Vida, memória e repressão em Morangos Silvestres

Dizem que o tempo cura tudo. E se o tempo for a doença?
(de Asas do desejo, Wim Wenders)

Tive a oportunidade de rever essa maravilha de Ingmar Bergman em uma mostra organizada pela Cinemateca Capitólio, aqui em Porto Alegre. Junto a Morangos Silvestres (1957), O Sétimo Selo (1957) e Gritos e Susurros (1972) completavam o time, todos, de certa maneira, evocando o lado existencialista do diretor. Bergman é muito intenso em criar personagens problemáticas, embates familiares, tensão com a fé, situação da memória.

Em Morangos Silvestres, acompanhamos Isak Borg, médico aposentado, em quase um filme de estrada (literalmente, pois ele viaja de fato; metaforicamente, pois ele acaba viajando dentro de si mesmo, dentro de suas memórias), indo buscar um prêmio em uma Universidade.

O que desencadeia o enredo, para além da premiação, é um sonho que Isak tem na véspera. A atmosfera onírica é criada com maestria pelo diretor. Ali, o protagonista se vê sozinho em uma cidade antiga. De repente, vê um homem de feições grotescas e em seguida avista uma carruagem andando sozinha¹, que dá a Isak uma noção de percurso (que ele trilhará depois). Então, se depara com um relógio sem ponteiros, que parece indicar o fim da vida, o fim do tempo histórico para ele, o que é completado depois pela visão de um morto no caixão, que na verdade é ele próprio.

Esse passeio pelo inconsciente parece dar um choque de realidade no protagonista. Percebe sua condição de velho ranzinza e solitário e decide “animar-se”, injetar ânimo em seu corpo: não mais viajará de avião até a premiação, mas sim de carro.

Sua nora, que está brigada com seu filho, decide ir junto. No carro, diálogos primorosos acerca da relação dos dois e da família acontecem. Param. Isak quer mostrar a ela a casa onde passou sua infância e juventude. Aqui a maestria do diretor volta a nos tocar. A transição entre memória e realidade se dá de uma maneira tão natural que se não prestamos atenção perdemos o fio da meada. Isak volta anos no tempo e se vê confrontado pela paixão mal resolvida por sua prima (Bibi Anderson).

Passado o devaneio, encontram três jovens, dois homens e uma mulher, interpretada novamente e não por acaso por Bibi Anderson, sempre maravilhosa em cena, assim como Victor Sjöström (Isak). A nova relação que vai se estabelecer entre os cinco, principalmente de Isak com os mais novos conhecidos também afetará o interior do protagonista. É nova injeção de ânimo para ele, que volta a se ver jovem. Eles dão a ele vontade de viver.

Bergman retoma a narrativa em outra parada do grupo com mais um sonho. Dessa vez, de novo magistral, percebemos que o aposentado professor luta contra uma repressão de seu inconsciente por estar agindo como “jovem”. Vemos sua angústia através de uma espécie de júri que seus novos amigos formam em seu sonho. Para além disso, em uma ambientação toda sombria (grande mérito para o diretor de fotografia Gunnar Fischer) Isak relembre (ou cria na sua cabeça) a traição de sua mulher. Essa última cena é encenada em um tom teatral/simbólico, o que diz bastante sobre o diretor, que trabalhou com teatro antes do cinema.²

Pontos altos de seus filmes são as personagens femininas. Seu ápice é certamente em Persona (1966), um embate psicológico maravilhoso com atuações brilhantes de Bibi Anderson e Liv Ullmann. Aqui, Ingrid Thulin (Marianne Borg, nora de Isak) interpreta uma mulher de fibra que não pensou duas vezes em largar o marido quando estavam infelizes (tudo bem, o final parece meio água com açúcar, mesmo que não saibamos o que acontece com eles, ao que parece se entendem). Em suas conversas com Isak sempre se coloca de maneira firme e às vezes irônica frente ao machismo estrutural. É figura importante no filme porque acompanha o desenvolvimento e as mudanças do sogro.

Aliás, esse mudança, esse arco dramático, parece, no fundo, otimista. Depois de uma longa viagem, da premiação e da aceitação da vida, Isak deita feliz e abraça Marianne. Bergman segue falando de morte, mas sem certo pessimismo que permeia boa parte da obra do diretor.

Rodrigo Mendes

 

1- Além de simbólica, como vimos acima, a carruagem é também uma homenagem a Victor Sjöström, aqui seu ator protagonista, mas que no passado dirigiu um filme chamado A Carruagem Fantasma (1921).

2- O Sétimo Selo, grande filme de Ingmar Bergman era, na verdade, uma peça de teatro. O filme foi gravado sem roteiro, tendo somente os escritos para o teatro como referência. Ao longo de sua filmografia, são vários os personagens do mundo das artes e do teatro, além de cenas gravadas de maneira teatral.