Texto de opinião de JG, militante da Resistência Popular Estudantil – Floripa, em contribuição ao chamado do Movimento Ponta do Coral 100% Pública por depoimentos aos #40anosPelaPontaDoCoral.
Quando acordei hoje, não imaginei que escreveria esse texto. A verdade é que essa era uma tarefa atrasada desde novembro de 2020, quando o Movimento Ponta do Coral 100% Pública convidou o povo a relatar suas memórias em relação a essa luta, para celebrar os 40 anos do movimento. Uma tarefa adiada em meio à pandemia, como tantas outras que surgiram em 2020, esse ano adiado para um futuro que não sabemos se existirá mais.
É bom assim, relato-surpresa ao invés de relato-tarefa. De surpresa é mais gostoso.
Li pela manhã o ensaio poético da Mariela e do Rinaldo sobre as rebeldias que elas inventaram fazendo estágio-docência no IFSC, puro suco dessa mesma geração da Biologia UFSC sobre a qual quero contar pra vocês. Geração que riu, lutou, criou. Geração que, cinco anos atrás, sentada nos sofás esburacados do Centro Acadêmico, sonhava em chegar em peso na escola pública em 2020, sem saber dos desafios que tinha pela frente: golpe, austericídio, ultraliberalismo, milicos, pandemia.
Mas se o presente é de morte e de desesperança, ainda posso escolher escrever sobre vida, sobre vontade. E foi assim que resgatei a tarefa de escrever sobre a Ponta do Coral e o CABio.
No final de 2014, voltei pra nossa terra, depois de um ano com saudade de tudo que tem aqui: das comidas, do trânsito, da música, da desigualdade, da alegria. Mas, acima de tudo, voltei com fome das ruas, de estar entre os meus e de semear rebeldias.
Aquele 2015 começou com as maldades urbanas de todo ano, um novo aumento do busão, que o Movimento Passe Livre tentou enfrentar nas ruas. O mar não estava pra peixe, tinha virado uma maré que, sinceramente, nunca mais voltou. Após poucas semanas de redes vazias, nossa última ação foi uma nota de solidariedade para a Ponta do Coral – e fomos marcar uma presença (simbólica) na primeira reunião aberta convocada na EEB Padre Anchieta.
A construtora Hantei apareceu no início do ano com um megaprojeto de hotel de luxo e marina na Ponta do Coral, contando com apoio do órgão estadual ambiental e do prefeito da cidade. A situação lá parecia crítica e a minha convivência dentro do curso de Biologia da UFSC parecia oferecer uma boa oportunidade. Um terreno fértil que achei que poderia jogar as sementes rebeldes que estavam frustradas. Típica presunção jovem.
Não fazia ideia da profundidade das raízes plantadas naquele solo, que alcançavam a rocha firme do promontório que faz parte do maciço total da Ilha. Não plantamos nada. Eu e minha geração da Bio UFSC é que fomos fecundados por toda aquela história de luta – e por conhecimentos específicos, como o significado de “promontório”, “Área Verde de Lazer”, “incorporadora”, “Licença Ambiental Prévia”, palavras que viraram cotidianas em 2015. Saber situado na luta.
Começamos o ano na UFSC incluindo a Ponta do Coral na calourada do CABio. Em 11 de março, uma reunião aberta formou o grupo “Biologia na Ponta do Coral”, com 29 pessoas, organizadas entre tarefas de mobilização com o Movimento e também um pé mais institucional, tentando trazer apoio científico da universidade para a causa.
Na semana seguinte (16/03/2015), junto com o curso de Geografia, organizamos a BioGeoPipocada, um cine-debate sobre a Ponta do Coral onde mais de 50 pessoas estiveram presentes, e no dia 19/03 houve uma festa do curso dedicada a levantar recursos, organizada pelo GEABio. No mesmo dia da pipocada, o movimento fazia uma ação em frente à Câmara de Vereadores; em 19/03, houve um mutirão de limpeza na área; em 20/03 organizamos uma grande mesa redonda na UFSC fundamentando as críticas ao projeto da Hantei; e de 21 a 23/03 já fizemos a Maratona do Coral ocupando a Ponta com gente, cultura e debate político. A luta na cidade estava fervendo.
