ESPECIAL 8M: MULHERES RESISTEM! – Há lugar para os homens no debate de gênero e nas lutas feministas?

Nesse mês de Março, nós do Repórter Popular estamos organizando uma série de publicações sobre a questão das mulheres. O quarto texto que escolhemos para a série discute o lugar dos homens na luta feminista. Além dos temas que trabalhamos até aqui (violência obstétrica e a ideologia de gênero, amamentação), também vamos trazer reflexões sobre outras questões relacionadas a saúde da mulher, reforma da previdência, ao feminicídio, entre outros temas.

Este texto foi originalmente escrito na época da Copa do Mundo de 2018 e dirigido a homens defensores de direitos humanos, em virtude de certo desdém pelo episódio de assédio à repórter russa, amplamente divulgado na mídia e redes sociais. Para esta série do Repórter Popular, ele foi adaptado, mas mantendo seu foco: um homem abordando o papel dos homens no debate de gênero e nas lutas feministas.

Há cerca de oito meses, muita gente estava acompanhando a Copa do Mundo de Futebol. Sabemos que ela não é feita apenas de jogos e entretenimento. O mundo do futebol e do espetáculo capitalista, às vezes, nos dá o reflexo amplificado do que acontece cotidianamente em nossa sociedade: preconceito, opressão, violação de direitos. Em 2014, no Brasil, comunidades inteiras foram violentadas com as remoções para as grandes obras e manifestantes contrários ao megaevento, em virtude das violações de direitos, sofreram com a repressão do Estado.

Em 2018, na primeira semana da Copa na Rússia, um casal de homens gays foi espancado e pelo menos um deles foi gravemente ferido. Alguns dias depois, outra cena irrompeu nas redes sociais: um bando de homens brasileiros cercaram uma repórter russa e a assediaram sem nenhum constrangimento. O vídeo viralizou, produzindo muitas denúncias, mas também justificação dos atos machistas e culpabilização das mulheres. Entre os homens envolvidos, um tenente da Polícia Militar, um engenheiro civil e um advogado[1] – o perfil do “cidadão-de-bem”. Não foi um caso isolado. Segundo matéria do Brasil de Fato, Renata Mendonça, jornalista e uma das fundadoras do coletivo Dibradoras, que estava na Rússia a trabalho, afirmou: “Eu vi aqui, pessoas em Moscou, de outras nacionalidades, fazendo coisas similares, com comportamento parecido [ao dos brasileiros]. Nós vemos situações em que homens, de várias nacionalidades, tentando forçar um beijo, tentando cercar a menina de todas as formas, ela diz não, e o cara fica insistindo”.

Indagar e aprender para reconhecer privilégios e responsabilidades

O episódio nos faz pensar que existe certa “indignação seletiva”, que se surpreende mais com este tipo de assédio a uma mulher branca europeia que com as situações cotidianas vividas, por exemplo, por mulheres negras em nosso próprio país. No entanto, o ocorrido deve servir de mote para que reflitamos: que tipo de relações construímos que produzem essas violências e qual a responsabilidade de todos os homens nisso? Não há espaço para homens que lutam por justiça social, liberdade e igualdade, se nós não começarmos por nos indagarmos.

Somos educados a não nos comprometermos com as vidas alheias e vínculos sociais ao nosso redor, a começar pelas vidas e relações dentro de casa. Isso se estende pela vizinhança e pela escola. O patriarcado é, resumidamente falando, uma forma de estruturação das relações sociais, públicas e privadas, baseadas na desigualdade de poder entre mulheres e homens. Embora se materialize em todas dimensões da vida, ele se manifesta no ambiente doméstico-familiar de modo exemplar: relegando-o tradicionalmente à responsabilidade feminina. As “mães solo”, que certamente não geraram bebês sozinhas, talvez sejam o melhor indício da batalha cotidiana das mulheres diante da desresponsabilização masculina. Os homens adultos que têm irmã(s), se fizerem um esforço, lembrarão de como foram educados de forma completamente diferente, a começar pelas brincadeiras às quais são estimulados. E o mesmo se reproduzindo nas salas de aula de educação infantil e outros ambientes. Quem brinca de cuidado e é ensinada a ser paciente, meiga e carinhosa na infância? Quem é incentivado a ser forte e tomar posições de comando, a não chorar? Quem arca com mais tarefas domésticas? E quem é mais protegido da responsabilização na infância?

