Das várias citações e referências que Woody Allen coloca em seu grande filme Annie Hall (Noivo neurótico, noiva nervosa, 1977) é ao Balzac. Diz qualquer coisa sem mediação num gesto que começa a mostrar a linguagem inovadora que empreende e que já ironiza a postura pedante dos (pseudo)intelectuais que irá atacar constantemente. A relação com Balzac, escritor francês do século 19, está ligada a um dos três tópicos que abordarei brevemente nesse texto, o da crítica à burguesia e ao intelectualismo. Os outros dois temas são a inventividade da narrativa proposta por Allen nesse filme e como ele trabalha com o conceito de ficção. Coisa que é pressuposto quanto falamos em filmes do Woody Allen e que não se pode esquecer é, primeiro, um machismo estrutural que aparece nas cenas de diversas formas; segundo, todas as histórias, provadas ou não, em torno de sua figura e a relação com sua ex-mulher Mia Farrow e seus filhos.
Sendo assim, vamos ao primeiro ponto. A crítica ao intelectualismo e à burguesia aparece do início ao fim do filme, desde a cena na fila do cinema até quando namora uma intelectual e vai a uma festa vazia e cheia de aparências. O contraditório e interessante é que Allen é um intelectual, e a imensa carga de citações em vários de seus filmes corroboram esse aspecto. E é aqui que uma relação com Balzac talvez faça sentido. Em um livro chamado O pai Goriot, o escritor francês constrói uma crítica à burguesia e seu modo de vida, cheio de aparências, futilidades, mesquinharias. O engraçado é que sua crítica é um tanto enviesada, conservadora em certo sentido. Há uma crítica estando no lugar do que é criticado. Enfim, voltando ao filme, a crítica é dura e cheia de piadas, muito inteligente também, marcando um ponto de virada na carreira de Allen, que antes fazia comédias cujo riso era oriundo do corpo, dos gestos; agora o humor vem principalmente da ironia.
O segundo ponto é a inventividade formal, que quer dizer a maneira inovadora como o diretor se utiliza das ferramentas cinematográficas, como por exemplo o uso da câmera. Em várias passagens é possível ver isso: em mais de um momento, fala olhando para a câmera, quebrando a quarta parede, como se diz, falando diretamente para nós, telespectadores; em outro momento, quando grava o casal de protagonistas simultaneamente conversando com seus analistas, grava aquilo junto, com uma divisão física da cena e não da montagem, o que traz uma sensação de diálogo e vivacidade pra cena que não seria tão bem executada nos moldes tradicionais; e um dos melhores momentos de inovação, quando o casal conversa e, na parte superior da tela, vemos legendas que expõe o que eles estão pensando no momento da fala, movimento genial e que só o cinema poderia proporcionar.
Último ponto: a maneira como Woody Allen brinca com o conceito de ficção. Foi dito acima que em alguns momentos, o personagens olhava e falava diretamente para a câmera. Isso implica duas coisas: a primeira é que ele nos diz que o que estamos vendo é um filme, não a vida real (interessante ver que no livro citado de Balzac, o narrador diz que irá contar a verdade, que aquilo não se trata de ficção…); segundo que traz o espectador para dentro do cinema, como que buscando que interpretemos aquilo e que componhamos a cena junto. Isso traz à tona o conceito de ficção e sua aplicabilidade nos dias atuais (o filme é de 1977 mas ainda vale). O que precisa ficar claro é que ficção está entre a verdade e a mentira sem que se sobreponha para nenhum dos lados. A piada sobre isso chega ao auge, talvez, no final, quando o personagem diz que seria bom que a arte resolvesse os problemas da vida real (ele não fala exatamente assim, mas é quase isso). O que significa dizer que a arte é a mediadora entre a vida real e os anseios das pessoas. Para Woody Allen, é mais um motivo de piada.
Rodrigo Mendes