Criminalização dos protestos sociais e terrorismo de Estado no Peru

Protestos no Peru
Imagen / Manifestación contra el gobierno de Dina Boluarte en el Paseo de los Héroes Navales frente
al Palacio de Justicia, al día siguiente de los acontecimientos en Juliaca. Fuente

Renúncia de Dina Boluarte? Antecipar as eleições? Fechar o congresso? ¿Que se
vayan todos? Sim! E depois? O panorama atual, se essas demandas forem
cumpridas, não seria melhor do que o que já temos. A esquerda tem capacidade de
articular e capitalizar toda revolta popular? Existe alguma forma de aterrizar sobre
as tensões subjetivas rumo a esquerda toda “insurreição”1 que estamos vendo?
por Franz Verne

Hoje o Peru está à volta de um turbilhão de extrema violência, desencadeado pelo próprio Estado contra os povos, regiões e setores de movimentos sociais
mobilizados. O que ocorre em nosso país, já ultrapassou qualquer limite antes
imposto pelos próprios governos neoliberais que sofremos, pelo menos nos últimos 20 anos. Desde de um panorama Democrático institucional ( que tanto é defendido pela elite peruana) temos uma sequência de violações dos “direitos humanos” e garantias constitucionais, sob a população mobilizada. É com espanto que vemos o Estado Peruano só pensar em responder com repressão criminosa do que buscar impedir o conflito social, (contado com mais de 50 assassinatos, segundo contas oficiais). É evidente o fracasso do modelo econômico, porém também dá estrutura política sobre qual se assentou as bases de uma república falida que nunca compreendeu sua composição sociológica nem sua complexidade cultural.

Contexto político
Contudo, o panorama deste novo conflito teve seu início em 7 de dezembro de
2022. Nesse dia estava previsto um debate para ser votado no plenário do
congresso outra *moção de vacância, contra Pedro Castillo. Adiantando a votação Castillo anunciou a dissolução temporária do congresso e a instauração de “um governo de emergência excepcional” apontando que as eleições seriam convocadas “o mais rápido possível” para estabelecer um parlamento com faculdades para elaboração de uma nova constituição em um tempo “não maior que 9 meses”. Porém, esta medida foi questionada desde da oposição parlamentar, o poder da mídia, associações empresariais e a própria sociedade civil, posto que não se ajustava ao marco constitucional pois a carta magna peruana, em seu artigo 134° aponta que o presidente da República está facultado a dissolver o Congresso só “se ele censurou ou negou sua confiança a dois conselhos de ministros”, e não chegou a acontecer. De início, o congresso rejeitou formalmente a dissolução e convocou uma sessão plenária para agilizar uma nova e decisiva “moção de vacância” contra Castillo. Enquanto isso, dentro do executivo já se dava uma cadeia de demissões com as renúncias dos ministros do Trabalho, Exterior, Economia, Justiça e Defesa.
Somado a isto, tanto as Forças Armadas e a Polícia nacional tornavam pública seu desvencilhamento da decisão de Castillo, deixando-o totalmente isolado, e à mercê de uma iminente prisão. Entretanto, em tempo recorde, o congresso conseguiu a destituição de Castillo com 101 votos a favor, e chamou a vice-presidente Dina Boluarte para assumir o cargo de presidente.
A primeira sensação, trás um primeiro erro político de Castillo que provocou por ele mesmo sua vacância, foi uma perplexidade generalizada posto que era inevitável trazer à memória social o auto golpe que foi perpetrado por Alberto Fujimori em abril de 1992. Embora tenha que pontuar que, para tal medida factual, o ex ditador contou com apoio das forças armadas e um partido político estruturado que o permitiu se sustentar até sua queda iminente em 2000. Por sua parte, Castillo foi deixado só com a constante perseguição do Parlamento golpista que desenvolveu um plano de desestabilização permanente desde o começo a partir de um processo obstrucionista que não permitiu implementar as bases mínimas para as reformas e programas sociais que o governo tinha prometido em campanha. É assim que o “primeiro governo de esquerda” que o Peru teve terminou em 18 meses, mergulhado por ataques externos e por limitações internas. O partido do Perú Libre, que foi a organização que abrigou Castillo para ganhar as eleições gerais, também se apartou do ex-mandatário alegando nenhum compromisso com “casos de corrupção” que evidentemente haviam chegado ao Palácio do Governo através do “entorno” presidencial (assessores, ministros, secretários, familiares, etc

