Por um ex-funcionário de call center em Campina Grande (PB)
A escala 6×1 já deveria ter acabado há muito tempo: não há justificativa plausível principalmente quando falamos de empresas de grande porte – e de porte gigante, se é que essa denominação existe. É até possível entender pequenos e médios empresários(as) que estão preocupados(as) com a questão, já que o faturamento é pouco e não se compara ao que o “véi da Havan” recebe. Por outro lado, essas pessoas têm que entender que se o faturamento é pouco é por culpa da própria estrutura capitalista em que vivemos e não da carga horária dos trabalhadores(as). É preciso também que todas as pessoas de camadas populares da sociedade brasileira compreendam a circunstância que estamos lidando: condições de vida e de trabalho da nossa época.
Vejam bem, sobre isso, um breve relato meu pode servir de exemplo. Passei quase 4 anos trabalhando numa empresa de telemarketing que presta serviço para o Banco InterNexional (nome fictício). Passei por diferentes setores: atendimento SAC (serviço de atendimento ao cliente), conta digital, cartão, contestação, marketplace e VIP (atendimento para pessoas com investimentos acima de, no mínimo, R$ 50.000,00 e com cartão Platinum, Black, etc). Uma das coisas importantes a serem relatadas aqui é que quanto estive no atendimento ao cliente – setor responsável por “informações gerais” e por abrir protocolos de reclamação – simplesmente pessoas ligavam para o banco para realizar reclamação e eu, como atendente, fazia o registro. Detalhe: sim, “apenas” o registro. E por que apenas? Pelos regulamentos que regem os bancos, a reclamação deve ser não apenas registrada, mas protocolada, tendo prazo de até 5 dias úteis para retorno do banco sobre o problema. Isso “simplesmente não existia” no banco InterNexional. Isso me incomodava.
Falei com meu supervisor da época e ele afirmou ter entrado em contato com funcionários do banco que lhe orientaram – mande o atendente fazer o que tem no sistema e pronto, só registrar. E eu questionei – mas e o problema do cliente não será resolvido? O supervisor disse – e o que podemos fazer? O banco mandou, a gente cumpre. Evidentemente eu tive que lidar com isso durante meses. Mas fazia questão de não mentir para os(as) clientes que faziam reclamação. Quando perguntavam sobre o retorno, eu não conseguia enrolar e dizia – olha, eu faço apenas o registro mas esse protocolo não tem prazo de retorno. Por isso recebia avaliação ruim dos(as) clientes e, vez em quando, a supervisão me chamava a atenção, inclusive com ameaças de me aplicar medida disciplinar (famosa advertência).
Essa era apenas uma parte dessa rotina na escala 6×1. Além disso existiram casos semelhantes e outros diferentes com os diversos trabalhadores(as) deste call center, coisas como clientes xingando ao se incomodar com o nosso sotaque nordestino, humilhações de clientes que tinham certo poder aquisitivo, atendentes mulheres que eram ofendidas por serem mulheres e julgadas incapazes de resolver problemas, etc.
É importante dizer que a escala 6×1 no telemarketing acontece assim: são 6 dias de trabalho e um de folga; algumas empresas concedem a folga em um dia do fim de semana, mas outras não, oferecem a folga no meio da semana, em um dia como segunda ou terça feira. A CLT afirma que o dia de folga preferencialmente deve ser em um domingo, mas com a reforma trabalhista do governo de Michel Temer, passou a ser permitida a folga no domingo a cada dois meses, ou seja, as empresas puderam dar ainda mais folga em dia de semana, praticamente inútil para quem planeja lazer, encontro com família ou amigos, etc.
Além disso, o horário de trabalho geralmente é 6 horas e 20 minutos por dia, com duas pausas de 10 minutos e uma de 20 minutos. Agora vejam que contradição: as normas regulamentadoras sobre ergonomia e outras indicações médicas sugerem que a cada uma hora sentado e de frente para o computador, a pessoa descanse pelo menos 10 minutos. COMO FAZER ISSO COM APENAS 3 PAUSAS?Não é possível.
