RESENHA | Ranhuras: a dança como política dos corpos que se negam a cansar

Corte de recursos públicos, genocídio do povo negro, perseguição política, destruição do meio ambiente. O ajuste fiscal não é apenas uma concepção de economia. Os assassinatos nas periferias não são apenas erros das polícias. A repressão aos movimentos sociais não é uma questão de segurança. Os desastres ambientais não são acidentes. Nesse contexto, diante da necessidade de drenar todos recursos do que beneficiaria o povo para manter lucros privados, a “crise” virou uma forma de governar. Frente a tanta destruição causada pelas próprias políticas do capitalismo (seja de tom mais estatal, seja de tom mais liberal), os engravatados de plantão aparecem para receitar o remédio amargo do corte de verbas e apresentar os inimigos internos a combater para manter o que chamam de ordem e moral. Uma política que naturaliza o estado exceção com vistas à disciplina e ao controle dos corpos e que divide a sociedade entre quem pode viver e quem pode morrer.
É este cenário desesperador que invoca “Ranhuras”, produto do trabalho independente do Coletivo Moebius de dança contemporânea. De certa forma, esta nova peça remonta ao início da trajetória do co
letivo em 2014, ano que apontou o princípio do acirramento da política brasileira. Era o começo do fim de uma era prometida de prosperidade, com direito a Copa do Mundo, Olimpíadas e grandes obras no “Brasil, um país de todos”. Assim, resistindo no cenário cultural de Porto Alegre e mantendo a coragem das pautas de 2013 que não foram capturadas pelas elites, o grupo segue enfrentando o (nem tão) novo arranjo do poder que fabrica um país e um deus acima de tudo e de todos para garantir o benefício de alguns poucos.
 
Apresentada pela primeira vez ainda em 2018 a peça arranha a imagem oficial na bonita foto de milicos, políticos profissionais e tecnocratas. Como mesmo nos diz o coletivo, “Ranhuras existe para ser a lembrança do que não pode ser esquecido, para que nunca mais aconteça. Ranhuras é a agonia que sentimos em nossos corpos vivendo o dia de hoje. É inquietação. É busca por ar, por espaço para respirar, por brechas para existir. É um pedido de afeto e de coletividade. O tiro em Marielle foi em todas nós. A violência doméstica diária atinge todas nós. A Lama da Samarco sufocou todos nós. A censura do Queermuseu é a censura de cada um de nós. Precisamos nos afetar. Precisamos ser resistência”.
Aqueles que foram carcomidos pelo discurso do ódio e do ressentimento, iludidos com armas e mitos, talvez queiram que a arte morra, junto com as diferenças e as universidades e tudo isso que tá aí. Mas alguém sensível ao que se passa, um desavisado, poderia perguntar: como dançar diante do ódio como afeto político, da devastação ambiental, da censura, do terror do Estado? O que nos respondem os corpos em “Ranhuras” é que eles não são governáveis, controláveis. Que não servem nem ao lucro, nem às manchetes da grande mídia ou às fakenews das redes sociais. A dança nesta peça é dos corpos que se negam a cansar, mesmo quando destituídos de sua humanidade pelo exercício do poder. Assim, sem reduzir a arte a um panfleto, “Ranhuras” é a política do corpo que aguenta e resiste. Política essa – nos lembra a arte – muito mais real que a realeza da política dos profissionais em gabinetes e parlamentos, numa espécie de reality show que nos fazem crer ser de onde toda decisão é tomada. Diante daquele futuro que não foi, o que nos diz “Ranhuras”, em 2018, é que a arte segue em frente para reivindicar e reinventar novas formas de viver. Que nenhum ajuste fiscal, perseguição ou assassinato será capaz de dobrar ou destruir.
Serviço:

Data: 18 de Junho (terça-feira), às 20h 30min

Local: Teatro Renascença – Centro Municipal de Cultura (Av. Érico Veríssimo, 307)

Classificação: 12 anos

Duração: 45 minutos

Entrada: Inteira R$ 30,00 / Meia entrada R$ 15,00 (Estudantes, idosos e classe artística)

Ficha técnica:

Concepção e coreografia: Coletivo Moebius

Elenco: Luíza Fischer, Patrícia Nardelli, Priya Mariana Konrad, Renata Stein, Sahaj.

Trilha ao vivo: Coletivo Medula – Isabel Nogueira e Luciano de Souza Zanatta.

Iluminação: Casemiro Azevedo

Projeção: Paula Pinheiro

Produção e realização: Coletivo Moebius

Fotografia: Adriana Marchiori

Videodança: Bruno Goulart Barreto

Teaser: Alen Ross e Martha Buzin

Por Paulo Crochemore