A Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, de São Paulo, afirma que o programa Fantástico, da Rede Globo, naturalizou a execução de suspeitos por parte da polícia, em reportagem no último domingo. Nesta sexta-feira, dia 23, o movimento divulgou uma nota pública criticando a abordagem.
Nota pública à matéria do Fantástico sobre violência policial, veiculada em 18/10/2020
O programa Fantástico, da Rede Globo, em matéria veiculada na sua última edição, de 18/10/2020, ao abordar a violência e o racismo estrutural como razão para a morte da população negra no Brasil, reforçou, numa atitude implícita, o discurso de que “bandido bom é bandido morto”, naturalizando o genocídio cometido pelo Estado brasileiro contra sua juventude.
À primeira vista, a intenção da matéria foi mostrar que tanto os jovens cariocas como o policial militar paulista, todos negros, foram mortos devido ao racismo estrutural. Porém, ao apresentar a fala das mães, uma negando que seus filhos fossem criminosos e a outra afirmando que “bandido bom é bandido morto”, o programa reforça o senso comum sobre a morte de negros: a lógica que paira no inconsciente coletivo – propagada por programas vespertinos sensacionalistas, assim como pelas práticas policiais e por outras instituições que moldam o hábito e o pensamento da sociedade –, de que o negro é suspeito de ser bandido e de que “o bandido” tem que ser morto para a justiça ser feita. Assim, ele banaliza as mortes da população negra jovem.
A matéria exibiu a violência racial em duas grandes cidades brasileiras, com base em dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram apresentadas duas histórias distintas de homicídios contra pessoas negras, contadas sob a perspectiva das mães das vítimas. Um dos casos é contado por Andressa Silva, mãe de Victor e de Roger, 16 e 18 anos, respectivamente, executados numa chacina com mais sete pessoas, no dia 8/2/2019, numa residência da Favela do Fallet, região central do Rio de Janeiro, numa operação do BOPE – Batalhão de Operações Especiais, da Polícia Militar fluminense. O outro foi a morte do policial militar paulista, também chamado Vitor, assassinado em um confronto com suspeitos de roubarem um celular, narrado por sua mãe, Marcia Farias.
Em comum, além da morte violenta por arma de fogo e de serem negros, está a relação com a atividade policial. Ambas as famílias afirmam que ser um negro policial é uma condição que traria respeito, anularia o racismo sofrido por homens com essa cor de pele. Victor, policial militar em São Paulo, segundo sua esposa, por diversas vezes, apresentava-se como policial para “evitar o racismo”, para ser respeitado. Já a mãe dos jovens cariocas queria que seu filho fosse policial militar. Para ela, isso traria mais segurança a seu corpo negro.
A matéria apresenta ainda análises do professor Silvio Almeida e da professora Ynaê Lopes sobre o racismo estrutural como elemento-chave das mortes desses três homens. O racismo estrutural é entendido como componente basilar das estruturas da sociedade brasileira, na qual muitas vezes o racismo é camuflado, ignorado, mas não deixa de operar, impedindo que a população negra tenha o mínimo de igualdade, em diversas dimensões sociais, e operando numa necropolítica, na qual o Estado deixa e faz morrer parte significativa dessa população, seja pela falta de saneamento e de acesso à saúde, seja pela morte precoce de sua juventude em supostos confrontos com policiais.
O presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública é outro que reitera, em sua hipótese para essas mortes, o racismo como responsável pelo assassinato de policiais e de civis. Segundo ele, 45% dos policiais brasileiros são negros, assim como o são 61% dentre os policiais mortos. A reportagem do Fantástico também conversou com o Coronel Diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos da Polícia Militar de São Paulo sobre o racismo na instituição. O Coronel, que se autodeclara negro, afirma haver igualdade e respeito à progressão na carreira policial militar paulista, mas não menciona que a carreira militar de São Paulo possui duas entradas de ingresso por concurso público: na primeira, estão os praças (soldado, cabo, sargento e subtenente) e, na segunda, os oficiais (tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel). Nas operações das ruas, estão os praças, postos ocupados majoritariamente, como sinalizam as mães dos entrevistados, por homens negros e pobres, que buscam na atividade policial militar “respeito”, livrar-se do racismo que machuca suas almas e suas psiques, mas que também pode aniquilar suas vidas. É nas operações das ruas que os confrontos a tiros ocorrem e que os negros morrem, sejam eles policiais ou suspeitos.
Embora Andressa, mãe de Roger e Victor, reconheça, logo no início da matéria, que o Estado é genocida, ou seja, está dizimando jovens negros em São Paulo, no Rio de Janeiro e em todo o país, ela explica que seus filhos não eram criminosos, como se, caso o fossem, as mortes de ambos estariam justificadas. Mais enfática é a mãe do policial militar paulista: acredita que “bandido bom é bandido morto”, que seu filho não era bandido e, por isso, não deveria morrer.
Ainda que o Fantástico tenha tido como proposta abordar a reflexão sobre racismo e violência, é necessário nos atentarmos às falas selecionadas pela edição, para não reforçar a lógica de ódio e racismo, de que “bandido bom é bandido morto”, banalizando a morte da população negra, contribuindo para o genocídio do negro brasileiro.
Consideramos contraditório, por parte da emissora, do programa e de seus editores, posicionarem-se como antirracistas enquanto se apoiam num discurso genocida que legitima mortes igualmente ilegais de jovens negros.
No Brasil, legalmente, não há pena de morte ou execução sumária para qualquer pessoa que tenha cometido qualquer crime ou, pior ainda, que seja apenas suspeita de ter cometido um. Isso significa que assassinatos, de criminosos ou não, pelas mãos do Estado, são ilegítimos. Vivemos em um Estado Democrático de Direito, em que pessoas suspeitas de crimes devem ser julgadas e não sentenciadas à morte por policiais que estejam em operações nas ruas.
Nós, da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, somos contrários às execuções cometidas por policiais brasileiros, assim como somos contrários à lógica do Estado que parece ser a de que uma boa segurança pública consiste no encarceramento em massa e no genocídio da juventude negra.
Basta de genocídio!
Sem justiça não há paz!
Vidas negras importam!
Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio