Indígenas acusam PRF de promover conflitos na área central do Paraná. Terra Indígena teve 4 presos e um atropelado desde o dia 11 e lideranças suspeitam de armação da própria polícia
O Território Indígena Goj Ki Pyn (Rio das Cobras) é a maior comunidade indígena do Paraná, abrigando em seus 18 mil hectares mais de 800 famílias do povo Kaingang em sua maioria, mas também do povo Guarani-Mbya, divididos entre as 11 comunidades que compõem o que o Estado chama, de forma equivocada, de Reserva Indígena Rio das Cobras.
Reserva… Estamos reservados de que? Da “civilização”? — questionou um kaingang
Parte da Terra Indígena fica na cidade de Nova Laranjeiras e parte em Espigão Alto do Iguaçu, no centro-sul paranaense. O território é reconhecido oficialmente desde a década de 1920, mas até hoje os povos Kaingang e Guarani da região sofrem, não só com o preconceito, mas segundo relatos dos próprios indígenas, também com atropelamentos na rodovia próxima e ameaças constantes por parte da sociedade não indígena.
Ataques ficaram mais graves nos últimos tempos
A seguir, relataremos, de acordo com o que foi observado no território e ouvido por habitantes, como a violência e a discriminação tem sido acentuadas contra esses povos. É importante que não façamos leituras rasas e superficiais sobre o que está acontecendo. O que foi contado para nós é que o preconceito e o ódio anti-indígena não é somente algo do presente, mas sim fatores historicamente rondam essa região. Os kaingangs e guaranis sentem isso vindo de todos os lados, da mídia local, da Polícia Rodoviária Federal e da sociedade de forma geral.
Opinião do Repórter Popular
Para qualquer tipo de solução, é necessária uma dedicação para compreender o contexto de violência, pobreza e fome ao qual esses povos foram submetidos ao longo da história, como resultado do projeto colonial que foi imposto, primeiro pelo Império Português, e depois assumido e reproduzido pelo próprio Estado Brasileiro.
11 de novembro de 2020, quarta-feira. Acidente de trânsito na BR-277, dentro de Rio das Cobras
Após a colisão de um caminhão e uma van, no Km 473 da BR-277, em Nova Laranjeiras, quatro indígenas foram presos, sob acusação de tentativa de saque na carga, algo que os kaingangs e guaranis alegam ter sido obra de uma minoria. Na nota em que acusa os indígenas de pisotearem o corpo do motorista da van, a PRF não explica como o corpo foi parar ao lado do caminhão. Leia a nota aqui.
Falando para a reportagem da RIC (afiliada da Record TV no Paraná), a liderança kaingang Neoli Kafy afirma que o corpo do motorista da van não estava, logo após o acidente, ao lado do caminhão:
Os kaingangs presos pelos agentes foram encaminhados para a Delegacia Civil de Laranjeiras do Sul.
Segundo Neoli, o motorista da van morreu no momento do acidente, tendo o corpo removido para o lado do canteiro pelos próprios agentes policiais, que mudaram a cena do acidente para incriminar a comunidade. “O que nos deixou chateado nesse caso, e muito triste com o que aconteceu, foi que a PRF, que estava lá, que foi os primeiros que chegaram, eles removeram, eles alteraram a cena do acidente, sem a presença da perícia”, acusou.
Neoli defende que o corpo deveria ter sido tratado com respeito, sendo retirado e colocado em uma ambulância, ainda que fosse da concessionária responsável pela estrada. Ele também disse que a concessionária estava lá e não agiu nesse caso.
12 de novembro, quinta-feira, Articulação dos Povos Indígenas do Sul se posiciona
Em resposta, a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpin) se posicionou publicamente por meio de uma nota que você pode ler clicando aqui. A Arpin alerta para o fato de que não é costume que ocorram saques de cargas por indígenas e que essa ação não corresponde à realidade das comunidades indígenas. Além disso, a organização pede para que a sociedade não generalize essa visão a respeito dos povos indígenas.
16 de novembro, segunda-feira, atropelamento de indígena
A comunidade também denuncia a intrusão de viaturas da PRF no interior do Território Indígena, o que, para os moradores, parece uma forma de intimidar e causar medo na comunidade. No dia 16, por volta das 17h, uma viatura da PRF chegou a atropelar um indígena que estava de moto dentro da comunidade.
Relatos de testemunhas dão conta de que não foi prestado socorro. A revolta e a indignação sobre como a polícia trata os povos indígenas fica marcada nas palavras de Neoli: “A PRF tava dentro da aldeia, foi atropelar dentro da aldeia o indígena. E a revolta foi por isso”, explica ele.
Talvez para a PRF seja normal aquele tipo de abordagem. Eles atropelaram um motoqueiro indígena. Deu danos materiais para o rapaz e ele sofreu escoriações. Simplesmente depois de identificar que era indígena, foram embora.