Entretanto, a percepção social se manteve firme em relação à agenda golpista da oligarquia e seus operadores políticos da direita parlamentar. E assim começou a crise presidencial com a destituição (vacância) e a imediata prisão de Castillo, se iniciou um período de mobilização que começou com seu setor de seguidores mais próximos e gerando uma aproximação com manifestações de apoio no exterior da penitenciária exigindo “liberdade e reintegração a Castillo”. Não passou muito tempo para que as frentes de defesa regionais, as associações sindicais, e as comunidades nativas do interior do país, convocaram mobilizações massivas onde sempre se deixou clara as demandas da luta: Renúncia de Dina Boluarte (por seu evidente papel de traição ao projeto político que a levou ao governo, e por sua submissão a extrema direita nacional), fechamento do congresso (por seu trabalho golpista e reacionário), implementação de uma assembleia constituinte (que elabore uma nova constituição para superar a que temos atualmente, herdada da ditadura e
de marcante característica neo liberal e antipopular) e adiantar as eleições gerais ( a partir do slogan “que se vayan todos” se exige novas eleições para reiniciar um novo período democrático, pois existe um mal estar generalizado contra todos os atores políticos atuais, nos três poderes do Estado).
Sob esta lista de reivindicações é que surgiram os protestos em regiões como
Cusco, Apurímac, Ayacucho, Puno, Arequipa, Ica, para logo extenderse para La
Libertad, Junín, Moquegua, Tacna, Áncash, Loreto, Ucayali, etc. Se gerou um
processo espontâneo de articulação de demandas sociais concatenadas a uma
resposta contundente com gestão política do país e com um claro perfil de desgaste sociocultural pela imposição de uma república mutilada que desde sua fundação jamais entendeu ou compreendeu a complexidade orgânica dos povos originários das três regiões do país existe uma evidente sublevação contra uma estrutura que sempre foi controlada pela elite política para defender os interesses da oligarquia local herdeira dos vícios e prejuízos gerados desde a Colonização até nossa época.

Terrorismo de Estado
Enquanto isso, a nova gestão no governo, apenas conseguiu cumprir publicamente um papel de submissão aos poderes fáticos que operam aberta ou secretamente. A nova presidenta, Dina Baluarte, se encarregou de ratificar o caráter ilegítimo de seu governo. Não hesitou em desenvolver todo o projeto repressivo da ultra direita que já estava sendo arquitetado no Congresso com a cumplicidade da Procuradora da República, Patrícia Benavides, e dos altos comandantes militares e policiais. É assim que entramos em um novo período beligerante na longa história macartista do Peru. No interior do país houve um quadro de crimes extrajudiciais durante os protestos, enquanto em Lima foi imposto uma onda de ataques ilegais (sem a presença de promotores ou advogados) à instalações de organizações sociais (Confederação Camponesa do Peru) e de grupos políticos (Nuevo Perú, Voces del Pueblo), juntamente com denúncias públicas difamatórias contra ativistas e organizações de esquerda, tudo sob o trabalho desajeitado, mas interessado, da Diretoria Contra o Terrorismo (DIRCOTE).

