Em tempos de pandemia, em que as teses liberais de desmonte das políticas públicas se chocam com mais rapidez no dolorido muro da realidade, e até joão dória parece encarnar a figura do Estado de bem-estar; enquanto o presidente da república bota em prática suas políticas de extermínio; muito se vê, sobretudo na internet, entre certa ‘esquerda da performance’, uma vaga e abstrata palavra de ordem. em cada corrente de whatsapp ou post de rede social ou tweet bem elaborado, lá está a mensagem: “defendam o SUS”.
Mas é como se a frase fosse autorrealizável: defender o SUS é escrever na internet exigindo que se defenda o SUS – e nada mais.
Acontece que, tal qual os miseráveis pensadores e políticos liberais que se curvam àquilo que sempre odiaram para não saírem mal na história (tarde demais, eduardo leite), essa “militância” [sic] de internet, cuja atuação política é quase sempre exclusivamente virtual, tem suas certezas contrariadas pela realidade.
O SUS, esse sistema imenso, pouco compreendido na sua complexidade pelo povo brasileiro, que foi uma das maiores conquistas das trabalhadoras no fim do século 20, que é o maior sistema de saúde universal e gratuito do planeta terra, que vem sendo sistematicamente sabotado, odiado, subfinanciado e desmontado por diferentes “gestores” do estado e que, só por existir, mesmo com todas as dificuldades, põe na parede a lógica capitalista de estado enquanto, da vigilância sanitária ao transplante de órgãos, salva a vida de brasileiros e brasileiras todos os anos…, Não é um sistema que se defende no abstrato, no vazio, como uma ideia na mente de quem é “a favor dos direitos sociais”, como uma realidade que deve ser mantida com hashtags e panelaços.
A começar, o SUS não é sequer uma realidade direito. Como fruto de luta da nossa classe e como ameaça que é à lógica do capitalismo, o sistema de saúde do brasil tem desafios de implementação e de permanência; as premissas e princípios do sistema, escritas à suor e sangue de trabalhadoras, ainda não são inteiramente uma realidade; e, para permanecer vivo como sistema, o SUS depende de uma complexa rede, quase invisível, constantemente ignorada, de trabalhadores, militantes, estagiárias, líderes comunitárias, gente do nosso povo que mantém o sistema de pé quase sem dinheiro e quase sempre sem os braços e a ‘disposição militante’ de quem agora grita “defendam o SUS” para uma bolha cacofônica.
Além disso, quando dizemos assim, no imperativo, pra que as pessoas “defendam” um sistema, com quem e pra quem a gente tá falando? De quem a gente tá exigindo defesa?
É da burguesia e dos seus veículos de mídia, que desde 1990 fazem de tudo pra que o SUS deixe de existir e constantemente difamam, desinformam e boicotam o sistema? É pra classe média que, embebida de ideologia dominante, odeia o SUS, trabalha dia e noite pra dar conta de pagar os inúteis, caros e assassinos planos de saúde, mas corre pro SUS a cada campanha de vacinação ou a cada negativa dos planos à assistência mais complexa?
Ou a gente tá exigindo “defendam o SUS” de quem já vive no/do/por causa exclusiva do SUS, desse povo que tá fora do mercado formal de trabalho e que tem no posto de saúde (ou, ainda, na ubs rural, na ubs fluvial, na unidade de saúde indígena…) o único contato positivo com uma política pública e que já defende arduamente o sistema, não por desejo nem por campanha de internet, mas porque não existe outra escolha?
A defesa do SUS precisa ser não um filtro na foto de perfil ou uma frase solta no twitter, mas um imperativo ético e programático da nossa ação política. A gente tem que pensar, primeiro, qual SUS a gente deseja e como o SUS se insere na nossa luta anticapitalista – porque, enquanto houver capitalismo, vai haver a mercantilização da saúde e a exploração do povo em níveis que sistema nenhum dá conta.
É preciso estar organizada coletivamente e ter um Programa, uma estratégia e táticas que coloquem a saúde pública em um sistema universal e gratuito como parte central da agenda. é preciso uma ampla campanha de luta por vida digna, que dê conta de ouvir e construir com diferentes setores do povo – nas escolas e universidades, nas vilas e ocupações, nos sindicatos e nos conselhos de saúde… – Toda uma série de ações que consolidem a força popular necessária pra, de verdade, defender a existência do SUS e também sua expansão e qualificação, seu financiamento adequado e sua ampliação, forjando, também, que a educação, o saneamento, a segurança, a habitação e tantas outras coisas essenciais pra nossa gente, a construir um modelo popular e universal.
Não é torcendo por ministros de saúde que são antipovo, ruralistas e milionários, nem votando nesse ou naquele político que parece menos pior nas eleições, que a gente “defende o SUS”. É com essa organização e com tal força popular, a mesma força que foi necessária pra ditar que “Saúde é direito de todos e dever do Estado” e criar o SUS.
A defesa do sistema de saúde universal e gratuito é a luta pela extinção dos planos de saúde, pela expropriação imediata de todos os recursos (hospitais, maquinário e trabalhadoras) do setor privado e pelo confisco do lucro dos banqueiros e outros bilionários; pela revogação do teto de gastos e por uma gestão popular do SUS – que a gente tome as decisões sobre o sistema que a gente financia e do qual a gente depende pra viver.
Só assim vai ser possível ter mais hospitais e equipamentos e, sobretudo, ampliar a atenção básica, descentralizar e desafogar as urgências e emergências, territorializar a saúde mental, qualificar e humanizar as trabalhadoras, expandir o sistema… Pra vencer o coronavírus, sim, mas também pro povo ter vida digna depois dessa e de outras crises. são demandas pela qual nos organizamos e lutamos há três décadas e cuja urgência se mostra, tristemente, com a crise que a pandemia desnuda.
Por isso, mais do que nunca, pelos doentes morrendo de vírus nos hospitais ou pelos corpos que o capitalismo empilha, com ou sem pandemia, defender o sus precisa ser uma frase que se insere na luta por uma outra vida possível, precisa se transformar em ação política concreta, precisa ser mais do que uma frase, mas um conjunto organizado de ações militantes que deem conta do enorme desafio que temos como classe, em um país de mais de 200 milhões (!) de trabalhadoras.
Só assim a gente defende o sus e não apenas exige, no vácuo, que os outros o defendam.
Texto de Opinião de Guilherme Ulema,
militante da Resistência Popular Estudantil de Porto Alegre
guilhermeulema@hotmail.com