Vai ter golpe? Análise de teor especulativo em cima do tabuleiro que pode se avizinhar no Brasil

Por Bruno Lima Rocha – 21 de junho de 2020 – charge de Rafael Costa

Divido esse artigo em três partes para um debate urgente, que deixou de estar no universo da imaginação para entrar na conjectura especulativa.  Nas últimas semanas a pergunta “vai ter golpe?” tornou-se recorrente em diversos debates. E reconhecemos que existe algo de muito podre na República do Bananistão. O texto que segue se dedica a especular sobre possíveis manobras da extrema-direita no país. Não me dedico a tentar “dar linha” pela internet, considero essa posição pretensiosa e desnecessária, já que tomo como únicas linhas possíveis as tomadas em decisões coletivas dentro de partidos, coletivos, movimentos e demais agrupações mais à esquerda. Como disse o mestre Lupicínio Rodrigues, aos quem têm “nervos de aço”, vamos ao debate.

Primeiro debate – Vai ter golpe? 

Quero arriscar a projeção de alguns cenários. Reconheço o risco político de golpe e afirmo, com certo nível de especulação, que não passa de 20%, mas que pode entrar em espiral de incertezas, diante daquilo que não é mais possível de ser planejado. Creio que a única forma de haver um golpe de Estado no Brasil atual seria uma espécie de autogolpe tutelado com o clã  Bolsonaro à frente e com apoio direto das Forças Armadas, intermediadas pelo quase 3.000 militares que ocupam cargos na administração federal do atual desgoverno. A fórmula do autogolpe não é uma novidade na América Latina (Bordaberry no Uruguai, em 1973, Fujimori no Peru, em 1992) e tampouco no Brasil, com a implantação do Estado Novo, em 1937. Nas três ocasiões, o líder golpista civil, incluindo Vargas, contou com apoio incondicional do alto comando das forças armadas, sendo que já vinham se preparando para a tomada parcial ou total do poder de Estado. Logo, ao estabelecer tamanho contingente na gestão direta da União, militares de carreira podem pensar que se sentem preparados para assumir um governo, mas jamais para novamente tomar conta do Estado, como fizeram em 1964.

Que tipo de motivação pode haver para um autogolpe resultando num golpe de Estado, com Bolsonaro à frente, mas diante de pressão e tutela dos generais de seu governo? Vejo como única possibilidade a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Não vislumbro, caso essa decisão seja tomada na mais alta corte eleitoral do país, possibilidades de que o núcleo mais duro do bolsonarismo aceite a resolução. Logo, de imediato, seria necessária a quebra evidente da disciplina militar, seja por parte do Exército Brasileiro ou mesmo de setores inteiros de Polícias Militares nos estados, talvez em estados-chave (como Rio, São Paulo ou Minas Gerais), quiçá no Distrito Federal (unidade da federação que não considero defensável, caso o governo distrital se mantenha legalista) ou, numa jogada de mestre, sublevar algum governo estadual comandado  pela centro-esquerda (como Bahia, Maranhão e Ceará).

Entre uma decisão do TSE e algum recurso impetrado no STF estaríamos diante de uma escalada de mobilização de forças políticas, sociais, econômicas (sim, porque parte do empresariado que apoiou Bolsonaro em 2018 recuaria), com ênfase dentro dos estamentos que comandam os aparelhos Judiciário (incluindo os MPs), Policial (militarizado ou civil) e militar. Existe alguma ala legalista acima de tudo? Existem generais, almirantes e brigadeiros dispostos a ir às ultimas consequências para assegurar o arremedo de ordem constitucional que sobrevivera ao golpe com apelido de impeachment de 2016? Sinceramente não sei e desconfio que inexista. Ao mesmo tempo, reconheço que ao que se anuncia nos grandes portais que ainda se reivindicam como jornalísticos, tais pontes e relações de segurança estariam sendo construídas em todo momento.

Segundo debate: primeiro bloco de angústias

A baderna militar pode anteceder a tomada do poder pelos generais de Bolsonaro? Tal tomada de poder pode constituir uma ordem política nova, de tipo semi-parlamentarista, algo fundamental para garantir tanto a estabilidade da república como também a imutabilidade das relações de privilégio e acumulação de riquezas e recursos de poder? Seria possível forjar uma saída tão rápida em pouco tempo?  Se esse suposto semi-parlamentarismo for implantado, o modelo é transferível ao menos para os governos estaduais? Quais dos poderes fáticos da república e dos blocos de poder e interesses identificados e com envergadura nacional estariam se antecipando? Por exemplo: no pré-1964, o plano de contingência seria um governo rebelde à direita com Magalhães Pinto em Minas Gerais, co-governo da UDN com a milicada fascistóide. Por isso que o general integralista Olympio Mourão Filho arrancou pela Rio-Bahia para tomar a Guanabara. Paratal, Magalhães, Lacerda e o impagável Adhemar de Barros fizeram viagens à Washington, tomaram a bênção do futuro finado John F. Kennedy e receberam garantias da embaixada do Império que receberiam reforço militar. Não foi necessário à época. Já agora não tem nada disso. Será que o viralatismo fardado se arrisca a tal ponto sem a garantia de apoio explícito dos gringos? É de se duvidar, mas operações paralelas sempre se desenvolvem nos Estados Unidos.

