Por Rafael Morais
No último dia 20, todas vibramos com a notícia do anúncio de um novo programa Mais Médicos. Na comunidade da saúde, especialmente entre os médicos e médicas especialistas na área – muitas de nós preocupadas com a saúde pública e as conquistas de movimentos sociais e defensoras de direitos humanos – e que desejam passar toda a sua vida trabalhando em uma comunidade cuidando das mesmas pessoas, sentiram um grande “banho de água fria”. Eu como uma dessas pessoas, venho expor os motivos pelo qual sinto que não teremos resolução de boa parte dos problemas na Atenção Básica brasileira enquanto não valorizarmos melhor esse campo da saúde.
Qual é o problema que o Mais Médicos precisa resolver?
O Programa Mais Médicos para o Brasil (PMMB) foi criado em 2013 [1] durante a primeira gestão de Dilma Rousseff para resolver um problema crônico no Brasil: a ausência de profissionais médicos em lugares do país com dificuldade de manutenção desses profissionais. Mas não a ausência de qualquer tipo de profissional da medicina como cirurgiões, médicos do coração (cardiologistas), médicos do pulmão (pneumologistas). O Mais Médicos privilegiou um espaço essencial: a Atenção Primária à Saúde (APS), também conhecida no Brasil como Atenção Básica (AB).
O provimento de profissionais estava desenhado para todos os serviços de APS com dificuldade em manter médicos, em geral nas zonas rurais afastadas dos grandes centros urbanos mas também periferias e locais com extrema pobreza apesar estarem em pequenas cidades ao redor ou mesmo de dentro desses centros. Também previa a educação médica continuada com recursos para ampliar as faculdades de medicina e a melhoria de infraestrutura da unidades. Com diversas críticas que fogem ao momento desse texto, funcionou em vários desses pontos nos últimos dez anos que esteve em construção e desconstrução desde o governo Dilma, passando por Temer e também nos ataques contínuos do governo Bolsonaro à saúde pública.
O que é a APS?
Primeiro de tudo, é essencial compreender que o Sistema Único de Saúde (SUS) funciona como uma rede de vários tipos de serviços que se complementam. Para organizar toda essa rede, existe o princípio da hierarquização. Esse princípio parte da ideia de que todas nós vamos precisar de alguma orientação de um serviço de saúde: talvez algum remédio, uma cirurgia simples, um curativo ou uma conversa para refletir sobre o nosso problema. Nem todas nós vamos precisar de uma internação no hospital, ou um respirador, ou mesmo uma terapia de câncer. Assim, existem os serviços de saúde primários (básicos), secundários e terciários. Cada um desses serviços aumenta em necessidade de intervenções sobre o corpo cada vez mais focadas em sistemas menores e com uma carga de tecnologia pesada mais intensa.
Os serviços primários tem base comunitária e precisam estar perto das nossas casas e nossos trabalhos, para podermos procurar sempre que for conveniente e necessário. Já o hospital que faz transplante de fígado pode até mesmo ficar localizado em outro Estado, desde que o SUS permita que eu, morando numa cidade pequena do interior de Alagoas, tenha acesso caso seja necessário.
O primeiro passo para a Atenção Básica funcionar é ter uma Equipe de Saúde da Família (eSF) completa: composta por profissionais da medicina, enfermagem, odontologia e Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) e complementada pelo pessoal técnico-administrativo e auxiliares de serviços gerais. Essa equipe vai se debruçar durante todos os anos do seu trabalho em conhecer o território que foi designado para seu cuidado com cerca de 2500 a 3500 pessoas (um número que é bastante discutido entre os profissionais pela carga de trabalho que nos exige e mudada para 4000 após as mudanças do governo Bolsonaro) divididas em cerca de 900 famílias em uma área geográfica definida em um processo chamado territorialização.
Vamos aprender como as pessoas vivem, o que comem, qual a estrutura das suas casas, como se formou aquela comunidade, porque elas escolheram morar ali. Vamos conhecer também as dinâmicas de trabalho, apoio mútuo, solidariedade, opressão, violência, lazer, festas, culturas, religiosidades que cercam aquelas pessoas. Ao mesmo tempo, atendemos de forma individual cada pessoa que precisa do nosso olhar e vamos cuidar e traçar um plano em conjunto para superar as dificuldades trazidas.
