Tensões de classe em O som ao redor (2012)

As contradições sociais estão presentes na formação da sociedade brasileira. No século 19, por exemplo, ideias liberais e escravidão conviviam abertamente; no século 20, a rápida modernização da jovem metrópole de São Paulo tensionava com o abandono do campo como o mundo antigo[1]. O som ao redor, grande filme de um novo cinema brasileiro, evoca parte dessas contradições formativas do Brasil ao passo que ilustra as fraturas sociais causadas por um desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo.

O filme trabalha com uma camada superficial em que as classes médias de Recife são as protagonistas, mas sua narrativa deixa furos propositais em que emergem a luta de classes sempre tensa e assimétrica. Já na primeira cena acompanhamos crianças brincando em uma quadra de um condomínio de classe média enquanto as empregadas domésticas as cuidam.

A estrutura narrativa é organizada em três partes, nas quais chama atenção a repetição da palavra ‘guarda(s)’[2]. Não entrarei nesse debate, buscando interpretações. Apenas aponto para uma possível ironia, aqui também, da palavra, já que nos faz lembrar de segurança, o que é ofertado pelo grupo de seguranças que chegam ao bairro, já de caso pensado.

O enredo começa com uma família de classe média confortável, cuja personagem Bia é a mais aprofundada. Com problemas para dormir (principalmente com o cachorro do vizinho) além da frustração sexual com o marido, busca refúgio na maconha e na música. Já sinalizo o quão boa é a atuação de Maeve Jinkings, que incorpora uma dona de casa cansada com os míseros afazeres.[3] Depois dela, começamos a ter noção do poder patriarcal de Seu Francisco e sua família, dono de mais da metade da rua onde mora, além de um engenho em uma cidade rural.

De maneira geral, o filme consegue transmitir como a elite enxerga as relações sociais e de poder na sociedade. Kleber Mendonça Filho também nos mostra, pela câmera, corroborando o que está explícito no roteiro. É possível citar, para exemplificar, as cenas em que João, neto de Francisco, fala com a empregada de seu apartamento. “Tá velha nada”, é o que responde a ela quando esta fala em aposentadoria. João, com pensamento de proprietário – e a empregada é uma extensão de sua posse – a enxerga como mercadoria, e sendo assim, com um tempo de validade que ainda não esgotou: ele ainda pode explorá-la mais um pouco. Aliás, o pensamento senhorial de João não se restringe à empregada, mas avança para seu curto relacionamento com Sofia. Esta, depois de um tempo, o larga de mão, e o pensamento de João é que eles são diferentes, de histórias e vidas diferentes. É claro. E possivelmente ela o largou por não compactuar com o papel que ele exerce na sociedade: patrão, herdeiro, burguês.[4]

É interessante notar os desníveis e a volatilidade das classes sociais no filme – sempre a elite, que é para onde o diretor olhou para organizar a narrativa. A começar por seu Francisco, que de longe é o mais poderoso da rua, mas já está em condição decadente. Ele tem um engenho, e um engenho por si só já é algo arcaico; além disso, ele mesmo diz que já não manda tudo aquilo na rua e que muitas coisas já foram vendidas. Outro exemplo é uma mulher e filha que visitam um apartamento (que também pertence à família de Francisco): elas não têm mais carro (já tiveram dois), mas ainda sim tem dinheiro suficiente para buscar um apartamento de classe média alta. Nessa mesma cena, e descendo um pouco mais: o condomínio vizinho é mais pobre, mas ainda sim o menino que entra em casa, depois de a bola ter caído para o outro lado, tem empregada. Pelo jeito de cada uma dessas pessoas em cena, percebe-se uma vontade de se colocar em posição superior, em um encadeamento de relações hierárquicas que compõe e ilustram bem a sociedade brasileira.

O deboche às classes dominantes é visível ao longo da narrativa. João compara seu trabalho em um bar noturno enquanto esteve por sete anos na Alemanha com o filho de sua empregada, que começou a trabalhar em um supermercado à noite. Coloca lado a lado, em uma cena muito bem pensada, uma televisão mostrando uma cena de jantar e a família de Bia jantando, dando uma ideia de que a classe média apenas se movimenta representando papéis, simulando uma vida feliz encobrindo não só seus problemas como a tensão de classe evidente o longo do filme, tensão essa que é a responsável pela ambientação inquieta de toda narrativa.[5]

Mas o deboche chega ao ápice em uma cena que merece ser comentada à parte: a maravilhosa cena da reunião de condomínio. Eis que as e os moradores do prédio em que João mora discutem se devem ou não demitir seu Agenor, porteiro noturno do prédio, por justa causa. Há um vídeo, patético, gravado pelo filho de um morador (perfeitamente caracterizado sem barba, cabelo curto e camisa social) que mostra seu Agenor dormindo em serviço. Isso serve de ponto de partida para uma discussão inacreditável de tão real em que os de cima decidirão pelos de baixo. Saem dali argumentos como: “ele é pago pra dormir”, “tá fazendo corpo mole”, “não é cansaço”, “não é caridade”. Claro, não me esqueceria da reclamação da mulher que diz que sua Veja está chegando fora do plástico. Talvez a mais emblemática cena do filme, evoca o descaso e alienação da elite para com os trabalhadores desfavorecidos. É inaceitável que um grupo de pessoas altamente confortáveis economicamente se achem no direito de discutir qualquer coisa que seja em relação ao trabalhador explorado. Eles falam isso porque naturalmente nunca foram guardas noturnos.[6] Importante frisar também que mesmo quem se coloca contra a ação, como é o caso de João, pouco se importa de verdade com a resolução que será tomada. Ele abandona a reunião, causando certa revolta em outros moradores, para encontrar Sofia, a quem agradece por tê-lo salvado da reunião.

