O Brasil, fazendo jus a sua diversidade sociocultural, tem um cinema (e isso vale para outras artes também) muito variado, mudando seus temas e suas formas. Exemplo: lá pelos anos 50 imperava o neorrealismo de Nelson Pereira dos Santos, que, depois, com o Cinema Novo em voga, passaria para um olhar mais subjetivo e de ordem não realista mas alegórico, como os filmes de Glauber Rocha. Dois exemplos de filme são Rio, 40 graus e Deus e o Diabo na terra do sol. A temática e a forma mudaram: olhar sobre as desigualdades sociais e raciais no Rio de Janeiro e uma abordagem fria, gravada na rua mesmo, no primeiro caso; câmera e narrativa inventivas, abordando o sertão do Brasil, mas com isso fazendo alegoria sobre o mundo político brasileiro, além de atentar a figuras icônicas daquele contexto, no outro.
Hoje em dia parece haver uma mescla entre as abordagens objetiva e subjetiva no cinema do processo social brasileiro. O que tentarei mostrar aqui, de maneira ultra sumária, são os dois modelos de cinema, com o predomínio de um – o subjetivo – mas que carrega consigo o peso da história social do país, além de apontar para um filme que talvez sintetiza esses dois lados.
Pois bem, do primeiro caso os dois Tropa de Elite são exemplos bons, além do recente Que horas ela volta?. Narrativas realistas, no sentido de mostrar nada além do que o/a realizador/a entende como real, sem “truques” de filmagem ou inventividade formal, mas mostrando diretamente a sociedade brasileira ficcionalizada no filme – formas mais conservadoras. Violência policial e tráfico de drogas no primeiro caso, desigualdades racial e social na figura da empregada doméstica no outro, juntos formam um lado do cinema brasileiro contemporâneo, o que mostra de maneira objetiva a vida social brasileira e suas contradições, tensões, preconceitos etc.
De um outro lado, há os filmes subjetivos, que me parecem ser a maioria hoje em dia. Desde filmes criativos como o ótimo suspense O lobo atrás da porta ou Elon não acredita na morte (que trata sobre feminicídio, tema também em voga e vastamente discutido hoje em dia), a filmes como Ausente, Obra, e outros, que olham para dentro dos personagens, mostrando muitas vezes como o cotidiano empírico daquelas vidas interfere na sua subjetividade. Uma forma de cinema na qual temos noção da vida real sempre pelas beiradas do que sobra de subjetividade.
Um filme que parece juntar ambos os lados com um resultado estético muito interessante é O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho. Ele parece ter uma narrativa dupla, uma num plano mais profundo de desigualdades social e racial estruturantes da sociedade brasileira, e outro, o plano subjetivo dos personagens que compõem determinadas classes sociais no filme e que entram em tensão. O legal é que o diretor não sobrepõe nenhuma delas, cada lado do filme permanece junto e com força compondo o sentido da obra. Um exercício cinematográfico interessantíssimo, o qual mescla profundidade psicológica dos personagens junto a uma crítica profunda das relações sócio-raciais do nosso país.
PS: um dia, conversando com um colega, veio a ideia de que o representante de um cinema como o de Glauber Rocha hoje em dia é o Adirley Queirós. Muito bom diretor, com o grande Branco sai, Preto fica coloca uma nova forma de fazer cinema no horizonte cinematográfico brasileiro. Mistura de ficção com documentário, arte de vanguarda e ficção científica subvertidas pela escassez de recursos e pela desigualdade social, a obra é uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, como disse Glauber. É a possibilidade de fazer arte, arte mesmo, num país como o Brasil. Branco sai, preto fica fala, dentre outras coisas, da suspensão da história num contínuo de violência, o que atesta que nunca está datado; e que, infelizmente, sempre está.
Rodrigo Mendes, set/2018