A era da sandice profunda: três origens identificadas

23 de julho de 2019, Bruno Lima Rocha

No texto que segue, me arrisco a indicar três origens, ou vertentes, da sandice que assola o debate político brasileiro, contaminando a esfera pública do país, os conglomerados oligopolistas da opinião publicada e a legião de robôs reproduzindo mistificações que reforçam a ignorância coletiva. Não é um tema fácil embora evidente. Trata-se de um processo cujo ápice – no tempo presente – está na própria comunicação política do presidente da república, Jair Messias Bolsonaro.

Uma breve genealogia da sandice que assola a política brasileira

Estava calculando o tempo gasto e dedicado pela chamada “nova” direita, não os Coisominions (os que comumente são apelidados nas redes sociais de Bolsominions), mas o conjunto de ultraliberais vindos à público a partir dos cursinhos da Atlas Network e tive uma constatação.  Estamos diante de um modelo de negócios, onde essa gente monetarizou a baixaria e mudou o paradigma do debate político. Como foram treinados e receberam bolsas para a “lavagem cerebral” (confundindo propositadamente uma abordagem doutrinária com a necessidade de teorias de médio alcance), sua missão é se tornarem “empreendedores comunicacionais”. Assim, através das redes sociais, os ex-bolsistas da Atlas, reprodutores dos índices da Heritage Foundation, Fraser Institute, Montpelerin Society (dentre dezenas de outros) divulgam a causa das grandes transnacionais, mas também adquirem valores do capitalismo, como status e reconhecimento. O problema é que os jovens arrivistas abriram as cloacas ou legitimaram o mundo sem noção já existente.

Aberta a porteira, o processo é incontrolável. Danem-se os fatos e as teorias de fronteira, justo àquelas que conversam com as realidades e dão existência concreta às doutrinas ideológicas. Não. Que venha a absoluta insensatez e mistificação do debate. Pronto, abriram os portões do inferno para a ascensão do conservadorismo imaginário, buscando “conservar” um ocidente heteronormativo perverso e que no Brasil ainda foi colonial e escravocrata.

Indo na raiz do processo, temos de dar razão ao jornalista Luis Nassif. As manadas foram antecedidas pelos conglomerados de mídia, hoje atacados pelas redes e robôs bolsonaristas, tal qual ocorre nos EUA. Assim, hoje gente da direita lúcida como Reinaldo Azevedo cumpre a triste sina do Correio da Manhã de ressaca após os vergonhosos editoriais de Fora e Basta em 1964. Nesta esteira contemporânea seguem Folha, Estadão, Veja (ainda flertando com o horror sensacionalista) e mais recentemente os “colonistas” do sistema financeiro – citando o imortal Paulo Henrique Amorim – Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardenberg. A que ponto a sandice chegou!

Os neopentecostais bloquearam o debate político e atingiram até o protestantismo tradicional

Recentemente em um podcast afirmei que o que mais faz falta hoje no Brasil, para a luta ideológica me refiro, são programadores e teólogos. Sei que estou sendo injusto, porque há todo o esforço do pessoal do software livre e temos a trajetória heroica tanto da Teologia da Libertação como a da Missão Integral. Também reconheço, ainda de forma autocrítica, que mais observo do que entendo esse processo. Mas essa ironia citada no programa de áudio meio realista se deu por uma razão. Percebo que estamos diante de um bloqueio do debate político. Isso no país de três terços, tomando em conta o suposto apoio aferido ao desgoverno Bolsonaro no Datafolha.

Não me assusta tanto a difusão do ultraliberalismo e nem das afirmações estúpidas do astrólogo Olavo de Carvalho. Óbvio que dá pena ver o bom debate econômico e a astrologia séria ambos sendo vilipendiados por usurpadores. Mas isso dá para confrontar.