Dúvidas cruéis e de tirar o sono – segundo bloco de angústias

Realmente admito e entendo que estamos por diante de uma escalada do risco político. Quando Romero Jucá proclamou o arranjo de quase todos para safar da Lava Jato, trouxe a ideia de que seria “com o Supremo, com tudo”. Enquanto isso, nos quarteis, a milicada disse que não iria interferir. Por que não interferir? Aponto quatro possíveis razões: uma é a cruzada moralista do tipo “revolução colorida”, em que o vento a favor jogava o poder político no colo do Nosferatu Adhemarista, que traria um protagonismo de generais muito ressabiados com a Comissão da Verdade (tímida, incompleta e que não resultou em justiça de transição). A segunda é a aparência de legalidade, com os Lavajeteiros Made in U$A deitando e rolando nos terninhos, nas caras e bocas, com seu linguajar punitivista e o aval dos gringos. Uma terceira, porque houve a aparência de legalidade o tempo todo, mesmo quando o Marreco da Republiqueta de Curitiba assumia todos os riscos de fraude processual, com o famoso “não temos provas, mas temos convicções!”, dito pelo Danoninho em rede nacional. A quarta e última é o fator inequívoco que, com transmissões ao vivo e a cores, a Globo e outras emissoras transmitiam as versões contemporâneas dos fariseus, entreguistas, vigaristas de todos os tamanhos, enquanto os “meninos do Brazil”, do MBL e outras excrescências, clamavam por mais “Marchas com ‘deus’ pela democracia de mercado e o fim dos direitos sociais!”. Nada disso acontece agora, muito pelo contrário, e essa ausência não deixa de ser um alento.

O viralatismo fardado está presente – terceiro bloco de angústias

Por outro lado, o fator militar não estava presente e menos ainda se tinha a legitimação de 57 milhões de votos para um mentecapto que não sabe o que é governar. No balanço de contas, mesmo que eleito, Bolsonaro ganha o campeonato de crimes de responsabilidade, comanda um ministério de alucinados e se recusa a governar durante a pandemia. Talvez ele nunca baixe de 25% e jamais ultrapasse novamente os 30% de apoio. Vejam bem, estou falando de chance de autogolpe com virada de mesa e regime de força com a cassação da chapa pelo TSE.  Esse não é caso de impeachment com Mourão assumindo numa gambiarra de tipo semi-parlamentarista e com algum cardeal da política, como Rodrigo Mais (DEM-RJ), dando as cartas e servindo de fiador com os grupos de  mídia, o baronato financeiro, os grandes capitais ainda operando no Brasil e o cada vez mais delicado equilíbrio entre os estamentos à frente dos aparelhos de Estado, com carreiras perenes.

Será que os generais, brigadeiros e almirantes arriscariam tomar o poder estando à frente do Poder Executivo, subordinando os demais poderes oficiais e fáticos do país? Será que a ditadura de 1964 consolidaria um regime com regras autoritárias, se não fosse a azeitada máquina do SNI e depois da Guerra Interna? Evidente que não. E como agora não tem nada disso, existe sim um risco real de associação ao bolsonarismo, por cumplicidade de nada haver feito durante a pandemia.

Terceira parte – o que implicaria uma tomada de poder pela força de um autogolpe

Conjecturas de horror. Quando da decisão pelo TSE, se houvesse uma manobra de tipo autogolpe, o Distrito Federal, mais especificamente, o Plano Piloto, teria de estar sob Estado de Sítio, com toque de recolher e dispositivo de tropas federais, subordinadas ao Comando Militar do Planalto. Uma imagem semelhante ao ocorrido quando da votação das Diretas Já, em 25 de abril de 1984. Mas, naquele momento, já havia no país aquilo que os clássicos da transição política chamariam de Diarquia, com os governos estaduais sob comando da oposição, sendo que, na época, o aparelho destes poderes sub-nacionais ainda estava intacto (contando, inclusive, com bancos e instrumentos de política econômica para emitir títulos e créditos).

Se hoje o país é mais centralizado na União, na década de ’80 já não era tanto, ainda estando sob o comando dos palácios de governadores uma coleção de instituições importantes. Restam no âmbito estadual os aparelhos Judiciários e Correcionais, incluindo nestes últimos as polícias civis e os departamentos de sistema prisional. Imaginando a crise das crises, parto da premissa que a extrema-direita só arriscaria um golpe se tivesse uma certeza da cadeia de lealdades das PMs, cujos coronéis se subordinariam aos comandos golpistas e prenderiam os governadores estaduais. Os poderes seriam cercados como no golpe de Yeltsin contra o parlamento russo, em janeiro de 1994. Tanques e tropas de combate cercariam os palácios dos poderes federais e estaduais, incluindo os Tribunais de Justiça dos estados. Ao mesmo tempo, não daria conta comunicar aos seguidores da extrema direita apenas através das redes sociais.

