Um filme é composto por várias partes que dão o sentido para a obra e ajudam a criar sensações em quem assiste. Já falamos uma vez da trilha sonora e seu papel; há várias outras partes – que às vezes a gente descobre vendo as indicações ao Oscar –, como a fotografia, que vamos tratar rapidamente aqui; a parte sonora para além da trilha, como edição e mixagem de som; a direção de arte, que resumidamente são os cenários em que são gravadas as cenas; há os próprios atores, que desempenham sua função. Enfim, são várias partes que compõe um todo.
A fotografia do cinema é feita nos famosos 24 fps, frames per seconds. A tradução literal é “quadros por segundo”. É como se a câmera tirasse 24 fotos por segundo, e isto em uma filmagem produz as imagens que vemos na tela. Para além disso, o mais importante para se considerar ao analisar um filme é perceber: como são enquadrados os planos? São em close, ou seja, muito próximos aos atores, criando uma sensação meio claustrofóbica? Ou são planos mais gerais, abertos, em que vemos a amplitude do cenário? A câmera é estática ou está em movimento? A câmera é, por certo, um ponto de vista, mas qual ponto de vista está represnetado ali? É por acaso o de um personagem, ou simplesmente como um ponto de vista externo contando a história? Essa fotografia tem mais ou menos exposição à luz? Traduzindo: as imagens são mais claras ou mais escuras e por quê?
Todos esses elementos (e há mais, com certeza) nos ajudam a penetrar mais a fundo no filme a partir da fotografia, que é parte constitutiva do cinema. Vamos a alguns exemplos que auxiliam na compreensão: no filme O poderoso chefão vemos imagens muito escuras, muitos planos em lugares fechados e com pouca luz, sugerindo a obscuridade do mundo da máfia, além de certo desejo na discrição, também uma característica daquele mundo. Há inclusive histórias de brigas na gravação do filme porque os atores não faziam direito a movimentação em cena (os atores excetuando Marlon Brando, claro), e ao fazer isso ignoravam que a movimentação estava relacionada com a posição das (poucas) luzes em cena, o que levava Coppola e seu diretor de fotografia, Gordon Willis, a gravarem novamente.
(Cena de O poderoso chefão, exemplo de uso de pouca luz, focalizando nos personagens e uma luz fraca ao fundo)
Um filme recente de um estreante levou o prêmio de emlhor filme em língua estrangeira no Oscar há alguns anos: se trata de O filho de Saul, filme húngaro de László Nemes, de 2015. Por que citá-lo aqui? Porque o filme foi interessantemente construído apenas com planos em close, ou seja, nunca vemos nada para além de um pequeno retrato, que quase sempre acompanha o protagonista do filme. A história se passa dentro de um campo de concentração nazista, e vemos os horrores daquele lugar a partir de uma lente mínima, sem poder enxergar para além de um plano mais imediato.
(Cena do filme O filho de Saul, um exemplo de close)
Sicario, que já foi tema desta coluna, apresenta um ponto de vista através da câmera muito interessante. Há um recurso usado no cinema que se chama câmera subjetiva, que é quando a câmera representa um ponto de vista humano, de um personagem. Isso é usado há bastante tempo, foi muito comum nas nouvelle vagues dos anos 60 e segue sendo usado – foi até utilizado na novela da Globo quando um ator morreu tragicamente durante as gravações; neste caso, impossibilitados gravar sem a pessoa, e não querendo trocar de ator para não soar artificial, optou-se pela câmera subjetiva. Bom, em Sicario vemos um realismo de extrema violência no mundo do narcotráfico mexicano na fronteira com os EUA. Villeneuve, diretor do longa, se viu num desafio para imprimir um realismo nas cenas à noite em que não há luz: como gravar naquele escuro sem colocar uma luz artificial e aí soar antirrealista? Villeneuve fez uso, magistralmente, da câmera subjetiva, como se acompanhássemos o ponto de vista da protagonista na ação noturna, com a luz do capacete militar, ou a partir da luz infra-vermelha dos óculos usados na ação. Foi uma saída brilhante com resultado estético excelente.
(Cena de Sicario, exemplo de câmera subjetiva, único modo de gravar de forma realista num ambiente sem luz.)
Para finalizar, um exemplo de algo que não mencionei antes: uma coisa para se prestar atenção é se as filmagens aparecem no filme de modo contínuo, ou seja, sem corte, no que se chama plano-sequência, ou se há cortes, fazendo uso então da montagem – o ato de colocar uma cena depois da outra montando uma narrativa. O filme que pela primeira vez tentou camuflar seus pouquíssimos cortes para dar a ideia de um filme sem cortes, como uma única e longa gravação, foi Festim diabólico, de Alfred Hitchcock. Isso é um recurso interessante porque mexe com a percepção do tempo da narrativa, parece um teatro, como se aquilo estivesse acontecendo naquele momento exato. E hoje em dia já existe um filme que foi, de fato, gravado todo em plano-sequência, 2 horas de gravação ininterrupta: é o Arca russa, de Aleksandr Sokurov (2002). Outros filmes trabalham muito com plano-sequência tendo resultados muito interessantes, filmes de diretores como Andrei Tarkovski, Béla Tarr, Paul Thomas Anderson, etc.
Um bom crítico de cinema, que hoje já não acompanho, chamado Pablo Villaça, sempre dizia que perceber esses aspectos engrandece o filme e ajuda ao telespectador a aproveitar melhor as sessões de cinema. Espero que eu esteja contribuindo para isso.
PS: não poderia deixar de mencionar grandes nomes da fotografia no cinema para quem se interessar poder buscar e ver. São eles Sven Nykvist, que trabalhou muito com Ingmar Bergman e Andrei Tarkovski, baita diretor de fotografia; Gordon Willis, trabalhou com, dentre outros, Coppola e Woody Allen, neste último com a linda fotografia de Manhattan; Emmanuel Lubezki, que ganhou vários oscares recentemente (não custa lembrar que Oscar não é parâmetro, mas vá lá), mexicano que trabalhou com os também mexicanos Cuarón e Iñárritu em longas com fotografias belíssimas, como Gravidade e O regresso – este último padece do seguinte caso, fotografia linda, filme fraco; e o último que menciono é Roger Deakins, que fez Onde os fracos não têm vez com os irmãos Coen, grande filme e grande fotografia.
Rodrigo Mendes