A participação ativa de estudantes da Bio UFSC no movimento durou todo o ano de 2015. Isso, em si, não era nada muito diferente de outras lutas da cidade com participação estudantil. A diferença no caso da Ponta do Coral foi o resultado em fazer com que a luta integrasse a vida mais ampla do curso, adentrasse de alguma forma suas salas de aula, a atividade de seus docentes e os eventos do curso.
Ainda em março, o Departamento de Ecologia e Zoologia (ECZ/CCB/UFSC) e o Programa de Pós-Graduação em Ecologia (PPGEcologia UFSC) se posicionaram contrários a qualquer construção na área. Em abril, o Departamento de Botância (BOT/CCB/UFSC) produziu uma nota pública em favor da manutenção do espaço natural na Ponta. Em maio, o Departamento de Botânica (BOT/CCB/UFSC), o MICOLAB-UFSC e o Movimento organizaram um levantamento de espécies no local, aberto a estudantes e toda a população, produzindo fotos e identificação de mais de 70 espécies. Em agosto, durante a Semana Acadêmica, foi realizado na Ponta do Coral o BioBlitz, um passeio de identificação de espécies com professores e estudantes. Após um ano de articulação, foi aprovado no Conselho Universitário um posicionamento institucional de que a UFSC apoiava a criação do Parque Cultural das 3 Pontas, pois possuía interesse científico e acadêmico na área preservada.
Ainda que o movimento tenha encontrado muitas e muitos parceiros entre os professores do curso, a maioria dessas ações acima foi resultado direto da mobilização e reivindicação do Centro Acadêmico. No caso do posicionamento do Conselho Universitário, militantes do movimento com vínculos em outros cursos e centros da UFSC também foram fundamentais.
Como um registro histórico, acho que a participação de estudantes em duas outras lutas também tiveram esse caráter de contaminar o próprio currículo do curso: a defesa dos agricultores dos Areais da Ribanceira, em Imbituba, que recebeu saídas na Semana da Biologia, vivência do EREB-Sul 2010 e sediou o EREB Sul 2016; e, em menor grau, a mobilização contra o estaleiro OSX em Biguaçu, em 2010, que teve forte participação do GEABio, grupo de extensão do curso.
Mas que movimento era esse ao qual nós estávamos nos juntando em 2015? Que força era aquela e como ela fluiu tão rápido, tão fácil entre nós?
Certamente há razões de ordem conjuntural, razões políticas, pedagógico-curriculares, explicações que remetam ao momento de ascenso da luta estudantil, em geral, e do excelente momento que vivia nosso Centro Acadêmico. Basta saber que, naquele ano, estudantes da UFSC também fizeram uma greve estudantil contra os cortes de verba do governo Dilma. O CABio vivia um momento em que a histórica prática da autogestão se encontrava, como nunca, com os movimentos sociais e as lutas do resto do movimento estudantil, superando uma cultura de certo isolamento político e de “revolução micropolítica” que tínhamos antes.
Mas queria chamar atenção para uma razão de certa forma mais existencial, vinculada aos processos de identidade.
Uma grande força do surgimento do Movimento Ponta do Coral 100% Pública, 35 anos antes, haviam sido estudantes da UFSC, principalmente no curso de Arquitetura. Outros estudantes de chinelo, cabelos compridos, insatisfeitos com seu estudo restrito aos muros da universidade. Estudantes querendo fazer arte e lutar.
As fotos e os relatos de 1980 nos mostram palhaços, momentos de educação ambiental com crianças, pintura coletiva de um mural, peças de teatro, mas também faixas e trancamento de ruas. Não quero aqui fazer uma defesa ingênua da ação pacífica, artística, frente à violência do capital, mas ressaltar o caráter da ação coletiva e da prática, da mão na massa, que sempre nos interessou muito. Acredito, inclusive, que tanto uma geração quanto a outra estaria preparada e disposta para radicalizar a luta, se necessário for.
