Os filmes Apocalypse now (1979) e Laranja Mecânica (1971), de Francis Ford Coppola e Stanley Kubrick, respectivamente, compartilham algumas semelhanças, como uma certa recusa da forma realista tradicional (Rio, 40 graus, filme de Nelson Pereira dos Santos, 1955, cuja matriz é o Neorrealismo Italiano, de filmes como os de Roberto Rossellini ou Vitorio de Sica, de Ladrões de bicicleta); ou uma temática de violência latente das guerras e do capitalismo moderno. Ambos diretores estouram com suas melhores obras ao mesmo tempo histórico, final dos anos 60 e início dos 70, com a Guerra Fria polarizando o planeta, o neoliberalismo emergente – que logo no final da década já se consolidaria na Inglaterra com Margaret Thatcher –, e as consequências desta guerra fria, como as ditaduras militares na América Latina ou a Guerra do Vietnã, tema do filme do Coppola e também de filme posterior de Kubrick, Nascido para matar (1987). A violência dessa conjuntura histórica aparece de alguma forma nos filmes, seja no assunto ou em aspectos mais sutis da narrativa.
Para o primeiro aspecto, a recusa a certo realismo formal, ambos devem a Orson Welles de Cidadão Kane, que inovou na fotografia cinematográfica (não só, já que Welles inovou em tanta coisa), criando graus de surrealismo, como exacerbação da realidade. Em O processo, adaptação de Kafka, temos o mesmo procedimento, aí ficando mais claro o que significa essa recusa ao realismo, já o escritor tcheco trabalhava muitas vezes no plano surreal. Também devem à Nouvelle Vague, literalmente a Nova Onda (de cinema), com origem na França com gente como Godard, Vàrda, Eustache, Truffaut, e que teve repercussão noutros países, como Brasil, com o Cinema Novo, no Japão, com Teshigahara ou Imamura, de filmes como A face do outro ou A mulher inseto. Coppola, diferente de Kubrick, é chamado como participante do que seria a Nova Hollywood, junto a diretores como Martin Scorsese, que de certa forma seguem com as atenções que tiveram (e alguns mantinham) os vanguardistas dos anos 60. Kubrick, por sua vez, tem uma acumulação um pouco mais velha: seus primeiros curtas O padre voador e O dia da luta são de 1951. Tem uma primeira fase regular e dá a virada com 2001: uma odisseia no espaço, em 1968, que se caracteriza (e caracteriza toda segunda fase do diretor) a recusa à abordagem realista, que só voltaria bem mais elaborada em Nascido para matar, curiosamente.
Como vemos essa recusa de abordagem realista nos filmes? Em Apocalyse now, todo o filme parece evocar um ambiente místico, onírico, às vezes surreal (na terceira parte do filme, ao encontrar o coronel Kurz, sem dúvida). As sobreposições de música erudita, como Cavalgada das Valquírias, de Wagner, e as imagens brutais da guerra (do Vietnã), dão uma sensação de estranhamento que ajuda a criar essa ideia de potencializar o realismo através do questionamento. Quando ouvimos algo que nos remete à paz, ou não bem isso, mas a algo civilizado, em contraponto com a guerra, que aparece ao mesmo tempo em que a música, estranhamos essa relação. Esse é um recurso que Coppola se vale e que certamente aprendeu com Kubrick, que em Laranja Mecânica contrapõe música clássica, em especial a 9ª Sinfonia de Beethoven, com a violência extrema exposta no filme com um ar de banalidade, de naturalidade, novamente criando um estranhamento naquilo para potencializar sua crítica.
Outro aspecto que os liga, e que já comentei um pouco, é a violência, centro dos dois filmes. No de Coppola, é a violência da guerra e suas consequências. Na grande cena de abertura, com a música “The End” [O fim], do The Doors, assistimos a devastação de uma área verde, que rapidamente torna-se vermelha de fogo, acompanhando a trilha com uma ironia feroz do diretor. Depois, em um recurso de montagem e mixagem de som muito interessante, funde a imagem e o som de helicópteros com o som e a imagem de um ventilador (a forma do ventilador também lembra uma hélice), e então vemos Willard, protagonista do filme. Percebemos que seu psicológico está muito deteriorado pelo horror da guerra. Aqui, Coppola nos indica que o filme tratará mais da violência psicológica que da material de tiros, explosões etc. Kubrick, por sua vez, também opera nessa lógica, embora as cenas de violência explícita, que inclui estupro e agressões gratuitas, tenham destaque no longa. O que o diretor nos mostra é como uma consciência de um jovem de 14 anos pode estar afetada por um mundo caótico e violento, tanto por razões sociais do capitalismo quanto da violência física propriamente dita, que vemos em cenas na prisão, ou posteriormente no tratamento a que adere Alex. Esse tratamento é uma tentativa de domesticação dos corpos, uma espécie de robotização dos indivíduos por métodos psicológicos violentos.
Como o espaço é curto, paro por aqui o papo. São dois grandes filmes de dois grandes diretores que tiveram um papel importantíssimo na história do cinema, em especial o estadunidense.
Rodrigo Mendes