Além da equipe, precisamos ter acesso a equipamentos e insumos, exames, medicamentos, educação continuada, materiais para educação da comunidade, espaço para avaliação do nosso trabalho. Todo o material necessário para fazer uma boa saúde onde quer que estejamos. Com uma boa Atenção Básica, podemos entender melhor os problemas de saúde do nosso povo, das famílias que cuidamos (seja qual o modelo de família que temos) e da nossa comunidade. É um consenso entre profissionais e pesquisadoras da área a capacidade de resolver até 85% dos problemas trazidos para a Unidade Básica de Saúde com uma equipe bem treinada e uma boa infraestrutura. [2] Precisou da vacina? Precisou do pré-natal? Precisou cuidar da pressão? Precisou tratar a enxaqueca e a tontura? Tudo isso pode ser resolvido na AB.
A APS e as emergências são as portas de entrada para ter acesso aos serviços secundários, terciários e quaternários. Quando necessário, a equipe pode solicitar que médicos com conhecimento em órgãos e sistemas, os especialistas focais (aqueles com foco no coração, pulmão, fígado e tudo o que temos dentro de nós), avaliem em conjunto alguém que pode ter uma doença mais complexa e que eventualmente pode precisar de uma internação ou um centro cirúrgico. Isso também acontece quando a equipe de Saúde Bucal da unidade encontra um caso mais complexo e precisa de um Centro Especializado em Odontologia.
Quem é o Médico de Família e Comunidade?
Para dar conta de cuidar de toda uma comunidade, é necessário muito conhecimento, certo? Mas esse conhecimento não é de um órgão, ou de uma doença, ou de um tipo de exame. É preciso conhecer a vida do povo, as transformações que passamos, como nosso corpo pode ficar saudável e como ele pode adoecer. Isso em qualquer raça, etnia, cultura, gênero, sexualidade ou qualquer idade desde o nascimento até o leito de morte. A Medicina de Família e Comunidade (MFC) é a especialidade médica responsável por acompanhar a vida toda pessoa, família e comunidade em suas várias transformações, estimular a saúde e decidir em conjunto o melhor caminho para o cuidado: somos médicas e médicos de gente.
Como já mencionado, profissionais e pesquisadores na área da APS, desde que ela foi defendida como modelo preferencial de organização dos sistemas de saúde pela OMS, defendem que sua capacidade de resolver os problemas pode chegar a 90% [3]. Para chegar a isso, precisamos valorizar esse campo do conhecimento e estimular a manutenção de profissionais especializadas tanto da medicina como da enfermagem e odontologia, com suas especialistas nesse campo do conhecimento e da prática do cuidado. Também precisamos dar infraestrutura e garantir das redes de serviços essenciais no SUS: medicamentos, insumos, exames, tudo o que for preciso.
Quando temos no sistema, profissionais sem a especialidade ou mesmo sem o desejo de estudar profundamente e se especializar nesse campo, ocorrem os famosos casos do médicos “ao-ao”. Profissionais médicos que não se dispõem a procurar os melhores recursos para resolver os problemas de sua população e apenas buscam encaminhar esses problemas a outros níveis de atenção (”ao” hospital, “ao” cardiologista, “ao” nefrologista). Assim, a capacidade desse espaço comunitário de cuidado em saúde em resolver os problemas do povo, cai. Os problemas se agravam, a demanda por níveis mais altos dos sistema aumenta, as pessoas que realmente precisam de cuidados de um hospital, ou de exames caros têm mais dificuldades em consegui-los e o sistema de saúde se torna insustentável.
Como conseguimos especialistas na Atenção Primária à Saúde?
A criação do primeiro PMMB há 10 anos estimulou o debate e as ações em torno da necessidade de especialização. Diversas vagas de Residência Médica, o programa para especialização dos médicos, foram criados na área estratégica da Medicina de Família e Comunidade. O estudo “Demografia Médica no Brasil 2023” registrou o crescimento de 246% dos especialistas na MFC, contando hoje com 11.255 médicos e médicas de família e comunidade [4].