Como dissemos, durante a primeira semana que se seguiu à tomada do poder de Boluarte, houve inúmeros movimentos com balanços repressivos de nível
alarmante. A primeira região manchada de sangue foi Apurímac. Então, o maior
número de mortos ocorreu quando os manifestantes tentaram tomar os aeroportos de Andahuaylas, Ayacucho e Juliaca. Nos dias 12 e 15 de dezembro e posteriormente em 9 de janeiro deste ano, grupos de manifestantes entraram ou tentaram chegar aos aeroportos de Andahuaylas, Huamanga e Juliaca,
respectivamente. Tudo isso dentro de uma dinâmica facilitadora e reacionária
(militarização galopante) de imposição do Estado de Emergência e Toque de
Recolher para “controlar” as áreas mais agitadas.
As forças repressivas do estado – entre policiais e militares – responderam com
disparos de projéteis de armas de fogo na cabeça e no tórax. Assim nos confirma as autópsias de várias vítimas. “Perfuração penetrante no tórax posterior por projétil de arma de fogo”, “feridas penetrante na cabeça por projétil de arma de fogo”, evidenciam os documentos. É importante mencionar que as provas sobre o uso de armas de fogo contra civis por parte dos militares desde do início da repressão são distintas e numerosas, porém não se deteram apesar dos apelos da defensoria pública. As autópsias realizadas em 8 dos dez jovens que faleceram em Ayacucho (na segunda metade de dezembro) assinala que receberam impacto por projéteis de armas de fogo (seis deles atingidos no tórax, um na cabeça e outro no abdômen).

Entre os assassinados estão sete menores, três deles estudantes. O Instituto de
Medicina Legal do Ministério Público informou que apenas em Juliaca – a região
com o maior número de mortes – dez dos 18 assassinados tiveram projéteis
disparados por armas de fogo. Cabe lembrar que alguns dos mortos não estavam participando das manifestações, ou estavam regressando para casa ou juntavam-se às brigadas de socorro, e ainda assim foram atingidos por tiros. As imagens registradas pela imprensa regional e por diversos moradores, expõem o uso desproporcional da força pelas forças repressivas. Há até casos como o do jovem cusqueño e estudante de gastronomia, Rosalino Flores Valverde, de 21 anos, que recebeu mais de 30 estilhaços de arma de fogo em seu corpo. Os médicos relataram que seus intestinos estão muito afetados, rim e pulmão. Seu estado ainda é muito crítico.

Diante desse panorama macabro, tecem-se vozes das mais cavernosas direitas que tentam estabelecer discursos que defendem o indefensável para desculpar os culpados desses crimes. Por isso, acreditamos ser necessário apontar uma análise objetiva para mencionar que as ações policiais para prevenir tumultos em protestos estão enquadradas no Decreto Legislativo 1186 (aprovado em agosto de 2015), que regulamenta o uso da força policial. Concretamente, sabe-se que a polícia não deve atirar a curta distância nos manifestantes e, quando o faz, não pode fazê-lo na direção da parte superior do corpo, mas na direção da parte inferior. Incluso, o próprio regulamento policial define que o uso arbitrário da força “é qualquer uso injustificado da força, em violação dos princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade, e isso afeta os direitos fundamentais”. No entanto, há várias mortes e ferimentos graves causados por disparos a curta distância.
Por sua vez, da Coordenadoria Nacional de Direitos Humanos (CNDDHH) destacam que “a polícia só está autorizada a usar força letal em casos de grave risco e perigo iminente de vida. Não é permitido o uso de força letal para desobstruir as avenidas, para proteger infraestruturas, muito menos para dispersar uma multidão ou para proteger a propriedade privada”, mas as imagens dos protestos de 7 de dezembro até o momento mostram que a polícia disparou bombas de gás lacrimogêneo e projéteis contra os corpos dos manifestantes. Também mostram como os militares dispararam suas armas de guerra de longo alcance durante a repressão, mesmo quando os manifestantes já estavam fugindo do local.

