O agravamento da desigualdade de gênero durante a pandemia

 A situação das mulheres, com ou sem pandemia, já é um tanto quanto complexa por causa das premissas patriarcais estruturadas. Com a quarentena, as problemáticas de gênero estão se acentuando cada vez mais; o aumento da violência doméstica é uma realidade, as dificuldades para conseguir manter os custos de vida surgem de forma emblemática, o home office bate nas nossas portas, as crianças estão em casa e precisam de ajuda com o ensino remoto e as lacunas que eram preenchidas, minimamente, pelas escolas, faz com que a sobrecarga do trabalho doméstico sobrecaia ainda mais sobre nós, mulheres. Nessa conjuntura pandêmica e sem previsões de melhora, na qual as mulheres estão completamente na linha de frente no combate ao COVID-19, é necessário explanarmos que os ataques às mulheres continuam e, pior, estão se intensificando. 

 Em primeiro lugar, é de suma importância ressaltar que a violência doméstica (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral) vinculada ao isolamento social imposto pela pandemia cresceu em todo o território nacional. Algumas pesquisas publicaram o aumento de 50% só no Rio de Janeiro, mas esse número pode ser ainda maior. Se antes da pandemia as mulheres não se sentiam seguras para denunciar os agressores, com o isolamento social as complexidades de sair de casa e denunciar ficaram ainda mais difíceis, assim como sair de perto do agressor. Nesse sentido, diversos canais de denúncia surgiram, como o disque 100 e o 180.  Ainda que haja esses canais de denúncia é importante contarmos umas com as outras, tanto para acolher as mulheres quanto para identificar as agressões e os agressores. 

 Logo em seguida, podemos enfatizar que a sobrecarga do trabalho reprodutivo recai de forma ainda mais acentuada nas mulheres durante o período de confinamento. Devemos explicitar que o trabalho reprodutivo diz respeito ao trabalho doméstico (incluindo a criação de filhos e cuidado com idosos ou doentes) realizado, em grande maioria, pelo gênero feminino de forma não remunerada – pois é considerado desimportante do ponto de vista capitalista. Essa desvalorização oculta que todo o processo de acumulação capitalista depende da exploração gratuita da força laboral das mulheres, uma vez que essa possibilita o trabalho produtivo de toda classe trabalhadora. Essa lógica de exploração laboral se dá de forma mais intensa no isolamento social uma vez que, no caso das mulheres que são mães, o cuidado com os filhos se dá a todo tempo e surgem demandas a mais nesse período (a saber, cozinhar todas as refeições devido a falta da merenda escolar e prestar auxílio a atividades escolares, no caso de escolas que adotaram o EAD). Ainda, quanto mais tempo se passa em confinamento, mais tempo se passa limpando a casa e cozinhando – uma vez que comer em restaurante universitários, restaurante populares ou utilizar ticket alimentação para refeições prontas já não são mais uma opção.

 Outro problema muito concreto é essa nova solução encontrada e usada por várias empresas e que ganhou bastante popularidade desde o início do confinamento: o tal do “Home Office”. Ao mesmo tempo que essa “solução” se propõe a “ajudar” e manter as pessoas empregadas e trabalhando durante a pandemia, ela também aumenta e dificulta ainda mais a jornada de trabalho das mulheres, isso em vários aspectos. A jornada acaba sendo intensificada por vários motivos, como reuniões extras e não planejadas com antecedência e nem pagas, trabalho, tarefas e horas extras não-remuneradas (por se considerar que como as pessoas estão em casa e elas teriam mais tempo) e isso acaba também sobrecarregando as mulheres com o trabalho doméstico e reprodutivo. Fora isso, outro problema é que muitas empresas não custeiam o home office, e o custo da energia, internet e uso de computador, aparelho celular, linha telefônica e outras ferramentas digitais acabam sendo responsabilidade dos trabalhadores e trabalhadoras. Sem esquecer de mencionar também que muitas pessoas que costumavam se alimentar no trabalho, com a comida fornecida pela empresa (como um auxílio alimentação no lugar de um ticket refeição/alimentação), e que hoje estão trabalhando a distância, tenham ainda mais gastos com comida dentro de casa, sofrendo uma ainda maior precarização. Ou seja, as mulheres estão trabalhando muito mais e não estão recebendo mais por isso, muito pelo contrário: estão pagando para trabalhar!  