Uma síntese deste problema circulou recentemente nas redes sociais através de uma frase que problematiza o mito da “menina madura”, dizendo mais ou menos o seguinte: “as mulheres não amadurecem mais rápido, elas são penalizadas mais cedo que os homens por irresponsabilidades”. Já que começamos falando de futebol, vamos ao caso de Neymar e todas suas atitudes dissimuladas, agressivas e irresponsáveis, largamente criticadas nas redes sociais e em grande parte do jornalismo: até hoje sendo chamado de “menino”, o caso do jogador talvez seja emblemático do fenômeno, em larga escala, da desresponsabilização dos homens por comportamentos socialmente nocivos.

Para começo de conversa, nos coloquemos no centro do problema ao invés de jogar a culpa na “cultura e nos costumes” ou mesmo em outros homens, que são “homens maus”. Nós somos os grandes promotores da violência em geral e os protagonistas da violência de gênero. Segundo o novo Atlas da violência no Brasil, o feminicídio mostra-se na taxa de 4,5 mulheres mortas a cada 100 mil. Vale lembrar que, no caso das mulheres negras, essa taxa chega a 5,3 (taxa que vem aumentando e atingiu crescimento de 15,4%, ao contrário do que ocorre com mulheres não-negras, com queda de 8%). Os dados, se entendidos dentro do problema do patriarcado, nos dizem que não é pouco afirmar que “o machismo mata”[2]. Em apenas 20 dias de 2019, foram (sub)registrados 107 casos de feminicídio. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016, tivemos quase 50 mil estupros, o que representa uma média 135 estupros por dia no país (certamente este número é maior devido a subnotificação). E vale lembrar: quando não agredimos fisicamente, somos os agressores psicológicos na escola, no trabalho, em casa.

Para além das violências do dia a dia, é preciso lembrar que são majoritariamente homens aqueles que ocupam os lugares de poder no Brasil (nas igrejas, nos parlamentos, no judiciário e nos governos). Exercendo o poder do alto de seus postos, são homens os que tentam controlar os corpos e, indiretamente, matam pelo menos uma mulher a cada dois dias devido a abortos clandestinos inseguros em virtude da manutenção da criminalização do procedimento – segundo dados a Organização Mundial de Saúde.

Porém, para especificarmos ainda mais a questão, no âmbito que estamos buscando refletir, o evento do assédio à repórter na Copa do Mundo e toda reflexão sobre o machismo lança uma outra questão: o que compete a nós, homens lutadores dos direitos humanos, homens de esquerda, defensores da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres? Por que muitas vezes, diante de eventos semelhantes, nós silenciamos ou relativizamos a gravidade das violências sofridas por mulheres? Não são apenas os homens acusados e condenados por violência os responsáveis pelo machismo da sociedade. Estes são, em grande medida, um produto de relações sociais que todos mantemos e reproduzimos. Afinal, por que não questionamos nosso lugar privilegiado em escalas micro e macro? Por que não nos opomos aos amigos quando fazem piadas machistas ou difamam mulheres em círculos masculinos? Pois mesmo nos comportamentos mais banais estamos perpetuando relações de poder e dominação que subjugam as mulheres.

Os exemplos são tantos quantas relações estabelecemos diretamente com mulheres[3], incluindo homens de esquerda/progressistas: damos mais atenção a homens, não nos referimos às mulheres quando há homem ou homens no mesmo grupo, explicamos o que uma mulher acabou de dizer, minimizamos os argumentos de mulheres, enxergamos questões privadas em problemas coletivos, culpabilizamos uma mulher vítima, fazemos piada com o que na verdade é violência de gênero, sexualizamos os corpos e palavras das mulheres a todo instante. Tudo, permeado pela estigmatização cotidiana de um imaginário masculino que impõe às mulheres os rótulos de “putas”, “santas” e “loucas”.

A luta popular não se separa das lutas feministas

Estes exemplos de pequenas omissões, pequenas violências, somada a todo um contexto de violações estruturantes na sociedade, expressam o machismo arraigado em todos nós. O que vem se tornando ainda mais grave no atual contexto em que temos um homem que odeia as mulheres sentado na cadeira da presidência da república, cujo discurso espalha violência nas ruas e nas redes sociais. No entanto, a questão inclui a nós, homens da esquerda, simplesmente por que vivemos em uma sociedade que reproduz o privilégio de ser homem (especialmente de ser homem branco, hétero, cis e não-pobre). Não é à toa que as feministas de esquerda já cunharam o termo “esquerdomacho” para denunciar nossas práticas machistas.