E se quisermos ser mais incisivos sobre as ações de repressão, acresce que a
Polícia Nacional do Peru (PNP) conta com um manual de procedimentos as
operações de manutenção e restabelecimento da ordem pública ( de 2016), que
define o marco legal para a aplicação de força e o equipamento que deve ser
utilizado nestas situações. Também inclui as distintas táticas para controlar os
possíveis atos de violência com estrito respeito aos direitos humanos. O
equipamento policial, segundo este documento, consta com traje de proteção
corporal, armas não letais, bastão, gás de pimenta, capacete, máscaras anti-gás, armas de fogo de mão, e armas de fogo de longo alcance, dependendo das funções atribuídas a cada unidade. Sobre esta base, em outubro de 2022, o Comando Geral da Polícia Nacional emitiu uma resolução onde estabelecia diretrizes administrativas e operativos aplicáveis às operações policiais de controle, manutenção e restabelecimento da ordem pública, assinalando que: “O uso da força é excepcional, deve ser planejado e limitado proporcionalmente, devendo previamente haverem esgotados todos os demais meios de controle, incluindo o punitivo”, e que se estiver no cumprimento de suas funções, a polícia fazer uso da força, em todo lugar e circunstância, “é prioritário a conservação da vida e integridade física da pessoa, de si mesmo, e incluso os infratores da lei”. Isto, evidentemente, não aconteceu.

Além disso, há que mencionar que, segundo a própria diretiva da PNP, os danos ao bem público ou privado, lançamento de objetos contundentes e a agressão e a violência perpetrada por manifestantes são tipificados como agressões não letais. Portanto, a polícia só deve empregar “táticas defensivas não letais” como o uso de gás lacrimogêneo, água e bala de borracha. Só quando as agressões dos manifestantes é letal, intensa, perigosa e iminente para a vida, a polícia poderá fazer uso excepcional das armas de fogo letais. Em seu documento, a polícia descreve como deve atuar: “o pessoal da polícia não deve empregar armas de fogo letais , salvo quando for identificado pessoa que gere perigo real e iminente de morte ou lesão grave contra o pessoal da polícia ou terceiros, e quando medidas menos extremas resultam insuficientes ou inadequadas; para o qual, é formada uma equipe de resposta especial que tem o treinamento, capacitação e certificação devida, providos de armas letais, que atuarão excepcionalmente.
E do lado do povo mobilizado, só a registro, basicamente, do uso de pedras, paus, objetos caseiros e “ferramentas originárias” (huaracas y hondas2
). Por tanto, nenhum desses objetos constituem uma arma letal em si mesmo. Que dizer, o princípio de proporcionalidade a que está sujeito a corporação policial, não só não se cumpriu, mas foi de fato ignorado para dar lugar a uma espiral de assassinatos diante das massas em luta, porém sem simetria no equipamento que justificaria tal resposta armada por parte das forças repressivas. É por isso que desde todas as instâncias de direitos humanos soaram o alarme para buscar frear estes crimes, recordando que, embora seja verdade, que no Estado de emergência, alguns direitos constitucionais são suspendidos, este não são anulados nem violados, pelo que deveriam respeitar os protocolos existentes para períodos de conflitividade social como a que estamos atravessando no Perú.

Nos protestos se registraram, ademais, o uso de armas de fogo e armas de gás
lacrimogêneo na cabeça e no tórax, disparo de fuzis AKM e Galil(fuzil de assalto de fabricação israelense). Estas últimas armas foram empregadas por militares em Ayacucho, onde também se evidenciou que o pessoal da instituição policial dirigiu os disparos diretamente em direção aos corpos dos manifestantes. Cabe mencionar que a presença das forças armadas se deu depois de que o executivo decretou o Estado de Emergência, primeiro, em certas regiões e, logo, o estendem a todo país.
A resolução , publicado no jornal El Peruano, autoriza que a PNP, com ajuda das
FF.AA., assumiram o controle interno. “A história hemisférica demonstra que a
intervenção das forças armadas em questão de segurança interna em geral se
encontra acompanhada de violações dos direitos humanos em contextos violentos, por isso deve se apontar que a prática aconselha se evitar a intervenção das forças armadas em questões de segurança interna uma vez que corre o risco de violações dos direitos humanos”, assinala a Corte Interamericana de Direitos Humanos, sobre este assunto.