Existe um fio comum que ligava nossos anseios, o impacto do desenvolvimento capitalista. Ele avançava de forma orgânica sobre áreas que aprendemos a ver separadas: o dito “meio ambiente”, os vestígios arqueológicos, o uso do solo urbano, os pescadores, a cultura açoriana marítima, a paisagem da nossa baía, o planejamento da cidade. A luta importava porque era um símbolo de algo muito maior que aqueles metros quadrados em disputa, maior inclusive do que as disciplinas acadêmicas que tentavam circunscrever a problemática da Ponta. Sim, meus professores da área ambiental, em termos de biodiversidade a Ponta do Coral é pobre. Mas isso não significa que essa não é uma significativa pauta ambiental. As fórmulas da ciência Ecologia não demonstraram para nós como o capital faz um ataque integral, coordenado, sobre a vida. Mas sair da sala de aula, andar na Ponta, conversar com as pessoas, somar esforços no movimento, colocar nossos corpos em conflito com o capital imobiliário que manda na nossa mídia e em nossas instituições… possibilitaram ver o “inteiro ambiente”.
Essas mobilizações estudantis não são coincidências. Che Guevara, otimista mas vacilante na biologia, disse que ser jovem e não ser revolucionário é uma “contradição genética”. Mas o pensamento crítico sobre a universidade brasileira mostrou que não se trata de genética, mas sim da forma pela qual se cria e se organiza essa instituição. Os docentes detêm controle das instâncias deliberativas, dos currículos e das dinâmicas de poder em sala de aula; Maurício Tragtenberg os chamou de “mandarinato acadêmico” no clássico “A delinquência acadêmica“. Essa universidade está alinhada com o modo de produção capitalista, mas a categoria estudantil ainda não tem compromisso com essa ordem e buscou, historicamente, a “delinquência” de buscar o saber e a atuação fora dos moldes universitários. É da categoria estudantil que surgem as propostas e a força mais radical de transformação da universidade.
Sentimos isso na pele muitas vezes. Uma delas aconteceu durante essa mobilização pela Ponta do Coral. O professor que ministrava a disciplina de Licenciamento Ambiental, um doutor especialista no tema, discordou parcialmente das reivindicações do movimento. Reconhecia que um mega-hotel na área era um problema, mas disse que a construção da marina, em si, não deveria ser criticada, pois segundo ele os donos de lanchas também defenderiam a preservação da baía onde queriam usufruir. Quantos artigos acadêmicos custa para comprar o próprio iate?
Hoje, enquanto comemoramos esses 40 anos do Movimento Ponta do Coral 100% Pública, a correlação de forças está novamente negativa, as classes dominantes cercam as possibilidades jurídicas e políticas de defesa da área pública, mas o fato é que ainda não há obras no local. São 40 anos de vitória parcial.
Há 150 anos, o naturalista Fritz Müller fugiu da Europa pela perseguição dos religiosos e acabou vindo morar aqui em Blumenau e Florianópolis. Praticamente sozinho, com equipamentos rudimentares, andou ele mesmo pela Ponta do Coral e escreveu centenas de estudos, trocando cartas com Charles Darwin e publicando o primeiro livro da história que discutiu e apoiou cientificamente suas teorias evolutivas.
Lembro disso agora porque sei que nossa luta continua e acredito que ainda acabará vencendo definitivamente. Não esperaremos mais 40 anos para ter nosso Parque Cultural das 3 Pontas. Mais cedo do que tarde, devemos construir nós mesmos dois monumentos na área: uma homenagem a Fritz Müller, pela eterna contribuição de seu esforço pra ciência, e outra homenagem ao Movimento Ponta do Coral 100% Pública, para eternizar a lição de que a luta popular é poderosa. Lição que nossa geração de estudantes já aprendeu naquela terra.
Dedico a esse sonho essas palavras saudosas.
#40anosPelaPontaDoCoral
Na foto de capa, um registro da celebração dos 35 anos do movimento, no final de 2015.