Foto: Campanha de solidariedade antirracista (dezembro de 2024)
Por Repórter Popular RS
O Repórter Popular entrevistou o professor de Geografia e História, Guilherme Runge, concursado há 17 anos na Prefeitura Municipal de Cachoeirinha (RS). Na última semana, o Sindicato dos Municipários de Cachoeirinha (SIMCA) publicou uma nota sobre a perseguição contra professores que denunciaram casos de racismo e violações de direitos humanos.
Nesta entrevista procuramos saber quais os motivos alegados pela Secretaria Municipal de Educação (SMED) para a abertura do Processo Administrativo Disciplinar n.° 08/2025 em desfavor de Guilherme. Tivemos acesso à íntegra do processo em que estão identificadas as supostas infrações cometidas pelo professor para saber o que ele tem a nos dizer a respeito.
RP: Qual a acusação da Secretaria Municipal de Educação?
Guilherme: Conforme a intimação que recebi, alegam violação dos artigos 152 e 153 do Regime Jurídico dos Servidores Públicos Municipais – Lei Complementar 03/2006. Em resumo, tentam provar que cometi infrações ao descumprir: dever de tratar com urbanidade as pessoas, proibição de ação que prejudica a eficiência do serviço e proibição de proceder de forma desidiosa no desempenho das funções. No entanto, apesar da descrição dessas três supostas infrações, interpreto que tudo está vinculado à minha postura como educador antirracista e antiopressões. Há inclusive um poema que foi anexado pela SMED como prova de “incitação à prática de crime” por causa da frase “FOGO NOS RACISTAS!”.
RP: A qual poema você se refere?
Guilherme: O título do poema é “CORPOS NEGROS NA ENCRUZILHADA ANTIRRACISTA” que escrevi na madrugada do dia 05 de Dezembro de 2024. O poema foi feito num contexto em que precisava discutir na escola alguns problemas graves que vinham acontecendo, mas estavam passando despercebidos pelos meus colegas.
De forma resumida, o poema conta a história do sofrimento da mãe que teve o filho vítima de abuso dentro da escola e uma sequência de violações contra pretos e pardos justamente no período próximo ao dia da Consciência Negra. A ordem dos corpos negros que aparecem no poema é exatamente a mesma da história: PRIMEIRO CORPO NEGRO, corresponde ao que ocorreu com a orientadora educacional colocada à disposição na véspera da eleição de diretores em cumprimento às orientações da SMED; SEGUNDO CORPO NEGRO, se refere à uma professora que foi induzida a pedir remanejo coincidentemente uma semana após realizarmos uma atividade conjunta com o Mestre Cica de Oyó, reconhecido Griô em todo o Brasil e que tem relações com o reinado de Oyó na Nigéria; TERCEIRO CORPO NEGRO, trata-se de uma colega que foi tirada da função da biblioteca por orientação da SMED, coincidentemente após estabelecermos uma parceira para realização de uma sequência didática intitulada “REAFIRMANDO O ORGULHO E COMBATENDO A LGBTFOBIA NA ESCOLA”; QUARTO CORPO NEGRO”, relacionado ao drama de um jovem venezuelano que estava passando dificuldades e teve que se mudar com a sua mãe para Caxias do Sul sendo vítima de evidente xenofobia ao ser matriculado errado, daí eu acabei dando o suporte por telefone a pedido da família, pois a comunicação entre as escolas parecia difícil. Na última estrofe do poema é perguntado “Quem será o próximo alvo?” e a última frase “FOGO NOS RACISTAS” tem sido interpretada pela SMED de forma literal.
RP: Qual o sentido da acusação de ter infringido o “dever de tratar com urbanidade as pessoas”?
Guilherme: Em ordem cronológica, a acusação do PAD dá voz à uma colega que “relata sofrer assédio moral”. Fico reflexivo sobre o fato da SMED corroborar com uma tentativa de inversão dos fatos. Explico: em meados de 2024 eu havia sugerido dentro da escola uma formação voltada para os professores e funcionários sobre o tema do orgulho LGBTQIA+ e da importância do combate ao preconceito em virtude da questões relacionadas à orientação sexual e à identidade de gênero. Justifiquei à equipe diretiva a relevância do tema e a atividade foi agendada para o mês de outubro. O convite foi feito à uma colega da UFRGS, mulher trans, mestranda do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva. A formação ocorreu nos turnos da manhã e da tarde e durante as discussões não foram apresentados questionamentos sobre a atividade.
Porém, após o término da palestra, a referida colega que alega sofrer assédio moral fez uma publicação transfóbica no Facebook marcando a escola. A atitude provocou um momentâneo debate em um dos grupos de WhatsApp dos professores e funcionários. Três dias depois, um vereador bolsonarista do PL enviou ofício à SMED com pedido de informação. Em nenhum momento eu fui ouvido após esse fato, mas a SMED, por sua vez, acolheu essa colega que é cônjuge do vereador, depois fez uma ata com a direção da escola e neste momento eu sou intimado a responder esse PAD.
