Miséria, repressão e luta sindical na Argentina
O Repórter Popular conversou com Iris, trabalhadora da saúde em Rosário e membra da ATE (Associação dos Trabalhadores/as do Estado) da Argentina. Íris integra a agrupação sindical Luisa Lallana (nome que homenageia histórica trabalhadora do porto de Rosário vítima da repressão patronal durante uma greve em 1928), e contou ao Repórter Popular sobre esse sindicato e agrupação sindical, assim como contextualizou essas lutas no contexto atual da Argentina, sob o governo de Milei, com forte repressão e desmonte de serviços públicos essenciais. Confira abaixo entrevista na íntegra!
Repórter Popular RS (RP): Antes de tudo, faça uma apresentação breve e nos fale sobre a cidade onde vive, o setor e o trabalho concreto – seu cotidiano e compromissos no sindicato.
Iris: Meu nome é Iris, trabalho em um Centro de Saúde, que fica na periferia da cidade de Rosário, que depende da Secretaria de Saúde Pública. Sou Municipária filiada a Associação de Trabalhadores/as do Estado (ATE) Rosario e formo parte da Comissão Diretiva de dita categoria.
Os centros de saúde na cidade de Rosário estão localizados na periferia da cidade, onde os usuários são pessoas que não tem outro tipo de cobertura em saúde além do sistema público. Particularmente, pelo momento que estamos vivendo na Argentina, em que o governo nacional sistematicamente ataca o que é público, acreditamos que um dos grandes deveres que temos como sindicato é lutar em defesa da saúde pública e a educação pública.
Também é uma tarefa urgente lutar contra a precarização do trabalho que cada vez se amplia mais dentro da administração municipal, assim como nas províncias e ao nível Nacional; e por suposto, continuar a luta por melhores condições de trabalho e salariais.
RP: Sim. Lembramos que as Províncias são equivalentes aos Estados no Brasil. Poderia nos explicar como funciona o sindicato ATE. Uma breve passada para a gente conhecer sobre suas lutas, também o nível de sindicalização da categoria. A ATE organiza servidores públicos de distintas esferas, do municipal até o nacional?
Iris: A ATE é um dos primeros sindicatos em nosso país, fundado em 1925 com personería gremial número 2, que é uma forma de inscrição de sindicato de acordo com os princípios do sindicalismo argentino. É um sindicato que existe a nível nacional e está dividido por seccionais.
Dentro de nossa categoria existem distintas agrupações sindicais, que são expressão da pluralidade sindical. Particularmente, a ATE Rosário é a maior secional do país, chegando a um total de 11.000 filiados. Este número inclui filiados a nível nacional, provincial e municipal.
RP: Na atualidade, que temas e reivindicações estão colocados em nível municipal pela ATE Rosário? Há setores terceirizados na categoria e como se articulam com o conjunto na ação sindical? Vocês tem experiências de lutas unidas com os bairros?
Iris: Como mencionava mais acima, uma das tarefas que temos a nível municipal é lutar contra a precarização laboral que se estende cada vez mais no município através da terceirização e a contratação temporária de trabalhadores que ao fim e a cabo realizam os mesmos trabalhos que um servidor municipário, mas em condições de trabalho muito mais precárias.
Nesse sentido, cremos que é tarefa do sindicato agrupar as reivindicações tanto dos trabalhadores regulares como daqueles contratados e terceirizados. Achamos que esta é a melhor estratégia para juntar forças e poder lutar para melhores condições para todos/as.
Muitas trabalhadoras e trabalhadores municipais trabalham nas periferias da cidade e com população que é muito vulnerável, para o qual temos uma consigna que diz “mi trabajo son tus derechos” e que tem muito a ver com esta ideia de defender o público entre trabalhadores, usuários, vizinhos, organizações sociais e sindicatos. Basicamente é a unidade entre todos os e as de baixo, a que buscamos construir; porque os ricos e os políticos de turno não são quem frequentam no dia a dia as instituições onde trabalhamos com a comunidade.
Particularmente, na saúde temos bastante experiência de trabalho articulado entre os trabalhadores da saúde e as organizações sociais que se encontram nos territórios.
RP: Passamos para outro tema. Nos explique um pouco sobre a agrupação de estatais Luisa Lallana. Quando se constituiu? Quais referências e práticas de sindicalismo formam seus valores e que participação tem na vida sindical da categoria?
Iris: A agrupação Luisa Lallana se formou lá em 2018, após viagem ao ELAOPA (Encontro Latinoamericano de Organizações Populares Autônomas) onde pudemos conhecer a experiência de companheiros de outras partes do mundo, como por exemplo do Uruguai e Brasil.
E se bem que, como dizia antes, dentro da ATE existem distintas agrupações, particularmente a Agrupação Luisa Lallana promove valores que tem que ver com a ação direta, a democracia direta, a solidariedade e independência de clase, assim como também a luta feminista. Estes valores que promovemos se traduzem em um estilo de militância sindical distinto ao que estamos acostumados/as: longe de promover o personalismo, o conformismo, a não participação das bases e a mesquinharia, a agrupação propõe um modelo de militância sindical que promove a participação dos/as companheiras nos lugares de trabalho, que fomenta a discussão, que promove a ação direta para defender e ganhar conquistas.