17 de novembro, terça-feira, comunidade Kaingang faz mobilização na BR-277 contra o edital 47/2020
Kaingangs realizavam uma manifestação contra o edital 47/2020, um novo ataque do governo estadual contra a educação escolar indígena, quilombola e de comunidades tradicionais. Neoli afirma que “os atos que tem acontecido na rodovia foram contra o PSS, sistema que tira autonomia das cartas da liderança sobre quem serão os professores que trabalharão na aldeia. Porque trabalhar na aldeia não é questão de concurso, mas perfil”, explicou ele. Leia mais sobre a luta contra o edital 47/2020 aqui.
Diferente do que a mídia local veiculou, de que o motivo da manifestação era a soltura dos kaingangs que haviam sido presos na semana anterior, o ato que bloqueou a rodovia era em defesa da educação escolar indígena. Mesmo sendo uma luta por educação de qualidade, houve ataque da polícia.
Ainda no mesmo dia, os presos do dia 11 foram transferidos para Cascavel, município que fica a 100km de Nova Laranjeiras. Uma moradora da comunidade compreende que a transferência para tão longe foi uma retaliação à manifestação por educação.
Nota da Funai é insatisfatória
No mesmo dia, a Fundação Nacional do Índio (Funai) divulgou uma nota que pode ser lida clicando aqui. A declaração do órgão governamental responsabilizou as comunidades indígenas pelo saque de cargas, mesmo sem investigar a fundo o que aconteceu, e criminalizou as manifestações, ignorando a luta de kaingangs e guaranis por uma educação de qualidade e que os respeite.
19 de novembro, quinta-feira, reunião como Ministério Público
Na reunião que contou com a presença do Ministério Publico Federal para discutir o conflito entre a PRF e a comunidade kaingang, Neoli Kafy afirmou que é uma prática corriqueira a de os agentes da PRF criarem situações para causar problemas aos indígenas (ver vídeo acima).
Acredito que quem cometeu o crime maior foi quem deixou o corpo ali, praticamente jogou o corpo no acostamento para ser pisoteado. Esse é o nosso descontentamento. A polícia poderia ter agido diferente: pra que colocar o corpo ali pra justificar um ato criminoso? É crime saquear a carga? Tanto é que eles foram presos! Mas o que está pegando muito mal pra nós é os índios pisoteando o corpo. Mas não foram os índios que levaram ali. Os índios não foram buscar na van e trouxeram embaixo pra pisotear. Então é uma intenção de má fé muito clara. E é isso que vamos batalhar pra mostrar: que o rapaz que faleceu não estava ali. Alguém jogou no acostamento.
20 de novembro, sexta-feira
Por meio de fotos, foi registrada a presença ostensiva de maior aparato da Polícia Rodoviária Federal na região, com helicópteros sobrevoando a área e viaturas rondando. Para a população, a impressão que ficou é de uma demonstração de força da PRF para intimidar indígenas em caso de novas manifestações. Desde o acidente no dia 11, essa presença parece aumentar. Moradores tem relatado a entrada de agentes no interior da comunidade sem qualquer tipo de mandato ou autorização, desrespeitando a autonomia da comunidade. Segundo Neoli, a situação está cada vez mais complicada. “Hoje adentraram, pela rodovia estadual, uns 5 km dentro da Terra Indígena. Contamos 13 viaturas, e depois do almoço chegaram dois helicópteros. Eu não sei porque [isso ocorre], mas está bem clara a provocação e a intimidação que estão fazendo. Não tem justificativa plausível. Eles dizem que foi por causa da apreensão do veículo [viatura]. Mas já foi entregue. Eu não sei porque esse aparato todo”.
Contexto histórico precisa ser levado em conta
Sobre o caso, o Observatório da Temática Indígena na América Latina (OBIAL) ressaltou que qualquer tentativa para solucionar os problemas apresentados passa pela compreensão do contexto histórico em essa comunidade está.
Não é possível compreender o caso ocorrido no dia 11 de novembro e os desdobramentos do dia 17 sem compreender a dimensão história do problema. Em 1969 a Funai autorizou a construção de uma rodovia federal na minúscula terra Kaingang de Rio das Cobras, sem que esses indígenas recebessem qualquer indenização, mitigação ou reparação.
Povos originários são, historicamente, submetidos a diversos tipos de violências e frequentemente têm seus direitos violados. A historia de construção da rodovia que corta a Terra Indígena Rio das Cobras que cada vez mais tem matado indígenas não é diferente. Dados do levantamento realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) apontam que, somente nesta estrada, desde 2014 foram atropelados e mortos 22 indígenas. Os casos são tratados, muitas vezes, como culpa dos próprios habitantes da Terra Indígena, que várias vezes são culpados por “atrasarem o desenvolvimento”.
Não há, nenhuma prova, de que kaingangs e guaranis da região sejam responsáveis por acidentes na rodovia.
Saiba mais:
Em vídeo, Eloy Nhandewa Jacintho fala sobre a luta contra o edital 47/2020