No campo da comunicação social, não basta tuitar desesperadamente. Necessariamente precisariam tomar os estúdios da Globo e afiliadas, ao menos das maiores, incluindo as instalações da emissora líder no Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Simultaneamente, seria necessário uma aliança com conglomerados midiáticos à disposição, como um pool de redes de fariseus e daqueles que “topam tudo por dinheiro”. Imediatamente, algum sentido de ordem deveria ser imposto, silenciando as oposições institucionais e reprimindo com vontade os focos de resistência popular. Quase sempre isso não dá certo se não tiver um apoio da população disposta a se mobilizar pelos golpistas. Jango tinha mais de 70% de apoio em todas as classes, mas a direita golpista era barulhenta e contava com todo o vento a favor nas frações organizadas das classes dominantes. O risco de “quebra da hierarquia militar”, com a sindicalização de soldados, cabos, sargentos e suboficiais motivou a adesão de comandos de tropas ao putsch de 1º de abril de 1964. Agora seria tudo ao contrário.

Entendo que o período imediatamente posterior a essa aventura tresloucada dos galinhas verdes, pintinhos amarelos, fascistoides de pijama e outras aberrações seria de muita repressão, mas também  abundando o caos e o desgoverno. Se a baderna militar começar, o seu final é o imponderável absoluto, mas, necessariamente, passam pelo controle sobre os governos estaduais, o poder judiciário nos estados e o mesmo em nível federal. Também implica em subalternizar as polícias judiciárias, a saber, as Polícias Civis estaduais e a toda poderosa Polícia Federal.

Seria possível centralizar os poderes da república em torno do Poder Executivo federal e, ao mesmo tempo, subalternizar os governos subnacionais de estados e capitais ao menos? Possivelmente não, mas isso não significa que seja absolutamente inviável e, menos ainda, que os decrépitos herdeiros de Sylvio Frotta, João Paulo Burnier e Carlos Penna Botto não tentem e quiçá, desgraçadamente, venham a ser temporariamente bem sucedidos.

Alguma conclusão

Não sei se um movimento como esse pode ser bem sucedido nas manobras táticas, nem qual seria o objetivo estratégico tipo “segurança nacional e desenvolvimento”, nas versões mais ponderadas de Golbery do Couto e Silva, ou do suposto “potenciômetro” de Carlos de Meira Mattos. A soma caricata e ridícula de extrema direita com entreguismo, o protofascismo com mentalidade “marielita miamera”, e “Zeus, Patrão e Familícia”, com as festas de arromba do chuveiro dourado, não traz meta alguma de longo prazo, a não ser o desmonte das capacidades e recursos de nosso país.

Como disse o finado ditador Ernesto Geisel, “golpe é coisa muito séria”. Golpe teve em 1945, 1954, tentativa em 1955, 1957, 1959, vitória dos golpistas com a emenda parlamentarista em 1961, golpe de tomada do poder em 1964, golpe dentro do golpe em 1967 – com a Constituição autoritária e a posse de um marechal sucedendo a outro – e depois outro golpe dentro do golpe, em 13 de dezembro de 1968, com o AI-5. Mas, tomada do poder do Estado, pelo menos até onde sei, se deu no 1º de abril de 1964, um mês depois quando foi estabelecido o SNI como cabeça de um Sistema de vigilância. Aí havia um controle de acesso aos postos dentro do aparelho de Estado, ou seja, a tomada de controle e censura por dentro do Estado, uma sanfona que poderia esticar ou apertar.

Por mais que haja controle ou alguma verticalidade dentro da caserna com roupas civis ocupando milhares de postos no desgoverno Bolsonaro, a situação está muito, mas muito distante do tipo de conspiração que a literatura da ciência política e da história recente exaustivamente nos demonstra. Só não vejo como um gesto responsável ignorar completamente as bravatas e não supor – por algum mecanismo de negação – que uma parcela dessas falas não tenha alguma capacidade de serem materializadas. E mais: se as falas ameaçadoras são de autoridades constituídas, a ideia “fantasiosa” se esgota e acaba como uma projeção de possibilidades, com baixa proporção de ser realizada.

Por fim, peço, sugiro e suplico para que todas e todos que militem mais à esquerda tomem esse texto como uma projeção de um futuro possível, e que se organizem a partir daquilo que já está constituído. Temos um tecido social profundo e cada vez mais auto organizado, que jamais permitirá que o regime seja fechado para privilégios da extrema direita e uma escalada ainda mais repressiva. Sem bravatas e com os dois pés no chão: os povos dos Brasis conseguirão resistir a esse intento – caso ocorra – e avançarão nos direitos sociais, coletivos, individuais, difusos e de avançada, no rumo de uma democracia participativa, plena de direitos e com justiça social e reparadora.

 

Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em economia política, doutor em ciência política e professor universitário nos cursos de Relações Internacionais, Jornalismo e Direito. Editor dos canais do “Estratégia & Análise, a análise política para a esquerda mais à esquerda”.

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