Achamos que é um erro terrível que alguns sindicatos façam seguidismo político aos governos de turno, porque ao fim e ao cabo estes não deixam de ser o estado-patrão. Por isso pensamos que é um valor fundamental, na luta sindical, manter a independência de classe como princípio e prática que nos permita juntar a todos os trabalhadores e as trabalhadoras dispostos a lutar, deixando de lado questões partidárias.
Assim que nossa agrupação foi crescendo nesses 6 anos tanto a nível municipal como provincial e nacional. O ano passado conformamos uma chapa junto com outra agrupação da ATE para a eleição da Comissão Diretiva de nossa secional e fomos eleitos. Temos o desafio por diante de continuar promovendo o modelo sindical que defendemos.
RP: Queremos conversar também sobre a cena nacional. Soubemos pela imprensa, no começo do ano, que o governo Milei disse que pretende demitir 70 mil trabalhadores dos serviços públicos na Argentina. E além do plano de demissões, recortes dos direitos conquistados pelo povo, privatizações de bens públicos, cortes no orçamento social, pobreza e repressão. Em geral, como o movimento sindical tem se defendido e reclamado seus direitos ante o choque neoliberal que os de cima vem aplicando?
Iris: O governo de Milei assume com o discurso de que vem pra “destruir o estado por dentro” mas na realidade isso é mentira: o que vem para destruir é o público. E por que o público? Porque o setor público é uma conquista histórica dos e das de baixo.
Quando o estado despede trabalhadores/as em distintos setores, o que termina fazendo é não garantir um direito à população. Por isso nós acreditamos que é estratégico frente a semelhante investida contra os e as de baixo, sair de conjunto entre trabalhadores/as, usuários/as, organizações sociais e sindicais, à defender nossas conquistas.
Dentro do movimento operário as respostas diante os atropelos tem sido das mais variadas, mas as mais efetivas tem sido as que tem que ver com a ação direta: desde paralisações e assembléias até redução de trabalho. Também são feitas atividades solidárias para bancar a luta de alguns setores, e tem sido fundamental a solidariedade entre as distintas categorias para pôr freio a esses ataques. Alguns métodos de luta que adquirimos como classe estão mais vigentes do que nunca: democracia direta, ação direta, solidariedade e independência de classe.
RP: Que força social Milei tem para levar adiante suas políticas? De onde tira suas energias a extrema direita argentina? E como vem o fortalecimento de um aparato de Estado policial e criminal sobre os protestos sociais?
Iris: O governo nacional se apoia na porcentagem eleitoral que ganhou nas últimas eleições. O certo é que só 70% da população foi votar e que muitos dos que votaram nele fizeram por descontentamento com o que havia. Com 10 meses de sua gestão, a inflação se mantém – ainda que baixou – mas os salários, aposentadorias e planos sociais estão totalmente desvalorizados já que o custo de vida aumentou abruptamente logo que assume o governo.
Ainda que o governo sustente que 56% votou nele, por outro lado estão crescendo distintas resistências como a de servidores e docentes que vem enfrentando os embates do governo provincial e nacional; também o movimento estudantil que diante da falta de orçamento se lançou a tomada de universidades e aulas públicas nas distintas faculdades do país; e o movimento de desempregados que está fazendo malabarismo nos bairros para dar de comer a toda a população.
Por suposto que o ajuste que querem fazer o povo pagar não passa sem repressão. Nesse sentido, a nível nacional, desde o primeiro momento se tentou criminalizar o protesto com o protocolo anti-piquetes, que rapidamente foi vencido em uma massiva manifestação em 19 e 20 de dezembro de 2023.
E nisso, em Santa Fé, província onde fica Rosário, o governo provincial se alinha com a política nacional e busca criminalizar o protesto social.
Foi assim em 16 de outubro, quando se realizaram invasões brutais na casa de militantes. Em operativos totalmente desmedidos, onde apanharam e fustigaram trabalhadores e suas famílias, o governo provincial deteve 5 manifestantes sociais que tinham ido ao protesto realizado no 12 de Setembro na Legislatura de Santa Fé, onde se sancionou a Reforma da Previdência que prejudica severamente os trabalhadores/as provinciais.
Graças a luta popular onde confluíram organizações sindicais, sociais, políticas e estudantis, conseguimos torcer o braço do governo provincial para que os libertassem. Foi muito importante a solidariedade que se deu de muitíssimas organizações sociais e sindicais do Uruguai e Brasil, entre outras.
Não obstante, as causas seguem abertas e vamos pelejar em unidade pelo desprocessamento dos companheiros.
RP: Agradecemos à companheira Iris e a toda a agrupação sindical Luisa Lallana pela interessante conversa com o Repórter Popular