Até agora eu tenho curiosidade em saber qual foi a resposta oficial da SMED ao vereador bolsonarista. Os efeitos dessa vigilância da extrema direita são sentidos neste ano com orientação da SMED em cercear a autonomia das escolas. Por exemplo, recentemente realizei uma atividade com as turmas do oitavo ano recebendo a visita dos indígenas guaranis da retomada do Mato Ancestral de Cachoeirinha, no entanto, isso só foi possível após avaliação do setor pedagógico da SMED mediante a submissão de um projeto. Portanto, inventaram uma burocracia para controlar o fazer pedagógico dos professores da rede atendendo a uma reivindicação da extrema-direita.
Há ainda a alegação de que o meu tom de voz fez uma colega sentir-se violada durante uma reunião entre SIMCA, SMED e o Coletivo Antirracista Dandara Zumbi. Essa instância ocorreu no Gabinete da Secretaria Municipal de Educação, no dia 06 de Dezembro de 2024. Foi uma semana muito difícil e essa negociação ocorreu numa sexta-feira, após uma sucessão de opressões que vieram à tona ao longo dos dias:
Segunda-feira (02/12/24): o jurídico do SIMCA nos repassa o informe sobre o caso da colega Ana Paula e ao longo do dia somam-se relatos sobre os casos que constam no poema escrito alguns dias depois;
Terça-feira (03/12/24): estava agendada uma atividade no pátio da escola com três escritores do Livro “Do Morro à África”, que ocorreu no turno da manhã após ter sido agendado com antecedência, mas coincidiu com um momento em que o racismo estava evidenciado pelos casos relatados provocando um enorme constrangimento de minha parte na relação com os autores Marcelo Cortes, Letiere e Rodrigo;
Quarta-feira (04/12/24): reuniu-se no SIMCA o Coletivo Antirracista Dandara Zumbi para acolher as denúncias apresentadas e tomar as devidas providências;
Quinta-feira (05/12/2024): ocorre o Conselho de Classe das turmas de oitavo e nono ano da escola, mas antes de iniciar a reunião aproveito para entregar a todos os professores e funcionários da escola o poema para que fosse provocada uma discussão sobre o assunto;
Sexta-feira (06/12/2024): reunimos no final da manhã na SMED, houve uma recusa por parte da secretaria em discutir as questões étnico-raciais de maneira estrutural, restringindo-se a justificar as atitudes que a mantenedora tomou em relação à colega Ana Paula.
Portanto, é compreensível que uma reunião de negociação neste contexto tenha sido tensa e que o tom de voz das pessoas presentes tenha passado bem longe de um bate-papo amistoso, mas daí querer mirar nas minhas intervenções para dizer que cometi violência de gênero é uma tentativa de inverter as coisas.
É tragicômico que, sem ter estado nessa reunião e somente lendo a ata por escrito, a minha banca de mestrado da UFRGS formada por cinco doutores nas áreas da Educação e da História interpreta que essa era uma reação da branquitude ao ser interpelada por um homem branco sobre questões étnico-raciais.
Ao mesmo tempo, comentaram o desconforto manifestado na ata com a recusa das pessoas da SMED em realizarem uma rodada de autodeclaração, pois representando o SIMCA estavam quatro mulheres negras e um homem branco, enquanto da parte da SMED todas as pessoas que recusaram a autodeclaração eram fenotipicamente brancas. Portanto, estamos diante de uma estrutura de poder caracterizada pela supremacia branca e, conforme nos ensina Grada Kilomba, a supremacia branca é o próprio racismo.
RP: Qual a relação dessas histórias com a perseguição denunciada pelo SIMCA contra a outra professora que também foi intimada com um PAD?
Guilherme: A professora Ana Paula é o “PRIMEIRO CORPO NEGRO” que se refere no poema. De acordo com a orientação jurídica que estamos tendo pelo sindicato, há uma evidente tentativa de silenciamento de uma mulher negra.
Há diversas atas anexadas no seu processo feitas em desfavor da Ana Paula e chama a atenção o fato dela sequer estar presente nas reuniões realizadas que dizem respeito a sua vida funcional, ou seja, em nenhum momento houve direito ao contraditório.
Pelo que temos analisado junto ao jurídico, a única ata na qual participou foi justamente aquela em que teve a sua “sentença” comunicada, ou seja, no dia em que foi colocada à disposição. Como consequência teve perda de remuneração ao final do ano passado, foi difamada na comunidade escolar, viveu o transtorno de não conseguir matricular a sua filha na escola em que iniciou o ano letivo, entre outras coisas.
Em sua função como orientadora educacional, a história de Ana Paula se conecta com a maioria das histórias denunciadas no poema: foi Ana Paula quem acolheu o menino vítima de abuso dentro da escola e ofereceu todo o suporte para a mãe dando as devidas orientações.
Ana Paula tinha vínculos com o SEGUNDO CORPO NEGRO que foi induzido a pedir remanejo da escola. Ana Paula contribuiu com a recepção, o acolhimento e a condução da atividade voltada às questões LGBTQIA+ durante a formação dos professores.
