19 de novembro de 2018, Bruno Lima Rocha
Desta vez assumo uma condição de ensaio, exploração do tema mesmo. A eleição do deputado federal pelo PSL-RJ, Jair Messias Bolsonaro, foi fruto de um conjunto de fatores e também, mérito eleitoral tanto de seu proselitismo como do conjunto de alianças eleitorais, econômicas e sociais ao seu redor. Disto não há dúvidas, assim como o bloqueio da candidatura do ex-presidente Lula e a não transferência de votos, além de uma enxurrada de Fake News.
Mas, para além dos efeitos eleitorais, superando o voto de protesto e a negação da política, ultrapassando a migração da pobreza e do desamparo, com uma parcela de votos que migra de Lula para o ex-capitão de artilharia de curta carreira na Força Terrestre, existe uma dúvida de profundidade.
Que tipo de Brasil, qual a ideia de Brasil, quais ideias de Brasil que elegeram Bolsonaro?!
Tenho medo de cair em armadilhas conceituais, como querendo rebater aos clássicos do conservadorismo, a exemplo de Oliveira Vianna (a quem Golbery do Couto e Silva se referia como “mestre Vianna”), ou o perigoso Nina Rodrigues, por exemplo. Meus temores passam por integralistas como Gustavo Barroso e Plínio Salgado. Mas, no meio desta tormenta, me deparo com a obviedade de que a Barata Cascuda, o folclorista Câmara Cascudo, participou dos Galinhas Verdes e isso a geração protofascista do século XXI sequer faz.
Estamos diante de uma gigantesca esquizofrenia. Desde o delírio Udenista Pós-Moderno dos coxinhas de 2015 e 2016, passando pela campanha paralela do clã Bolsonaro, trata-se de um Brasil profanando o verde e amarelo como verniz, negacionista de quase tudo, opositor inclusive aos feitos da direita brasileira. Ou aos feitos das direitas brasileiras. Este que escreve se fosse politicamente ativo no período de 1964, certamente agora estaria no além. Mas, não posso negar que a ditadura militar tinha projeções de Brasil Grande, e este é igualmente negado. Se vivo fosse nos anos ’30, a partir de 1934 especificamente, certamente me encontraria também no mundo de lá, mas tampouco posso negar que os governos autoritários de Vargas, incluindo o Estado Novo, tinha um projeto de país integrado e com o controverso elogio da mestiçagem. Assim, ainda que eu critique a invisibilidade afrobrasileira, identifico no projeto cultural do eixo Rio-Minas-Bahia da Era Vargas, simplesmente um projeto de país afrocentrado.
Poderia ficar buscando pistas republicanas, mas isso me parece ir mais além. Observando a estética política do clã vitorioso e seus aliados, ultrapassando o espelho retorcido que tenta mimetizar e porque não imitar loucamente as posições dos EUA como Superpotência, o que vejo remonta aos marcos coloniais do Império Luso-Brasileiro e suas consequências.
Raízes no Império?
Estava pensando no Brasil Império e justamente em dois movimentos do Estado no período. O primeiro, a afirmação da “nobreza ilegal”, tanto como forma de sustentar o início dos parasitas que aqui chegaram escoltados pela Marinha Inglesa – e todas as suas consequências – como depois, no período da Regência e o Golpe da Maioridade, quando o paradigma político oportunista de Bernardo Vasconcellos faz derrubar as máscaras do liberalismo conservador brasileiro.
No auge do Segundo Reinado, a escolha preferencial pela importação de mão de obra, apontando a necessidade do país ter “população branca”, mesmo sendo estes os pobres da Europa, a cristandade distante do Oriente Médio (de onde vem majoritariamente este mortal que aqui escreve) ou mesmo apontando as baterias para a importação de “americanos” no interior de São Paulo. Enfim, já na república chegaram os nipônicos e todos nos tornamos automaticamente, socialmente brancos e dotados dos benefícios desta posição.