O filme, a todo instante, tensiona uma memória mal resolvida com o presente irregular. E talvez o maior exemplo disso seja o próprio resquício de escravidão cravado no seio da família de seu Francisco. Como disse há pouco, a própria ideia de engenho sugere isso, e me parece que encontra seu par no sonho da filha de Bia, outra grande cena, em que homens negros invadem sua casa à noite, onde colocados no hall, o quadro remete à senzala. Essa cena também nos faz lembrar das sempre presentes tensões de classe que permeiam o filme inteiro. E aliás, o grande banho de sangue na cachoeira é prova viva dessa violência ainda não cicatrizada.[7]

No entanto, me parece que o filme termina com uma “vitória”. Isto vem através de Irandhir Santos (um dos melhores atores disparados do atual momento cinematográfico do país) que encara o papel de Clodoaldo, aparente segurança, mas que arquiteta um plano de vingança para seu Francisco. Irandhir consegue transmitir uma tensão aterradora: seu rosto se contorce levemente, mas com uma intensidade incrível; em cenas no elevador, é possível ver seu peito ofegante. Quando Dinho, o neto playboy-babaca de Francisco, vem com toda sua arrogância de proprietário humilhar os seguranças, Clodoaldo se segura para não colocar o plano a perder, e a atuação de Irandhir sublinha as tensões fisicamente de maneira espetacular.

Na sequência final, em que seu Francisco é confrontado por Clodoaldo e seu irmão, em uma cena irônica e violenta, a memória mais um vez aflora: ficamos sabendo que o pai deles foi morto em 1981[8] a mando de seu Francisco (e provavelmente o executor foi o capataz morto que dá origem à conversa). Não sabemos o desfecho da cena porque há um corte e acompanhamos a família de Bia estourando rojões. No entanto, parece claro o suficiente a sugestão: o estouro de rojões lembram tiros, fazem um clarão, enfim.

O som ao redor é um grande filme e por isso mesmo não se esgotaria em um ou mais textos. Kleber Mendonça Filho, a meu ver, inaugura um tipo de cinema não muito comum por aqui. Tecnicamente falando: câmera inquieta com bastante zoom, uma captação grande de luz natural, contornando as cores sutilmente na tela; e quanto ao enredo: olhar para a classe média e a partir de lá fazer a crítica, deixando buracos sugestivos na narrativa que parecem estabelecer um reflexo dela própria, que muito bem explorado, fica à margem da sociedade[9]. A captação bem verdadeira da disparidade social brasileira junto a uma forma estética de alto nível fazem de O som ao redor um filme essencial, um filme essencialmente brasileiro.

Rodrigo Mendes

 

* Esse filme foi exibido no 2º Cine Ateneu (https://reporterpopular.com.br/2o-cine-ateneu-volta-com-novos-filmes-e-programacao-estendida/), e o texto foi elaborado a partir do debate após a sessão.

[1] Esses argumentos estão na obra de Roberto Schwarz, especialmente nos textos “A carroça, o bonde e o poeta modernista” in Que horas são? e “As ideias fora do lugar” in Ao vencedor as batatas.

[2] “Cães de guarda”, “Guardas noturnos” e “Guarda costa”.

[3] Há uma cena em que ela, maravilhosa, aumenta o som e se deita. Tenta cantarolar, mas só em pensamento (pois está cansada) – e percebemos isso claramente pelos movimentos mínimos com a boca na tentativa de acompanhar a canção.

[4] Este argumento é da minha companheira Evelin Vigil, a quem agradeço.

[5] O filme é todo tenso, seja pelo altos e baixos de sons ambientes; pela trilha sonora, estranha e colocada em momentos específicos; pelos olhares e inquietações de todos os personagens; pela câmera que não sossega…

[6] Pego emprestado o argumento de Guto Leite em um ensaio chamado “3 apitos: lirismo e violência em Noel Rosa”.

[7] Me refiro não só à violência de classe e do racismo constante, mas também à razão pela qual Clodoaldo e seu irmão vêm a Recife.

[8] O ano é simbólico e pode sugerir um envolvimento com a ditadura militar, que acabaria em 1985.

[9] As classes baixas são excluídas da sociedade, então nada mais natural que o diretor utilize isso na forma do filme, os colando sempre escondidos – vemos alguns trabalhadores sempre atrás de paredes, sugerindo invisibilidade.