Ao mesmo tempo que cresce a oferta por esses profissionais especializados, os serviços privados de saúde (chamados no Brasil de saúde suplementar) têm criado suas próprias clínicas de família com a promessa de resolver mais problemas por um custo menor para seus hospitais, gastando menos com a melhor reacionalização de pedidos de exames e consultas de especialista focais promovidas pela MFC. Em diversos casos tem sido bem-sucedidos em capturar os especialistas formados no SUS com dinheiro público, afastando esses profissionais do serviço público.[5]
Enquanto isso, os MFC comprometidos com o SUS não tiveram ainda uma proposta atrativa para se fixar nos serviços do sistema. O PMMB sempre propôs um regime de trabalho precário como bolsista que não proporciona vínculo trabalhista como explicita a lei e costumava funcionar em ciclos de 3 anos, renováveis por mais 3, o que deixa sempre a pessoa trabalhadora em situação de insegurança sobre o futuro de seu emprego.
Outros modelos foram propostos: o programa Médicos pelo Brasil da gestão Bolsonaro, com contratação via CLT, que chegou a ser aplicado em um único edital no ano de 2022. Porém, esse modelo arrepia os cabelos de todas preocupadas com a gestão e organização pública do SUS pelas brechas para privatização que rodam o modelo, apesar da proposta atraente para a MFC. Há também o modelo de autarquia proposto pelo professor Gastão Wagner ou a proposta de uma fundação federal mencionada pelo Secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, Nésio Fernandes. Mas até agora, o único modelo concreto e amplamente aplicado foi o programa Mais Médicos, nada atraente para os especialistas, fazendo o povo brasileiro perder o potencial de todos essas pessoas altamente capacitadas para o cuidado comunitário.
O decepcionante “novo” Mais Médicos
Para aquelas pessoas que defendem um Sistema de Saúde Pública construído por quem usa e trabalha nele, o Mais Médicos anunciado em 2023 – que vinha sendo anunciado com a animadora proposta de “Mais Saúde” – não trouxe nenhuma novidade apesar dos avanços da saúde e da formação médica nos últimos 10 anos.
As “grandes novidades” anuciadas contemplam a ampliação do ciclo de 3 anos para 4 anos com a possibilidade de renovação, mantendo o mesmo regime de contratação precário como bolsista. Agora há a possibilidade de uma bonificação de 10% a 20% de todas as bolsas recebidas caso a profissional se mantenha por 48 meses no programa, uma bolada de dinheiro. Temos estímulo ainda para preencher as vagas ociosas da Residência de Medicina de Família e Comunidade, mas apenas com incentivo para pessoas formadas pelo FIES que ficaram presas a uma dívida imensa após sua graduação, o que pode apontar também para justificar uma ampliação da formação de médicas nas faculdade privadas ao invés do investimento nas universidades públicas, como já criticávamos no lançamento do programa com a expansão dos cursos para os grandes conglomerados de educação privados. Sorrateiramente, a Medida Provisória do novo programa retirou esses profissionais do Regime Geral de Previdência Social, precarizando ainda mais nosso trabalho e nossa perspecitva de aposentadoria.
Caso isso não seja o suficiente para atrair as profissionais brasileiras da medicina, vamos continuar realizando intercâmbio com outros países. Em especial as médicas e médicos cubanas são muito qualificadas e vivenciam um sistema de saúde voltado para a Atenção Primária à Saúde, portanto têm experiência e formação mais intensa nesse campo do que pessoas recém-formadas no Brasil, um ganho para as regiões mais afastadas e difíceis fixar profissionais, porém precisamos compreender que esses profissionais vêm numa missão diplomática e têm tempo contado para voltar para casa.