Vejamos a eleição de 2014. A presidente reeleita é filha de um exilado búlgaro e uma família quatrocentona mineira. Seu vice, primeira geração no país, de origem libanesa maronita e se torna presidente. Olhando assim, esta é a terra das oportunidades. Será?
Esta pode ser a dica da visão de brasilidade. Somos todos integrados, desde que obedecendo a “ordem social das coisas”. Para isso, a votação expressiva de Bolsonaro sobre a mancha da soja e do latifúndio da colonização interna explica muito.
Charles Borer como paradigma de ascensão e queda
Recentemente um amigo e companheiro de longas jornadas falou em evento político-acadêmico algo que me chamou a atenção. “Já passamos da fase de tentar responder perguntas difíceis com resposta fáceis. Reafirmamos a escola libertária uruguaia: certeza ideológica, dúvida teórica, precisão analítica”. Assino embaixo.
Falo isso porque não basta explicar a votação de Bolsonaro por nenhuma categoria absoluta e menos ainda cabe negar a ascensão de alguma ideia da extrema direita profundamente antagônica a qualquer matriz social brasileira. Ficaria contente em afirmar que “o viralatismo explica”. Explica muito sim, mas não tudo. O racismo estrutural também está mais perto do que imaginamos, assim como os esgotos do inconsciente, mas não basta.
Não basta porque não imagino um modelo de Brasil que essa gente, ao menos os 20% de convictos da extrema direita, consiga ver como válida. Para além dos holofotes, da “guerra cultural através da Unizap”, da “memificação” da política, será que essa parcela convicta já foi numa feira livre? Perdoem o carioquismo, mas será que esse pessoal já escutou Jorge Ben ou Tim Maia, se maravilhou com um partido alto ou foi às lágrimas ouvindo Cartola ou dona Clementina?
Eu não quero fazer desse ensaio um arremedo de crônica de João Saldanha e Sandro Moreyra, mesmo porque teria de nascer ao menos cinco vezes para escrever com dez por cento do talento dos dois. Mas, um pouco de Botafogo ajuda a explicar. Dizem que o clã é alvinegro, como este aqui que peleia com as palavras. Nasci com a estrela solitária como fralda, sendo filho e neto dos dois lados. Enfim, pensamos no Glorioso e imaginamos um banho de Brasil em preto e branco, como Manga, Nilton Santos, Didi, Garrincha, Jairzinho, Afonsinho, Paulo César, Heleno de Freitas, Amarildo (ufa, vou parar por aqui para não narrar vinte linhas de craques imortais). Ao vislumbrar o Fogão ninguém mais se lembra do tenebroso período de Charles Borer como presidente, ele mesmo, irmão de Cecil Borer, o todo poderoso delegado do DOPS da Guanabara. Borer foi presidente de 1976 a 1981, incluiu mais de 400 conselheiros para votar nele de forma incondicional (chamados de boreméritos) e quando em 1981 o Conselho foi votar seu impeachment, chegou escoltado de seguranças e com três viaturas da PMERJ. Saiu escorraçado igual e hoje o clube esconde este passado recente, onde ficamos sem sede histórica e sem títulos de nenhuma ordem. Enfim, analogias à parte, para além das alegorias futebolísticas, isso pode explicar muito.
Estamos diante de uma fórmula desastrosa: a ascensão imaginária, um governo de ocupação, desastres terríveis, aproveitadores de todo tipo e, se fizermos nossa parte, virá a renascença tão furiosa como o clube de samba do mesmo nome no bairro do Andaraí. Vai doer, mas vai passar, e passará mais rápido se as esquerdas mergulharem definitivamente, de cabeça e alma na formação do povo brasileiro. Um pé em cada mundo, como Beth Carvalho e Gonzaguinha, generosos com os humildes iludidos e irredutíveis com os usurpadores.
Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em economia política, doutor e mestre em ciência política, professor de relações internacionais e jornalismo e, mais importante do que tudo isso, é brasileiro e botafoguense.
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