Dicas de cinema em tempos de covid-19

Certa vez um professor meu, em uma aula de literatura, disse algo mais ou menos assim sobre a relação vida-leitura: temos o problema da brevidade e da infinitude: brevidade porque vamos morrer uma hora, então temos que escolher as leituras que faremos; infinitude porque há inúmeras, infinitas obras de arte, tornando impossível o consumo de todas. Pois bem, considerando o problema em questão, farei o que estou vendo muitos fazerem nesses tempos de pandemia: dicas de cultura, aqui no caso de filmes. Sigo aqui a sugestão de Evelin Padilha Vigil – estudante de ciências sociais e militante, que contribuiu algumas vezes na minha coluna –, que sugeriu a ideia de eu selecionar filmes gratuitos encontrados no Youtube que eu achasse interessantes.

Para começar, fiz uma busca no Youtube com filmes completos disponíveis gratuitamente. Lá tem Glauber Rocha com dois dos seus clássicos filmes, a saber, Deus e o diabo na terra do sol (https://www.youtube.com/watch?v=RyTnX_yl1bw), de 1964, e Terra em transe (https://www.youtube.com/watch?v=zYQecb9C0g4&t=3s), de 1967. O cinema do Glauber faz parte do movimento artístico chamado Cinema Novo, encabeçado pelo diretor, escola estética que é a correlata da nouvelle vague francesa, de nomes como Godard, Varda, Eustache, Truffaut. Nos anos sessenta, esses diretores buscaram uma “ruptura” com a tradição cinematográfica anterior, a chamada neorrealismo, que Nelson Pereira dos Santos é referência no Brasil. Para se contrapor ao neorrealismo, os vanguardistas do Cinema Novo investiram num jeito de fazer cinema diferente, meio “surreal”, com repetições de cenas, inovações no som, no jeito de gravar. Ambos os filmes de Glauber, Deus e o diabo e Terra em transei representam um Brasil durante a década de 60, que foi desenvolvimentista e foi palco da Ditadura Militar. O sertão tensiona o desenvolvimentismo que construiu Brasília e em Terra em transe o povo não tem voz, em uma cena memorável do cinema brasileiro. Um filme que escracha a política institucional brasileira, cheia de compadrio e repressão aos de baixo. Dois grandes filmes.

Do Brasil para a Europa para encontrar dois gigantes das telas: Ingmar Bergman e Andrei Tarkovski. Comecemos pelo professor, Bergman, que muito influenciou Tarkovski. Vi que tem completo e com legendas em português Luz de inverno (https://www.youtube.com/watch?v=oZUoT3CY6Lc), de 1963. (Coincidentemente é da mesma época que os filmes do Glauber Rocha.) Este é o segundo – e melhor, na minha opinião – filme da Trilogia do Silêncio, que engloba ainda Através de um espelho (1961) e O silêncio (1963), e conta a história de um padre que perde a fé. Tema muito comum na obra do diretor, a fé é contrastada com a materialidade da vida e suas demandas, o cotidiano de padre e a crença em deus entram em conflito. O filme é com Gunnar Björnstrand, parceiro habitual de Bergman.

E o pupilo de Bergman também está presente com filme completo no Youtube. Andrei Tarkovski conta com três longas com legendas em português. São eles Andrei Rublev (https://www.youtube.com/watch?v=VkCeEYuMyOY), de 1966, Nostalgia (https://www.youtube.com/watch?v=-gH1cprEg0w), de 1983, e O sacrifício (https://www.youtube.com/watch?v=UYOXUy9017U), derradeiro filme do grande cineasta russo, de 1986. Tarkovski é um dos diretores mais intrigantes que já conheci. Seus filmes oscilam entre o grotesco e o sublime, a memória, a natureza, o humano em relação ao seu mundo, a religião e a fé tensionadas. Em Andrei Rublev vamos à Idade Média, àquele cotidiano de bufões, bobos da corte, tavernas. A Arte em meio a isso nas pinturas de Rublev, pintor que realmente existiu – este filme tem versões de 3 e 3 horas e meia, bom se preparar. É um filme interessante na obra de Tarkovski também porque tem locações (lugares onde o filme foi gravado) enormes, retratando fielmente o iniciozinho do século 14. Nostalgia é um filme imageticamente lindo, como a maioria dos filmes de Tarkovski, e é sobre memória, conduzido pelo personagem principal, um poeta russo que busca entender a vida de um compositor do século 18. Este filme gerou um documentário bem interessante chamado Tempo de viagem, documentário sobre a procura por locações para gravar. E por fim O sacrifício, filme difícil, trabalha com a linha da vida e da morte, questiona significados religiosos, do sacrifício, etc. Mais um filme com fotografia belíssima. (Há uma cena, a maior de todas no filme (que obviamente não direi), que teve de ser gravada uma vez mais por problemas técnicos na filmagem. Cena que, segundo Tarkovski, é crucial para a obra.) A fotografia estava a cargo de Sven Nykvist, colaborador de sempre de Bergman e que foi também parceiro de Tarkovski em mais de uma ocasião.

Para não estender mais essa lista, fecho por aqui. A próxima dica sairá na próxima quinta (30), excepcionalmente a coluna será semanal e não quinzenal. Espero que seja útil para desfrutar de grande cinema nesses tempos de covid-19.

Rodrigo Mendes