 Um ponto de bastante relevância para desenhar as condições nas quais as mulheres estão sendo submetidas durante a pandemia no RJ é a solução apresentada pela SEEDUC, que substitui as aulas presenciais pelo ensino à distância e desconsidera a realidade das famílias brasileiras, escolhendo ignorar o abismo social que inviabiliza o acesso às aulas para grande parte dos alunos, que sequer têm acesso a internet. Em um momento de crise como este, onde uma enorme porcentagem dos trabalhadores perdeu sua principal fonte de renda devido a já precária condição no mundo do trabalho, as muitas mães que contavam com a merenda escolar, hoje mal podem garantir a alimentação dos filhos, quanto mais dispor de tempo ou ferramentas necessárias para dedicar ao acesso às aulas virtuais. Entendendo que a falta de recursos dos estudantes somado ao sucateamento do ensino público criam condições muito desfavoráveis ao aprendizado, a decisão em manter as aulas nessa modalidade desconsidera que o ensino público deve ser para todos e cria mais uma preocupação para as mulheres que são mães.

 Além do já mencionado impacto do Home office na situação das mulheres, não podemos deixar de colocar que a linha de frente no combate ao COVID-19 é composta majoritariamente por mulheres na atuação como enfermeiras, técnicas de enfermagem, auxiliar de limpeza e médicas nos hospitais. Mesmo em meio a uma situação extremamente adversa e desumana nesse período de pandemia, que é causada pelas condições precárias de trabalho e fruto do sucateamento da saúde pública e desmonte do Sistema Único de Saúde, essas profissionais estão lutando diariamente contra o vírus, salvando vidas e correndo o risco de contaminarem si mesmas e seus familiares. Com isso, reforçamos que essa crise pandêmica que estamos vivendo no atual momento tem gênero, classe e cor: as mulheres negras, pobres e periféricas são, infelizmente, as mais afetadas.

 Por fim, destacamos que a pandemia que estamos vivendo está aumentando ainda mais o custo de vida dos menos abastados e quando pensamos a situação das mulheres o diagnóstico é ainda mais preocupante. O efeito da quarentena – para algumas/alguns – está sendo a demissão, a redução salarial, o aumento do tempo de pessoas em casa que, consequentemente, aumenta os gastos com energia elétrica, água e alimentação, ficando inacessível para muitos/as. Somos nós, mulheres, que ocupamos, majoritariamente, os empregos precarizados, informais/autônomos e a ala dos desempregados e ainda é real a discrepância salarial entre homens e mulheres, além disso não são poucas as famílias chefiadas por mulheres. E também não podemos esquecer de falar sobre as trabalhadoras domésticas que fazem parte de um dos setores mais precarizados, onde muitas vezes não têm carteira assinada, ou seja, não têm nenhuma garantia financeira no atual momento. Também existem muitas mulheres que ou perderam seus empregos ou que ainda continuam sendo obrigadas a continuar a trabalhar, mesmo diante do perigo da pandemia. Foi o caso em Belém do Pará, onde o prefeito da cidade incluiu o trabalho doméstico como essencial durante o lockdown, forçando então as mulheres a continuarem colocando sua saúde em risco ao sair para trabalhar. O capitalismo já impõe altíssimo e injusto custo de vida aos de baixo, com a pandemia isso se acentuou e as mulheres, que contam ainda com as mazelas do patriarcado estrutural estão pagando ainda mais caro. 

Diante do quadro apresentado, fica evidente que o contexto da pandemia e o do consequente isolamento social aprofunda uma situação de desigualdade de gênero. E é por isso que nós, Mulheres na Resistência RJ, enfatizamos a importância da auto-organização da classe trabalhadora e das mulheres para fazer avançar a luta pela transformação social e assim, garantirmos uma vida digna a todas/os. Nessa linha, colocamos a centralidade da solidariedade de classe em tempos de coronavírus e sublinhamos que a solidariedade deve ser construída por ações concretas e com a perspectiva de gênero. As mulheres são as mais afetadas pelo aumento da violência doméstica e aumento do custo de vida, as mais sobrecarregadas pelo trabalho doméstico e home office e as mais afetadas com o fechamento de escolas. Somos as que têm os direitos mais violados ao passo que somos as que estamos na linha de frente para o combate da epidemia, da fome e da violência.

MULHERES JUNTAS NA LUTA POR VIDA DIGNA!

Mulheres na Resistência – Rio de Janeiro