Ana Paula na sua função de orientadora educacional acompanhou a família do estudante venezuelano para cadastro na assistência social no intuito de acessar as políticas sociais como o bolsa-família.
Portanto, apesar daqueles que alegam não gostarem dela como pessoa ou que diziam não estarem satisfeitos com o seu trabalho, ela sofreu as consequências do racismo estrutural do qual nos ensina Sílvio Almeida. Esse olhar estereotipado sobre a mulher negra é uma reprodução da desumanização histórica do colonialismo da qual ela também é vítima chegando ao ponto de tentarem justificar o roubo de mais de 50 horas trabalhadas que simplesmente sumiram da sua vida funcional sob argumentos burocráticos dos prazos e das autorizações.
Há um último dado sobre o PAD em desfavor da colega Ana Paula que me deixa muito consternado. Parte da minha formação profissional é na área da História. Parte das atribuições do historiador e do pensar historicamente passa por interrogarmos as fontes e uma das perguntas fundamentais para interpretarmos os fatos é saber “Quando?”. De acordo com as informações que estamos verificando com o jurídico do SIMCA, na data do dia 06/12/2024 a SMED escreveu o memorando à corregedoria, mas que foi assinado eletronicamente somente no final da tarde de segunda-feira, dia 08/12/2024. Portanto, isso indica que a SMED desconsiderou qualquer possibilidade de escutar o que estava acontecendo no caso da colega Ana Paula apesar de tudo ter sido alertado por parte do SIMCA e do Coletivo Antirracista Dandara Zumbi na reunião ocorrida na manhã do dia 06/12/2024.
RP: Qual o sentido da denúncia na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa?
Guilherme: Denunciamos na comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa porque a luta antirracista e antiopressões tinha chegado num limite se nos restringíssemos ao município. Avaliamos que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal está sob suspeição e conflito de interesses, além do seu relator ser responsável por promover patrulhamento ideológico atacando a autonomia das escolas.
Nesse sentido, a denúncia na comissão de caráter estadual foi importante porque está nas suas atribuições fiscalizar as violações de direitos humanos nos municípios. Foi somente depois da denúncia na Comissão de Direitos Humanos estadual que: 1) A mãe teve a perícia do seu filho realizada, ou seja, quase cinco meses depois de ter sido violentado; 2) A Prefeitura, a SMED e a escola finalmente se posicionaram sobre o caso de transfobia afirmando que não compactuam com o preconceito; 3) Ana Paula finalmente teve a sua filha transferida para a escola em que trabalha; há ainda um caso de uma professora com deficiência vítima de capacitismo que somente depois de toda essa luta teve as suas limitações respeitadas.
No entanto, apesar dessas conquistas imediatas, reivindicações fundamentais ainda não foram atendidas a exemplo da necessidade de cumprimento da política de ações afirmativas, como as cotas com reserva de vagas nos concursos públicos para pretos, pardos e indígenas.
RP: Há mais alguma coisa que você gostaria de manifestar?
Guilherme: Na minha percepção enquanto historiador, gostaria de chamar a atenção sobre algumas fontes e datas que estão anexadas em meu processo. Em primeiro lugar, na dita infração “Proibição de proceder de forma desidiosa no desempenho das funções” alegam que eu não havia lançado meus registros de aula no sistema durante uma semana do mês de fevereiro.
Em segundo lugar, somando isso à outra infração “Proibição de ação que prejudica a eficiência do serviço”, há uma coincidência de datas em que cometi essas supostas infrações e que se encontram justamente com o período de defesa da minha dissertação do mestrado profissional em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Gostaria de chamar a atenção de que cumpri normalmente meu expediente de trabalho mesmo durante esse período da defesa da minha dissertação. Por óbvio, é possível que eu tenha atrasado algum lançamento no sistema em virtude de estar justamente na semana da defesa do mestrado, mas ser criminalizado por isso na verdade esconde uma face persecutória sobre a minha atuação enquanto professor e pesquisador.
Realizei um trabalho na área de Educação para as Relações Étnico-Raciais da qual a banca recomendou expressamente que o texto seja lido pelos professores, pelos estudantes e pela comunidade. Nos próximos dias a dissertação estará disponível no site da UFRGS, mas é possível acessar os documentos no site criado como Material Educacional Digital em https://radionaencruza.my.canva.site/
Por fim, a escola receberá na próxima quarta-feira, dia 07 de maio, a primeira edição da CONFERÊNCIA MUNICIPAL DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL sob o lema ENFRENTAMENTO AO RACISMO E O COMBATE À DISCRIMINAÇÃO. Essa agenda é de extrema importância dada a situação em que nos encontramos no município.
Pessoalmente, na condição de educador antirracista, geógrafo e historiador, lhes digo que a História, assim como o território, são lugares de memória. Portanto, apesar da perseguição e das tentativas de silenciamento que estão em curso, o que foi vivido jamais deverá ser esquecido. Medidas de reparação e ações efetivas são urgentes e necessárias para que o racismo e qualquer outra forma de opressão seja combatida.