24 de setembro de 2019 – Bruno Lima Rocha
Inicio estas brevidades para a estrutura do artigo de análise que segue. O tema é delicado, embora mais que óbvio.
Nossas sociedades são de certo um modo um “milagre” da humanidade. Fomos um território invadido, formado pelo genocídio originário, sequestro africano e depois população imigrante e colona interna transplantada com intuito de embranquecimento. Ainda assim temos uma chance concreta, considerando demais sociedades do planeta que foram alvos do imperialismo das navegações ou do século XIX, e como tal seguem – seguimos – sendo alvo de muita pressão e presença externa. Temos alguma oportunidade, mas é preciso teoria para preparar corações e mentes para além dos necessários discursos e das imprescindíveis identidades coletivas.
Nossas sociedades concretas são abertas a variadas possibilidades, muito racistas no sentido da opressão – na vertente mais terrível do racismo institucionalizado não formal – mas menos sectárias do que a imensa maioria das sociedades africanas, do médio-orientais e asiáticas. Logo, brigamos menos entre nós (dentro da base da pirâmide populacional) do que a maioria dos demais países com vaga na Assembleia Geral da ONU. Somos ocidentalizados sem ser Ocidente, o que também gera uma vantagem parcial.
O problema reside na ultima frase acima. A coesão interna é fraca e o comportamento de exploração predatória é reproduzido pelas elites locais, classe dominante rentista e estruturas de poder oligárquicas sem dó e alteridade alguma para com a vida das maiorias. Fora isso, é necessário observar que capacidade instalada é o ouro da sobrevivência em momentos de tensão com as potências mundiais. A inserção soberana e altiva no Sistema Internacional não é uma panaceia e se alguém pensa que bloqueio econômico é “evitável” observem Cuba e Venezuela e verão que não é. Logo, esta condição é quase uma imposição do imperialismo que nos toca, o das 13 Colônias Britânicas, fundadas por escravagistas do Destino Manifesto contra a América Latina, Africana e Indígena.
O distanciamento entre o país e nossa América Latina é fundamental para o domínio anglo-saxão e eurocêntrico
Ficamos nos perguntando centenas de vezes. Porque é tão difícil incorporar os elementos mais básicos de nossos vizinhos no dia a dia da cultura brasileira? Vou mais além. Porque somos um país onde a classe média compreende e domina mais o inglês do que o idioma castelhano falado no Sul do mundo? São perguntas que nos inquietam e definitivamente podem apontar alguns dos caminhos possíveis.
Em geral somos muito impressionados com as instituições políticas das chamadas “democracias consolidadas”. Durante muito tempo o espelho retorcido foi a social-democracia europeia e, pasmem, não foi apenas a Força Tarefa da Lava Jato a useira e vezeira da cooperação e intercâmbio com instituições semelhantes dos Estados Unidos. Subestimando o imperialismo, não “batendo para dentro deles” (como por exemplo, fazendo política para as populações latino-americanas, não apenas as comunidades brasileiras) o período do lulismo nem combateu a mentalidade “miamera” e menos ainda enviou uma leva autóctone de “marielitos” com passagem só de ida.
Enfim, se há pouca saída política sem ao menos um pé no iluminismo (aceito esse ponto de partida), ao mesmo tempo, enfiamos as duas pernas até os dois joelhos no esterco infértil se não nos livramos do maldito imperialismo eurocêntrico que polui nossas mentalidades políticas.
Ao invés de fomentar a oposição e o dissenso em um a cada três cidadãos e cidadãs com passaporte dos EUA (a massa latino-americana e afro-americana), nós, como país soberano e sociedade dinâmica e industrial, mimetizamos a cultura urbana contemporânea da gentrificação em solo gringo. E isso ocorreu em pleno lulismo.