Aí vem outra coisa: muitas vezes fui perseguido por colocar a chamada “pausa particular”, que serve para questões particulares, como o nome já diz – inclusive para ir ao banheiro, mas não apenas, pode ser para tomar remédio, beber água, já que o atendimento ao cliente num call center é feito com a utilização recorrente da voz, para fumar no caso de pessoas viciadas em cigarro, etc. Em dado momento a perseguição estava tão grande na empresa que trabalhei que fomos proibidos(as) de colocar pausa particular. Eu continuei a colocar, pois era um direito. Num dia um supervisor me questionou – para que essa pausa e para onde você vai? Eu não aguentei e, quase que desesperado, respondi em voz alta, dando para todas as pessoas ao redor ouvirem – Agora toda vez que eu for no banheiro fazer minhas necessidades eu tenho que passar pelo constrangimento de lhe pedir permissão e avisar que estou indo urinar ou defecar? Nunca mais fui perseguido por ir ao banheiro.
Fora isso, tive que me ausentar de diversas ocasiões, encontros, rotinas pessoais devido ao trabalho na escala 6×1: perdi reuniões de família, viagens, encontro com amigos(as), festa de natal e ano novo, aniversário de pessoas queridas, momentos de lazer, tempo de sono e descanso, atrasei meu curso em cerca de 2 a 3 anos e quase fui jubilado da universidade, oportunidades de estudar e fazer prova de concurso público, etc.
Para completar (e sabe bem quem viveu e vive essa escala), já era ruim antes da reforma trabalhista… depois dela tudo piorou: trabalhar no feriado não garantia mais folga. Você trabalha no feriado e “ganha” ou acumula as horas de um dia de trabalho no seu “banco de horas”. E quem disse que essas grandes empresas pagam sua hora extra ou lhe dão outro dia de folga assim, conforme a lei exige – mesmo essa lei reformada que só favorece os grandes e mega empresários? Pois é, não é o que acontece. Quando conseguimos ter folga tem que ser no dia que a empresa quer, não você. É simples assim.
Após os 6 dias trabalhados, no seu único dia de folga você tem que escolher: fazer tudo que lhe dá prazer ou satisfação de forma mal feita, precária… ou apenas dormir para no outro dia voltar para a mesma rotina. Não estão erradas as pessoas que dizem: escala 6×1 é análoga à escravidão. Sim, é, sim! Inclusive isso tem respaldo na historiografia: é sabido que pessoas escravizadas trabalhavam 6 dias e no dia de folga eram obrigadas a participar de missas e “descansar” (descansavam através de serviços “mais leves”). Hoje não podemos dizer que somos escravos(as) porque não somos politicamente propriedade de ninguém. Mas somos escravos modernos(as) sim porque, mesmo que política e culturalmente sejamos “livres”, economicamente somos escravizados(as) pelo tempo: somos obrigados(as) a vender nossa força de trabalho e tempo de serviço, é a nossa mercadoria que trocamos pelas míseras moedas que vão nos servir apenas para pagar as dívidas do aluguel ou financiamento da casa, da feira, das contas de energia, água e internet, e, se sobrar, comprar algum lanche ou nos entupir de bebida alcoólica para esquecermos a condição de escassez e desencanto em que vivemos.
Eu poderia falar ainda mais coisas, mas infelizmente não temos espaço aqui e nem tempo. Só resta o seguinte a dizer: eu sei que minha experiência é mais ou menos igual a da maioria da população brasileira. Vivemos condenados(as) num sistema criado e mantido pelas classes dominantes e isso simplesmente não pode e nem deve continuar. A gente não pode se acostumar com tamanha exploração, injustiça e desrespeito com a nossa humanidade e dignidade. Somos nós, trabalhadores e trabalhadoras, que produzimos tudo, que fazemos tudo acontecer e existir. Sem nós, não existe nada. Sem as classes dominantes tudo permanece. Portanto, só temos um caminho a seguir: tomar consciência de quem somos na realidade social, organizar a nossa revolta, entender nossos interesses comuns enquanto classe trabalhadora e povo oprimido e lutar coletivamente por melhorias que devem acontecer agora!