Vidas negras importam?

É quase impossível que em algum momento você ainda não tenha se deparado com alguma notícia ou informação sobre a repercussão do caso de George Floyd, o homem negro de 46 anos que foi sufocado até a morte por um policial branco durante uma abordagem na semana passada, 25 de maio, em Minneapolis (EUA). Após seu assassinato uma onda de protestos explodiu por todo Estados Unidos cobrando por justiça frente a violência policial racista, e trazendo assim de volta o movimento BlackLivesMatter (VidasNegrasImportam) para as ruas dos Estados Unidos.

Quase uma semana antes em São Gonçalo (RJ), João Pedro Mattos de 14 anos foi brutalmente assassinado pela polícia do Rio de Janeiro, dentro de casa. O jovem que ainda teria sido levado pela polícia, ficou desaparecido para a família até ser encontrado morto no dia 19 de maio no IML de São Gonçalo. Ainda, segundo o laudo cadavérico, João Pedro teria sido alvejado pelas costas.

Nas redes sociais, uma série de homenagens foram postadas à João Pedro, jovem, negro e periférico, mais um para as perversas estatísticas do genocídio em curso no Brasil.

João Pedro Mattos, 14 anos, morto pela polícia do Rio de Janeiro no dia 18 de maio de 2020.

Quem ainda lembra da Ágatha Felix, criança negra de 8 anos, morta por um tiro de fuzil da polícia dentro de uma vã de transporte escolar em setembro de 2019. Ou dos 80 tiros de fuzil disparados pelo Exército Brasileiro, em abril de 2019, em Evaldo Santos Rosa- trabalhador negro alvejado em frente a sua família após ser “confundido”. E dos nove jovens pisoteados em Paraisópolis em novembro de 2019, após a violenta operação policial contra o baile funk?

A verdade é que esses casos representam uma parcela muito pequena do todo, e por mais que queiramos manter a memória viva, essa é uma tarefa quase impossível, pois de acordo com relatórios do Senado, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil pelo próprio Estado. O que está em curso no Brasil é um genocídio do povo negro e periférico que não começou pela morte de João Pedro e, infelizmente, também não terminará com ela.

O Atlas da Violência de 2019, produzido pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, constatou que entre os anos de 2016 e 2017 o Brasil registrou um aumento de 6,7% na taxa de homicídios de jovens. O mesmo documento também demonstrou que no período de uma década (2007 a 2017) houve um agravamento da desigualdade da letalidade racial, enquanto que a taxa de homicídios contra pessoas negras aumentou 33,1%, a de pessoas não negras cresceu 3,3%. Ser jovem e negro no Brasil é ter 3 vezes mais chances de ser assassinado, nas mesmas circunstâncias, do que um jovem branco.

O maior fator desses homicídios contra a população negra e periférica está diretamente relacionada ao crescimento e mortalidade da polícia brasileira que matou 4.224 pessoas em 2016, cerca de 26% a mais do que em 2015, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Apenas no período da pandemia estima-se que a PMERJ já matou mais de 20 pessoas em operações nas favelas do Rio de Janeiro. Além disso, há “carta branca” dada à esses polícias pelos governantes, até mesmo antes de Bolsonaro, Witzel, Dória e etc. A justiça brasileira sempre fechou os olhos, ou até mesmo foi conivente com esse genocídio, basta apontarmos as falas desprezíveis do presidente Jair Bolsonaro sobre caso de Marielle Franco, morta pelas milícias do estado do Rio de Janeiro no dia 14 de março de 2018. Com um tom de desdém, o presidente da república sempre tratou o caso com desrespeito, afinal, para ele, mais vale a vida do presidente da república do que a vida de uma mulher negra.

Como se não bastasse, com a chegada da pandemia que no início parecia “democratizar” a morte de maneira indistinguível fosse por raça, classe ou gênero, tem mostrado a força da desigualdade no Brasil, matando majoritariamente pessoas negras, essas que estão em estado de maior vulnerabilidade social no Brasil. O avanço da pandemia evidência como a desigualdade social opera, demonstrando como aqueles que podem ficar em casa trabalhando em home-office, que tem acesso à hospitais particulares e a estabilidade financeira tem se protegido durante esse período enquanto que povo negro, pobre e periférico fica exposto todos os dias. Seja buscando uma forma de sobreviver nessa crise – trabalhando em serviços de aplicativo como Uber, Rappi e etc- ou seja continuando a trabalhar nos seus trabalhos já precarizados, pois afinal a “economia não pode parar”. O resultado disso mesmo que com as imensas subnotificações sobre os casos do Covid-19, já mostra quem mais morre: é trabalhador negro e periférico!

Uma análise da Agência Pública demonstrou que só em abril, de 11 a 26, mortes de pacientes negros pela Covid-19 foram de 180 para 930, e o número de hospitalizados pela doença aumentou em 5,5 vezes. Ao mesmo tempo os casos de mortes de pacientes brancos, no mesmo período, triplicou e o número de hospitalizações manteve esse mesmo aumento. A cada 3 pacientes negros hospitalizados pela Covid-19, 1 morre enquanto que entre os brancos esse número é de 1 a cada 4,4hospitalizações.

O coronavírus é apenas um novo fator que pesa nessa balança de quem vive e quem morre. A comunidade negra não está morrendo apenas nas filas e leitos dos hospitais públicos,abandonados pelo Estado à merce de uma projeto sistêmico de genocídio, elas estão morrendo nos becos e vielas, estão morrendo nos presídios, estão morrendo dentro de suas casas, conquistadas com tanto suor, fruto de um trabalho duro e mal remunerado. Crianças negras estão morrendo dentro de suas escolas, essas se tornaram alvos de “balas perdidas”. As balas nunca estiveram perdidas, por trás de cada tiro disparado que atinge um corpo inocente, existe um policial ciente de suas ações. É necessário responsabilizá-los por cada vida tirada, é necessário exigir justiça!

O caso de George Floyd nos Estados Unidos está diretamente relacionado à esse sistema desigual,e sua repercussão midiática acabara revelando que a cena do assassinato de Floyd pelo policial de Minneapolis que chocou a maioria das pessoas (menos aquelas já lobotomizadas pelo bolsonarismo, racismo e o fascismo) não é uma realidade tão distante da brasileira. Quando um jovem negro morre no Brasil (ou em qualquer outro lugar do mundo), morre também um futuro em potencial, morre um sonho a ser seguido, morre a possibilidade de mudança de um sistema cruel. Devemos compreender que quando a juventude negra é assassinada, é exterminada também famílias inteiras, mães, pais e irmãos. Mulheres e homens negros precisam estar presentes, mas não só presentes em nossos gritos de resistência e em nossas memórias, elas e eles devem se mater presentes na sociedade, lutando contra o racismo, contra a falta de educação, contra a falta de moradia digna; essas vozes precisam ecoar por todos os cantos do país dizendo que estão presentes e vivas! Afinal, não há nada mais revolucionário que gente pobre e negra resistindo, sobrevivendo. E é nesses momentos que lembramos que não basta não ser racista, é preciso ser antirracista.

Assim como Conceição Evaristo, poetista negra, já escrevia: “Combinaram de nos matar. Nós combinamos de não morrer”

Queremos a população negra viva, pois Vidas negras importam!

Nathália Dias – mestranda em história pela UFRGS e militante da Resistência Popular Estudantil de Porto Alegre.