Não adianta, o ranço do marxismo vulgar atravessa a mentalidade da ex-esquerda e no lado oposto, as esquerdas trabalham as “identidades” de forma superficial. Ideologia não é nem superestrutura nem apenas estética e discurso vazio. Nunca foi tão grande a presença de capital não ocidental em nosso país e, simultaneamente, nunca tivemos uma mentalidade política tão parecida com o Império do Mal capitaneado na base pelos Fariseus Neopentecostais.
Comentário final
Vale uma comparação. A partir de 1960 especificamente a partir da formação da Organização dos Países Produtores de Petróleo, alguma política de preços foi obtida por Estados subalternos como Arábia Saudita e Irã. Neste último, o famigerado governo absolutista do (xá) shah de confiança dos ingleses e gringos, Mohamed Rezã Shãh Pahlevi resolveu tomar a acertada medida de modernização do país. Mas, acompanhando a elevação dos preços do petróleo, injetou muito dinheiro na economia nacional, levando a um fenômeno conhecido como “desestruturação do tecido social”. Todas as classes com emprego formal melhoraram suas condições materiais, e, ao mesmo tempo, a sociedade ficou mais dependente de suas referências já constituídas, como o clero xiita. Diante da crise derivada por uma inflação por demanda, o regime se enfraquece e, rapidamente os Estados Unidos abandonam um de seus “monarcas de estimação”. O movimento reverso foi seríssimo, sendo que algumas instituições estatais se comportaram como estamento – as Forças Armadas iranianas, a partir de sua alta oficialidade – e ocuparam-se primordialmente na preservação de seus postos de poder.
Não custa o esforço de comparação. Melhoria de condições materiais de vida é sempre uma demanda permanente, mas o esforço de modernização e digitalização promovido pelo lulismo atirou uma sociedade nos braços do capital informacional e da mistificação. A maldição de uma economia comodificada primário exportadora fez o resto, junto aos conspiradores (novos e antigos) além da traição esperada da FIESP. Deu no que deu jogar as esperanças na busca incessante pela tal “burguesia nacional progressista”. Como disse nosso Cantinflas boleiro, o imortal Manuel Francisco dos Santos (Mané Garrinhca), faltou perguntar: “já combinaram com o outro time?”. Ao invés de nos aproximarmos de nós mesmos oudo que deveríamos nos tornar – um epicentro do Atlântico Sul, o pivô entre a América Latina e a África – nosso “outro significante” nada no bolo fecal do complexo de vira-latas; nos trata como “cucarachas” simbólicas, “gusanos” de Miami, “trópico dos pecados” para uma moral puritana e hipócrita.
Agora já era, após profundas modificações no tecido social brasileiro e o ingresso incompleto de mais de 60 milhões tanto na mobilidade de classes como no mundo do consumo e do emprego formal (hoje frustrados) estamos “agringalhados”. Assim os Fariseus incidem sobre um terço da população e os Entreguistas com ou sem verde oliva estão no Planalto, fazendo companhia maligna aos Chicago Boys de raiz. Nós nos tornamos um país mistificado e cibernético, os U$A sem o poder do Complexo Industrial Militar. Adoraria proclamar que há uma via coletivista no curto prazo, mas sei que está longe disso. Áreas estratégicas de mobilização do tecido social brasileiro como no cristianismo popular (de diversos matizes, mas necessariamente dentro do protestantismo) e também na matriz (nas matrizes) afro-brasileiras. Já ajudava, e muito, formuladores, propagandistas, algumas lideranças legítimas nestes setores. Está na hora de pintar de verde e amarelo alguma versão válida de Malcolm X, Martin Luther King e Angela Davis e, simultaneamente, realizar uma campanha para libertar as almas do maldito individualismo. Urgente.
Bruno Lima Rocha (blimarocha@gmail.com / t.me/estrategiaeanalise) é pós-doutorando em economia política e doutor em ciência política; professor nos cursos de relações internacionais, direito e jornalismo; membro do Grupo de Pesquisa Capital e Estado e editor do portal Estratégia & Análise (estrategiaeanaliseblog.com)