Uma história do Brasil em Vazante (2017)

O cinema no Brasil passa por uma crise sem precedentes. O presidente Jair Bolsonaro tem como política de governo o desmonte de todas as áreas que tocam de alguma forma a cultura brasileira, e com o cinema não é diferente. Bolsonaro certa vez disse que extinguiria a Ancine (Agência Nacional do Cinema) se ele não pudesse “filtrar” os conteúdos, na prática ele queria uma censura prévia aos longas que sairiam nas salas de cinema. (A título de curiosidade, a instauração da censura prévia no regime militar de 1964 fez aniversário semana passada: no dia 14 de maio de 1970, há 50 anos, a censura prévia era aprovada na Câmara Federal, nos lembra Ricardo Chaves no “Almanaque gaúcho” do jornal Zero Hora, obrigando artistas a se submeterem a um escrutínio ridículo, autoritário e conservador por parte dos agentes da ditadura militar.) Vemos que o Brasil avança, mas não avança no tempo. Os entraves políticos para investimento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) já barram 2 bilhões de reais – política esta que vem desde o ano de 2018, cuja presidência era ocupada por Michel Temer. Junto a esse cenário, as salas de cinema no Brasil correm sérios riscos de fechar as portas. O Brasil já é um dos países com menor porcentagem de habitantes para salas de cinema da América Latina segundo matéria do portal Nexo, o que tende a piorar com a crise do novo coronavírus.

Esses fundos de investimento à sétima arte no Brasil já geraram muitas pérolas cinematográficas, a despeito de a área da cultura sempre lutar contra a corrente, sendo parte da sociedade historicamente relegada à precarização. Destaco aqui Vazante, filme feito com o apoio da Ancine e do FSA, dirigido por Daniela Thomas em 2017. O filme está disponível na plataforma de streaming do Telecine, tipo a Netflix deles, mas somente com filmes – com um olhar rápido, parece um acervo bem melhor do que o da Netflix, o shopping do “cinema”. Vazante é um filme preto e branco que se passa em Vazante, cidade de Minas Gerais, em 1821, um ano antes da Independência. É o único filme brasileiro que conheço que tematiza a escravização de negros africanos na época em que vigorou o regime escravista (que compreende quase 4 séculos formais, e segue até hoje em dia com escravização informal) e em estética realista.

Acompanhamos a relação entre casa-grande e senzala e sua enorme violência a partir de sutilezas, não-ditos, enquadramentos. O filme é silencioso e não mostra nenhuma violência física explícita, mas transmite o horror da escravização e sua lógica que segue arraigada na sociedade brasileira atual, criando um racismo sanguinário que hoje faz parte da estrutura social do Brasil. Desde o apresamento e condução de negros para serem escravizados até o estupro recorrente de uma escravizada – que aparenta já ter uns seis filhos bastardos –, a rotina da fazenda de Antonio, um português, é um retrato cruel e realista de uma parte da história brasileira, aquela da escravização rural, que explorou física e sexualmente milhares de negros e negras vindos de várias partes da África. (Há estudos que apontam que aproximadamente 5 milhões de africanos foram escravizados em território hoje brasileiro).

Aspecto que chama atenção são as várias línguas presentes no longa: português, português do Brasil, banto (generalizando aqui, sem apontar para prováveis diferenças nos idiomas falados) e outra língua africana. Carlos Alberto Faraco, linguista brasileiro, muito à luz do filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin, diz que a só é possível entender a variação lingüística a partir da variação social, e que toda diferença linguística deriva de uma diferença – leia-se desigualdade – social. Quando enunciamos, quando verbalizamos algo (em uma língua específica), estamos trazendo junto com isso toda a história da língua e, por conseguinte, da sociedade na qual ela se consolidou e das relações que travou com outras línguas. Por exemplo, um filme sobre indígenas falado somente em português diz linguística e historicamente sobre o genocídio dos índios e de suas línguas e cultura. Assim, quando se justapõe línguas como o português de Portugal, o brasileiro e outras duas línguas africanas, o filme se coloca também como um testemunho linguístico da barbárie perpetrada por portugueses e depois de brasileiros, em um processo de colonização que começa com Portugal no centro, Brasil como colônia e diversos países da África como locais para compra e/ou apresamento de futuros escravizados. O não entendimento do grupo africano que chega à fazenda e não fala banto comenta sobre algo micro, da relação humana mesmo no contexto de escravização, quando não se entende a língua de deve-se adequar-se àquele modos operandi horrendo, mas também fala do todo, da relação histórica e violenta que relacionou essas línguas.

Cenas de grande impacto, como o negro comendo areia na chuva, a escrava indo ser estuprada pelo patrão sem que ele a chama (ele não precisa verbalizar sua ordem, basta que fique visível a ela), um casamento incestuoso e no limite, pedófilo, a condução dos escravizados à fazenda, e a derradeira cena, completamente disfórica, estranha e violenta, fazem de Vazante uma grande obra, representativa de uma etapa histórica que às vezes parece que não deixamos para trás.

Rodrigo Mendes