadores” que tiram linha política da cabeça, coordenam comportamento de manada na rede e transformam episódios da vida privada em passagens “relevantes do empoderamento pessoal”. Assim fica difícil.

Muitas vezes, a linha está acertada e manifesta coerência ao menos com as bases teóricas e até epistemológicas anunciadas. Noutras, nem isso. Mas o efeito é sempre o mesmo. Quando há individualismo, uma espécie de culto da personalidade cibernética, quem gera o culto é o/a totem falante e sua claque. Nesta esteira outras e outros se somam, operando com as ferramentas dos algoritmos, como tuitaços, postagens em massa e, se tiver acesso a recursos de fundo partidário, o emprego de robôs. Evidente que faço a crítica dos personagens que estão “à esquerda” a partir do centro e, ainda assim, há diferença entre quem opera a serviço de uma força política – que lhe dá voo livre contanto que as besteiras acumulem para seu partido de alguma forma – e quem se esforça para gerar análise e opinião, estando com vínculos ou não.

Não tem nada de hipócrita nesta fala, já que em tese, este que escreve está na segunda modalidade, embora com vínculos explícitos a uma força política da ponta esquerda não eleitoral. Se aqueles e aquelas que me leem, ouvem as colunas de áudio e assistem aos programas e palestras deixarem de acessar porque precisam se dedicar integralmente à luta organizada, à inserção social e à organização de base e à construção orgânica,  logo,  esse que fala e escreve sem parar terá atingido seu objetivo. Trata-se de trabalho analítico no apoio militante e não na substituição da militância.

O mesmo se dá na exigência de ser coerente com programa e história. Não tem o menor cabimento forças políticas que se dizem “disciplinadas e centralizadas” liberarem seus papagaios falantes a dizer qualquer coisa só para ganhar audiência. É óbvio que essa é uma manobra hipócrita – mais uma que vamos aturando e enfrentando desde a 1ª Internacional – na cabeça de que vale quase tudo para manter a disputa fratricida dentro da esquerda. É economia de preguiçoso.

“Mais fácil” tirar militância já (de) formada do que organizar do zero.  “Mais fácil” reforçar o culto da personalidade, do que insistir em comportamento coletivista, mesmo em tempos de tamanho capitalismo, cada vez mais individualista. “Mais fácil” imaginarem adular o “camarada Xi Jinping”, assistindo concorridos espetáculos de falatório, do que admitir que a China opera com um modelo próprio de imposição de vontades e canalização de excedentes de poder. “Mais fácil” delirar com o czar Vladimir Putin, estando à frente do aparelho de segurança que tem tradição czarista, ainda com a Okhrana, e fingir que não estão numa relação no mínimo cúmplice com o neofascismo auto-apelidado de NR e outras excrescências. Parece que a hipocrisia que deu base para o Pacto Infame Nazi-Soviético, o Acordo de não agressão entre a Alemanha nazista e a URSS com o czar vermelho Joseph Stálin, conhecido como Ribentropp-Molotov, segue viva e proliferando em metástase.

 

Separar os papéis e apoiar a militância social concreta

Sei que um texto como esse pode soar até sectário em plena luta contra o protofascismo da pandemia. Mas é nesses momentos mais críticos que as linhas políticas têm mais dificuldade em se revelar,  saindo do senso comum e das armadilhas do “não resta muita alternativa”. Citando o bruxo da ditadura, Golbery do Couto e Silva: “se analisa para incidir sobre as realidades”. Golbery é nosso inimigo histórico e, por isso, devemos conhecê-lo, assim como Meira Mattos e demais facínoras intelectuais da ditadura. Isso é diferente do encantamento que se tem com o jogo político entre as elites consolidadas e à adesão quase imediata às posições de mal menor no curtíssimo prazo.

Na política, sempre é preferível ser equivocado a omisso. Também é importante não cair em reboquismo do tipo “manda brasa presidente”, como no pré-64 (e o Jango deu no pé sem autorizar a resistência). O momento é de acumular socialmente e desgastar a extrema direita politicamente. Creio que essa posição é próxima do acordo mínimo. No mais, muito está por construir e por reconstruir. Como dizem as companheiras e companheiros com trajetória ilibada e décadas a serviço da luta do povo através das pastorais sociais – “não ser nem água nem caneca, estar no meio e a serviço”. O povo brasileiro, os povos dos Brasis de Palmares e Pindorama têm uma oportunidade histórica de avançar dentro das maiores dificuldades de nossa história recente. Que sirva a máxima de Sepé Tiarajú (1723-1756) e que nada nem ninguém se sirva da luta coletiva e sim a ela se dedique, da melhor forma possível. Porque como nos ensina a combativa economia política crítica, o todo é sempre maior do que a soma das partes.

 

Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em economia política, doutor em ciência política e professor universitário nos cursos de relações internacionais, jornalismo e direito; editor dos canais do Estratégia & Análise, a análise política para a esquerda mais à esquerda.

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