E quanto ao uso das bombas lacrimogêneas também há coisas a se dizer. É sabido que, em Andahuaylas, Ayacucho e Puno, a polícia atirou esses projéteis dos helicópteros contra os manifestantes. E, apesar das advertências de organizações de Direitos Humanos e entidades públicas, continuaram fazendo. “O procedimento regulamentar é usar as bombas de gás lacrimogêneo em trajetória parabólica, na vertical. Havia uma diretiva específica, porém eles revogaram e não lançaram uma nova. (Esta) assinalava expressamente o disparo em parabólica. Em todo caso, ele se deriva dos princípios do uso da força. O disparo vertical multiplica os efeitos letais “, comentam desde da CNDDHH. Também sofremos esses eventos durante as manifestações em Lima. Durante os protestos diários em nossa capital, se há normalizado contar feridos por lesões de gravidade devido ao disparo destas bombas diretamente no rosto, tórax e pernas. Não são casualidades, se não causalidades para intimidar e esgotar a vontade combatente do povo que recorre a ação direta de massa.

Tudo isso somado às assembléias policiais a nível nacional. Tem-se tomado como pretexto para a brutalidade repressiva o variado panorama de ataques e saques a locais privados e instituições públicas. Embora seja verdade o evidente nível de luta contundente que uma vez mais tem-se sentido desde as bases populares, não podemos perder de vista a abundante prova que assinala o alarmante e cínico papel de infiltração policial (agentes Terna) nas mobilizações. São esses elementos camuflados quem tem provocado incêndios (nas províncias e em Lima com um edifício histórico queimado em pleno protesto em uma praça principal do centro da cidade), destruições e roubos em geral (os vídeos, fotos e testemunhos mostram isso).
Deixam-se descobrir a partir de dinâmicas de ação alheias às assembléias sociais onde se discute e se aprova os mecanismos de protestos, violentos ou não, mas consentidos e com legitimidade provada. A própria massa tem conseguido separar e romper enfaticamente com esses agentes provocadores. Temos uma efervescência de grande escala que tem desembocado em ação direta de massas. Não é como dizem levianamente, desde o poder burguês (ou seus ecos social-democratas), de que se trata de grupelhos marginais atuando à margem do protesto “cidadão”. Além dos infiltrados (operadores policiais de “inteligência”) que evidentemente estão “camuflados”, não subestimemos a capacidade de luta dos de baixo. Há descontentamento traduzido em confronto ao poder do dia e que deveria canalizar-se como capacidade política da classe trabalhadora em aliança com o movimento popular.

Agora, desde a década de 1990, quando sofremos a ditadura cívico-militar de
Alberto Fujimori, não víamos tais níveis de violência excessiva contra os povos
mobilizados. É inevitavel a comparação entre os dois regimes (Fujimori e Boluarte): assassinatos por balas policiais durante as manifestações, prisões arbitrárias, invasões sem fiscais à espaços políticos e universidades públicas, infiltrações e espionagem de ativistas e organizações sociais, tortura e humilhação em delegacias, militarização de zonas em conflito, tanques nas ruas, franco-atiradores em igrejas e prédios, sabotagem e armadilhas policiais, fomento de evidências falsas para deslegitimar e criminalizar, compra da imprensa corporativa, suspensão de direitos constitucionais, difamação e calúnia contra lideranças populares, violação dos direitos humanos, repressão brutal a todo ato de protestar, perseguição contra ativistas opositores… Todo isso com a ccumplicidade do Congresso, do Ministério Público, a igreja, a CONFIEP, a PNP e as FF.AA.