Sem combater o machismo e o patriarcado em cada ínfimo ato de perpetuação da dominação masculina, seguiremos sendo cúmplices e, por isso, responsáveis. Se nós, homens, desejamos e lutamos por uma sociedade mais justa, fraterna e solidária, sem exploração e sem opressões, precisamos realizar esses movimentos de reflexão que propomos até aqui: reconhecer nossa responsabilidade na perpetuação do machismo com nossas ações e com nosso lugar privilegiado e entender como a masculinidade hegemônica, produzida e reproduzida em várias dimensões da vida, é tóxica ao conjunto da sociedade – incluindo aos próprios homens heterossexuais, mas, obviamente, sendo muito mais prejudicial às mulheres e pessoas LGBTs.

Há experiências de grupos de homens para reflexão e reconhecimento pipocando pelo país (que são tanto mais relevantes quanto mais pautados pelo feminismo, evitando autocentramento ou autovitimização). Mas isso não é suficiente se quisermos fazer diferença ativa em espaços compartilhados com mulheres e na luta em geral. Devemos partir do princípio que a pessoa oprimida tem razão, antes de buscar qualquer argumento “neutro”, “ponderado” ou “relativista”. Isso não significa não debater, mas praticar um exercício de ouvir atentamente e entender quem é afetado diretamente por relações de opressão (isso serve para gênero, mas também para raça e para classe). É necessário praticarmos tanto quanto possível a auteridade (se colocando no lugar da outra pessoa), sendo capazes de nos descentrarmos de nossa condição para apoiar a luta pela emancipação das mulheres, inclusive abrindo mão e questionando nossos confortáveis lugares privilegiados em casa ou em ambientes públicos. Por outro lado, sabendo que há certos saberes que só são possíveis quando se experimenta, não podemos achar que sabemos “o que é” ou “como é” se não vivemos. Por isso, devemos saber que o lugar de protagonista na elaboração do problema que se enfrenta e na própria luta não é, em nenhuma circunstância, dos homens. Não tomar o lugar ou a palavra, mas ter lado: esse é o desafio.

Tomar parte nas lutas feministas é tomar parte na luta das classes e grupos oprimidos. Significa lutar por dignidade, pelo direito à vida, pelas liberdades individuais e coletivas e por justiça, entendendo a necessidade de um corte de gênero nas correlações de forças em sociedade para a construção de um outro modo de viver. Uma ou várias lutas entrecruzadas: contra o patriarcado, o racismo e o capitalismo. Por isso, sem nunca nos tornarmos porta-vozes de qualquer tipo, sejamos companheiros das mulheres e solidários às lutas feministas, com todo respeito e empenho militante. As lutas das mulheres, por pautas de gênero ou protagonizando lutas populares mundo afora, têm nos mostrado o quanto é legítima e estratégica a peleia com viés feminista, não apenas “para elas”, mas para o conjunto da sociedade.

Na histórica luta das mulheres do campo, nas recentes manifestações do Chile ou Argentina, nas ocupações de escolas e universidades no Brasil, as mulheres estão ultrapassando os limites da política representativa, rompendo a dimensão indireta da participação (via partidos tradicionais e entidades estudantis burocráticas) e construindo democracia e ação diretas. Se militamos com inserção social na realidade, considerando as condições de rebeldia diante de conflitos, precisamos perceber a amplitude do fenômeno. E, assim, estarmos em condições de sermos militantes que contribuem para articular lutas, ajudar a organizar e fazer transbordar a revolta contra o conjunto de opressões em prol de uma política que escapa e duela com os poderes do Estado, do latifúndio, do sistema financeiro e dos grandes conglomerados empresariais. O recado que devemos ouvir de todas essas batalhas é que não há construção de poder popular sem o protagonismo das mulheres.

(Por J. M., militante da Resistência Popular)

[1] https://exame.abril.com.br/carreira/por-esta-demissao-por-justa-causa-brasileiros-na-russia-nao-esperavam/

[2] https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/03/08/cai-o-no-de-mulheres-vitimas-de-homicidio-mas-registros-de-feminicidio-crescem-no-brasil.ghtml

[3] https://papodehomem.com.br/sinais-de-que-eu-sou-um-machista-de-esquerda/