O mais difícil é contrapor a interpretação capitalista do Velho Testamento como fazem os exploradores da fé alheia em dezenas de “igrejas” dedicadas ao proselitismo conservador e a blasfêmia do significado de Jesus da Palestina. Sei que é fácil dizer e difícil de realizar, mas ou se faz um mutirão entre a ala sana e comprometida do protestantismo praticado no Brasil, ou isso aqui vai virar os Estados Unidos em termos de demência coletiva. Se é que já não viramos.

Não estamos distantes de uma absoluta mistificação do debate político e da ausência de uma esfera pública popular, sendo esta um eterno projeto de poder da militância da democracia na comunicação. Segundo o jornal The Intercept, o presidente Jair Bolsonaro mentiu mais de 200 vezes desde que assumiu. Sem exagero algum tudo comprovado. E como desmontar as falácias?

Vestígios das origens da demência que se pretende porta-voz do homem comum 

Recentemente li um artigo no Medium (https://medium.com/@thomasafine/tsargrad-tv-the-fox-news-of-russia-5048c14fbda7)  a respeito da Tsargrad TV, afirmando ser esta emissora a Fox News da Rússia. Trata-se de um texto bastante especulativo por sinal, mas que explica bem as relações da Fox News e a “filosofia do homem comum”, defendida por Olavo de Carvalho e sua legião. Recordo que na década de ’90, após a vitória do democrata (amigo do mercado financeiro) Bill Clinton, houve uma aliança chamada Neocon (neoconservadores) e Telecon (tele-evangelistas), pautando o debate político no cenário doméstico do Império. Esta nova (velha) direita mais à direita foi além do pior da mescla entre Nixon e Reagan, a última referência do Partido Republicano. Alimentou tal metástase ideológica a empresa do famigerado Rupert Murdoch (e hoje seus descendentes liquidando parte do conglomerado), alterando de vez o debate político e o “telejornalismo” dos Estados Unidos. A era de ouro do ofício e da indústria do jornalismo defendia a ideia da verdade radicalizada na política, como parte de uma democracia de avançada no coração do ocidente. O auge foi na cobertura de Watergate, e todos somos produto disso até hoje. Para contrapor a teoria da brecha e da verdade em si, é preciso ir fundo no inconsciente coletivo do coração da AmeriKKKa. A Fox News conseguiu – e consegue ainda – disseminar a desinformação “legitimada”, reproduzindo a estupidez como referência em vários países, Brasil inclusive.

Também na primeira etapa pós Bipolaridade, no meio da mais profunda crise da Rússia (no caos do governo Gorbatchov e depois no período Boris Yeltsin, já sem a União Soviética), as peripécias do propagandista místico e pretenso Rasputin Alexander Dugin ganharam forma.  Em 2014, Dugin foi supostamente demitido na Universidade Estatal de Moscou (fato nunca comprovado, pois alegam que ele teria se afastado) e, “coincidentemente”, o jovem oligarca Konstantin Malofeev começou a montar uma rede de difusão da Ortodoxia Russo-Bizantina. Em abril de 2015 a Tsargrad TV é fundada tomando como referência a Fox News. Adivinhem quem trabalha na emissora e sem uma função explícita embora sempre presente? O próprio mistificador Alexander Dugin, editor oculto. Olavo de Carvalho “debateu” com o mesmo, e há certa correlação entre ambos, ainda que o astrólogo alegue o contrário. Vale observar o “prêmio desgraça nacional”. O professor russo é uma farsa intelectual na sua propaganda intolerante, mas enfrentou o estudo formal, sendo doutor em sociologia, ciência política e filosofia (https://moscowstate.academia.edu/AlexanderDugin). Já o “professor” Olavo…

 

Bruno Lima Rocha (estrategiaeanaliseblog.com / blimarocha@gmail.com) é doutor em ciência política e pós-doutorando em economia política; docente nos cursos de relações internacionais, direito e jornalismo. É membro do Grupo de Pesquisa Capital e Estado (https://www.facebook.com/capetacapitaleestado/)