Tarefas para o movimento popular
Subimos para uma conflitividade que não é nova, mas é o transbordamento de
acúmulo de décadas de espera em extrema marginalização. Hoje explode um
pedaço de território que foi fragmentado desde o início, que nunca deixou de ser colônia e que nunca se livrou do jugo oligárquico. As cidades do interior só atendem à impunidade, da gestão do país nas mãos de uma minoria que detém o controle absoluto dos poderes do Estado. E a investida dos novos e velhos atores da ultradireita é tão grande que nos levaram a um cenário de derrota certa e permanente, onde qualquer possível “saída” para a crise acaba sendo funcional aos seus interesses. Renúncia de Dina Boluarte? Eleições antecipadas? Fechamento do Congresso? ¿Que se vayan* todos!? Sim! E depois? A perspectiva imediata, caso essas demandas sejam atendidas, não seria melhor do que o que já temos. A esquerda hoje tem capacidade de articular e capitalizar todo o estallido popular? Existe uma maneira de aterrissar sobre as tensões subjetivas à esquerda toda a explosão objetiva que estamos vendo?

O adiantamento das eleições está dado. Não vamos mais esperar até julho de 2026 para ter um novo governo, mas foi indicado (após alguma pressão sobre um Congresso com maioria de direita) que teríamos eleições em abril de 2024. Mas para a maioria dos manifestantes, isso ainda seria insuficiente, uma vez que é necessário um novo processo eleitoral para este ano (isso colide com as normas legais e estruturais para que tal processo seja realizado). Da mesma forma, se Boluarte renunciasse, seria sucedido constitucionalmente por José Williams, atual presidente do Congresso e ex-militar responsável pelo massacre de camponeses em Accomarca (Ayacucho) em 1985, durante o período do conflito armado interno.
Ou seja, o sucessor seria igual ou pior que o atual presidente. Por isso falamos da vitória certa do direito em qualquer possibilidade. É assim que entraria em debate um novo subcenário de luta onde a própria mobilização popular reivindica a saída de Boluarte, a exclusão de Williams e a tomada do governo por uma figura neutra, do centro democrático que comanda de acelerar um governo de transição. Isso é muito complicado, mas não tem outra saída que a população aceite.
A Assembleia Constituinte (AC) é um tema à parte, pois merece um maior
desenvolvimento analítico do tema. Nosso antecedente mais imediato é a
Assembleia de 1979, que obteve uma carta magna atendendo a boa parte das
reivindicações sociais de sua época, e que posteriormente foi anulada para impor a Constituição de 1993 sob a ditadura de Fujimori. Lá, o neoliberalismo foi introduzido como um modelo econômico “viável e sustentável” em voga para salvar a hiperinflação e a crise do Estado dos anos 1980. A proposta da AC foi um tema importante durante a campanha presidencial de Pedro Castillo com Dina Boluarte ao seu lado. Hoje, ela nos diz que “a Assembleia Constituinte é um pretexto para continuar bloqueando estradas e continuar quebrando as instituições do país. O problema de uma Assembleia Constituinte e uma nova Constituição não é da noite para o dia. É um trabalho que a própria população tem que fazer.” O pretenso esquerdismo que demonstrava antes de chegar ao governo nunca o foi, pois assim que pôde passou a ser o eco dos setores mais beligerantes do anticomunismo que querem impor a narrativa da impossibilidade de uma mudança constitucional ou o impacto nefasto que teria se fosse levado a um referendo.

Mas insistimos na erosão das possibilidades orgânicas da esquerda nacional, como fator a ter em conta para a recomposição do país. Desde a época do Fujimorato, toda estrutura mínima desse espectro político foi dinamitada por dentro e por fora. Com a ultraliberalização da economia veio a onda de privatizações de empresas estatais e o consequente processo de demissões em massa da classe trabalhadora.
Agravou-se a investida governamental para desmantelar e até mesmo fazer
desaparecer os sindicatos que foram a força motriz em dias de luta das décadas
passadas. Muitos sindicalistas e dirigentes sindicais foram assassinados pelas mãos de grupos paramilitares e parapoliciais (principalmente o Comando Rodrigo Franco e o Grupo Colina, nas décadas de 1980 e 1990, respectivamente). Sob o eterno pretexto da “luta antisubversiva” se criminaliza toda organização de esquerda e se menospreza todo o capital humano e militante acumulado desde quarenta anos antes.