Para as especialistas formados nos últimos 10 anos, nenhuma novidade foi anunciada. Vamos manter um vínculo precário sem perspectiva de estabilidade profissional, remuneração estagnada enquanto a inflação sobe, a possibilidade de um bônus a cada 4 anos, nenhum direito enquanto trabalhadoras nos deixando à mercê das vontades políticas dos governos municipais de turno e dos ventos do governo federal. Dessa forma, nunca poderemos realmente nos dispor a um projeto de transformação da saúde pública, nos entregar de cabeça e saber que estaremos vinculados a uma comunidade por toda uma vida, construindo laços porque estamos sempre lutando para descobrir qual será o amanhã do nosso emprego. Pode parecer uma novidade, mas médicas e medicos também são trabalhadoras e seus vínculos podem servir para balizar os direitos de outras categorias estratégicas tanto da área da saúde como outras áreas.
Enquanto isso, seguimos sem novidades na ampliação da formação e qualificação de outras especialidades em saúde, como enfermeiras e odontólogas de família e comunidade. O piso da enfermagem não foi aprovado em nível federal. Muitas unidades básicas de saúde mantém estruturas inferiores ao necessário para a realização de um cuidado amplo e de qualidade. As profissionais da Atenção Primária à Saúde continuam à mercê dos desejos das gestões municipais, muitas dessas pessoas trabalhadoras, como a maioria das ACSs de interior que conheço, com vínculos ainda mais precários e prejudicadas pelas práticas clientelistas e coronelistas dos interiores do país. Faltam medicamentos, gaze, soro, fraldas, medidores de glicose, transporte para tratamento fora do domicílio, uma infinidade de políticas que precisamos para uma boa atenção à saúde.
Infelizmente, presenciamos o retorno de um programa centrado na medicina, sem garantias mínimas de direitos para as trabalhadoras, sem buscar a vinculação de médicas especializadas na APS com a saúde pública brasileira, mantendo as métricas e os mecanismos de corte de gastos criadas por Bolsonaro para avaliação do trabalho na APS, sem a criação de políticas para melhoria da infraestrutura e garantia da rede de serviços essenciais para buscar uma saúde básica de qualidade.
Enquanto não valorizarmos as nossas trabalhadoras e seu potencial de lutar pela saúde pública brasileira, e mantivermos o debate da saúde focado na medicina enquanto esquecemos as outras profissões e a estrutura para garantir o cuidado do povo, estamos condenadas a ver uma APS de qualidade cada vez mais distante do nosso dia-a-dia. Para todas as lutadoras da saúde, um “banho de água fria” para despertarmos da nossa letargia e lutarmos por nossos direitos.
p.s.: esse texto optou pelo uso dos artigos no feminino como gênero neutro para designar as pessoas de forma universal;
Rafael Morais é Médico de Família e Comunidade, militante da Resistência Popular em Alagoas e integrante do Fórum em Defesa do SUS e contra a Privatização. Desde a graduação em medicina vem atuando prioritariamente no SUS e trabalha como médico do Programa Mais Médicos para o Brasil desde 2022 em um município categorizado pelo Ministério da Saúde como extremamente pobre (categoria 7).
REFERÊNCIAS
[1] [http://maismedicos.gov.br/conheca-programa](http://maismedicos.gov.br/conheca-programa)
[2] ALMEIDA, Patty Fidelis de; GIOVANELLA, Lígia; NUNAN, Berardo Augusto. Atenção Primária Integral à Saúde – Indicares para Avaliação. Rio de Janeiro: abril de 2011.
[3] [https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-12/medico-de-familia-e-o-profissional-que-pode-lidar-com-ate-90-dos-problemas](https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-12/medico-de-familia-e-o-profissional-que-pode-lidar-com-ate-90-dos-problemas)
[4] SCHEFFER, M. et al. Demografia Medica no Brasil 2023. São Paulo, SP: FMUSPAMB, 2023. 344 p. ISBN: 978-65-00-60986-8
[5] MACHADO, H. S. V.; MELO, E. A.; PAULA, L. G. N. DE .. Medicina de Família e Comunidade na saúde suplementar do Brasil: implicações para o Sistema Único de Saúde e para os médicos. Cadernos de Saúde Pública, v. 35, n. Cad. Saúde Pública, 2019 35(11), p. e00068419, 2019.