Após um longo período de ostracismo, ineficácia e irrelevância em nível de massa, a esquerda peruana se renovou com o surgimento do partido Peru Libre, pois respondia a uma lógica diferente. Não se tratava de uma estrutura de capital, mas sim de raízes regionais assentes numa zona estratégica do planalto central.
Definiam-se abertamente como “marxistas, leninistas, mariateguistas” e mantinham um espírito de confronto com o sistema vigente, apesar da aura conservadora (em questões socioculturais) que pairava sobre eles. Chegaram ao segundo turno sob uma polarização tensa que revelou a face mais miserável da elite peruana. Nunca se aceitou que Castillo, homem do campo e com passado sindical, chegasse a governar o país. Essa mesma dinâmica de racismo cultural e institucional, Mobilizou boa parte do país em torno de um slogan de solidariedade a Castillo e seu meio político, e contra a máquina corrupta e autoritária encabeçada por Keiko Fujimori (a filha do ex-ditador). Mas não demorou para que, do poder, o próprio Castillo (e Peru Libre também) demonstrasse os erros e limitações de sua gestão, expondo um populismo gasoso ao invés de firmeza e convicção ideológica. “O primeiro governo
de esquerda” em toda a história do Peru caiu de forma estrondosa.

Voltando ao cenário atual, resta apenas continuar empurrando o curso da história para cenários mais abrangentes. Hoje a reivindicação de uma Constituinte aparece como uma reivindicação de projeção histórica. É verdade que podemos entrar em um novo período de disputa política para buscar novas rupturas democráticas com a própria institucionalidade burguesa, para dar a essas instâncias um conteúdo popular. A aposta vai na direção da inclusão de setores sociais hoje afastados das decisões nacionais. No entanto, refira-se que o debate sobre esta matéria é ainda insuficiente e, por isso, o desconhecimento do enquadramento legal ou estrutural de um novo contrato social. Também aqui a direita ganha terreno através do monopólio da mídia, desde onde se assiste a bondade do capítulo econômico da constituição Fujimorista, apesar de que estas últimas décadas isto tenha significado ao país entrar em um processo de empobrecimento em grande escala (desmontando o mito do “!milagre peruano”), com contratos vantajosos para pra as grandes transnacionais e nocivos para os povos originários, com maior precarização do sistema laboral para benefício do empório empresarial reunido em associações como a Confederação Nacional de Instituições Empresariais Privadas (CONFIEP) e
em detrimento do debilitado e minúsculo movimento sindical peruano.
Enquanto isso, ainda é urgente continuar disputando pelas ruas contra a repressão policial e a partir da própria dinâmica da luta de classes buscar a quebra da hegemonia sociocultural da burguesia e de seus operadores políticos. A ditadura de Boluarte vai cair, com certeza (seus próprios comparsas de direita já começam a se afastar e deixá-la sozinha). E devemos preparar a ofensiva para o próximo cenário de luta. Este é um processo, com avanços e retrocessos, que não deve ser abandonado ou subestimado. A nível nacional, reforçam-se os espaços de assembleia para a tomada de decisões e fortalece-se a unidade a partir da luta entre os vários sectores que se somam à firme resposta do povo. Apesar dos mortos, feridos, detidos e perseguidos, o moral do combatente não diminui entre os de baixo. Isso é conhecido pelo poder do dia, Por isso, não hesita em afinar a repressão ao nível do terrorismo de Estado. A aposta imediata, para as franjas de esquerda com intenções revolucionárias, deve ser capitalizar todo o descontentamento popular e buscar reconstruir uma nova alternativa de massas que consiga interpretar a complexidade dos novos tempos e plasme uma clara e contundente proposta política de transformação.

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