Por Repórter Popular – RS
Entrevistamos dois trabalhadores e sindicalistas de base sobre a greve dos municipários de Porto Alegre (RS), que se inicia hoje, 1º de abril, conversando sobre as perspectivas da mobilização e sua relação com os problemas da cidade e dos serviços públicos depois da grande enchente de 2024.
Repórter Popular (REPOP): Primeiramente, vocês podem se apresentar e passar uma ideia a nossos leitores sobre o local de trabalho de cada um, como vão as coisas, que projetos e que dificuldades estão dados atualmente?
Leonardo: Meu nome é Leonardo, sou professor na rede municipal de ensino de Porto Alegre.
Na educação, o maior ataque a partir deste ano foi a decisão de acabar com as eleições diretas para direções de escolas. Após anos elegendo a direção, agora as comunidades em cada escola deverão engolir uma direção imposta pela secretaria de educação. O governo diz que as direções devem estar alinhadas com a Secretaria de Educação (SMED), que está na mão do PL, partido de extrema-direita que ganhou a pasta na rifa do Sebastião [Melo, prefeito pelo MDB]. O próprio secretário, em entrevista em rádio no ano passado, disse que a educação está impregnada de Paulo Freire e que isso tem de acabar, desconhecendo completamente a importância das ideias do educador pernambucano para promover a autonomia intelectual dos estudantes.
Desde o início do ano duas direções foram removidas de seus cargos, mesmo tendo sido eleitas por suas comunidades. O governo quer acabar com a gestão democrática e, parece, quer fazer de tudo para impor sua ideologia na educação municipal, o que segue na contramão de todos os debates educacionais em nível nacional, como o da Conferência Nacional da Educação (Conae), que orienta para o próximo Plano Nacional de Educação (PNE), e estabeleceu orientação para a intensificação da gestão democrática da educação a partir de debates em municípios de todos os estados do país. Em Porto Alegre, ao contrário, várias ameaças veladas foram feitas por parte do secretário para que as direções se subordinem completamente e acriticamente às imposições da secretaria, mesmo havendo maioria que discorde dessas decisões. Já tentaram inclusive retomar o Escola Com Mordaça na Câmara, mas foram barrados pela justiça.
Mas os ataques são muitos. Querem impor um sistema de apostilamento, de cartilhas, que precisam ser usadas na educação infantil, na alfabetização, seguindo um ensino padronizado e desconsiderando particularidades locais e a diversidade de estudantes em sala de aula. Nas séries finais do Ensino Fundamental impuseram uma priorização curricular que deixa de fora uma série de temas, conteúdos em todas as áreas do conhecimento, o que desconsidera o aprendizado em diversos aspectos e perspectivas, além de desrespeitar a autonomia docente e a pluralidade de ideias, o que é garantido pela Constituição Federal.
Ao mesmo tempo, enquanto os salários dos trabalhadores e trabalhadoras da educação segue com defasagem de mais de 33%, a SMED segue intensificando a precarização. Entre professores o número de contratados é imenso, enquanto ainda há concursados para serem chamados. A Prefeitura também se movimenta para ampliar a atuação de uma empresa que contrata “agentes educacionais” para auxiliar alunos com deficiência, trabalhando em condições precárias, com salários baixos, baixíssima formação no geral, o que provoca alta rotatividade entre trabalhadores que deveriam criar vínculos com crianças e adolescentes que precisam de vínculos maiores, de maior duração. Há inclusive o desejo de contratação de professores por essa empresa, o que drasticamente levará o sucateamento e a precarização a níveis nunca vistos antes na rede.
Quanto às creches, há um déficit de mais de 3.000 vagas, o que significa que um enorme número de famílias não consegue lugar para seus filhos enquanto trabalham, dificultando a vida sobretudo para mulheres que não conseguem trabalhar e gerar renda para suas famílias.
Thiago: Meu nome é Thiago, sou professor de História e trabalho na zona leste, Lomba do Pinheiro e zona norte, Santa Rosa de Lima, grande Sarandi.
Em ambas comunidades se enfrenta grande negligência do poder público em termos de serviços públicos, infraestrutura de saneamento básico, coleta de lixo, logística de transporte, etc. Todas situações que afetam diretamente a vida das comunidades. Em ambos os bairros as comunidades têm sofrido com falta de água de maneira recorrente. O Sarandi ainda lidando com os efeitos da enchente e a negligência criminosa do poder público no que se refere às obras de contenção para novos episódios de catástrofe climática.
Nas escolas não é diferente. Em termos de infraestrutura, as escolas sofrem com contingenciamento de verbas, condições precárias em vários aspectos, como banheiros, rede de esgoto, falta de água, calor nas salas de aula, ausência de ventiladores, cortinas… ar condicionado é um sonho distante, muito distante. Pois sequer rede elétrica que suporte esses aparelhos existe. Nas escolas lidamos constantemente com as consequências do descaso e da ausência de condições para lidar com diferentes demandas que literalmente desaguam sobre os profissionais da educação. Faltam monitores para atendimento adequado para estudantes com deficiência ou atípicos. As direções acossadas batalham com falta de professores, falta de luz, falta de água, calor, violências… e o que importa para o Secretário de Educação e para o prefeito são os índices e indicadores distorcidos, que culpam professores pelo fracasso do modelo que eles próprios nutrem e impõem, através de uma agenda que atua contra os interesses da população periférica e a favor dos setores que exploram a cidade e sua gente.
REPOP: Como ficaram os serviços públicos e as escolas de Porto Alegre depois do trauma da grande enchente de maio de 2024? Como tem se conectado a pauta sindical com as demandas das comunidades populares que sofrem com a privatização de bens da cidade e o desmonte dos serviços públicos?
Thiago: Infelizmente o cenário é desolador, não só a enchente, mas as diferentes violações de direitos da população têm criado um caldo de ressentimento que transborda em diferentes direções. Não raro em mais violências dentro das próprias comunidades… Em vários casos essas populações estão largadas à própria sorte na lida pela sobrevivência em meio à miséria de tudo. A pauta sindical tem buscado encontrar espaço para atuar nas demandas comunitárias, mas ainda ficando muito restrita às pautas corporativas da categoria. Alguns projetos das escolas têm sido criados para levar a efeito uma relação mais próxima com as comunidades escolares, para encontrar espaço de reconhecimento e diálogo pra dentro das comunidades de maneira mais ampla. No sentido do avanço dessa relação entre as pautas sindicais e a necessidade de enfrentar o desmonte dos serviços públicos nas comunidades, há um movimento de greve que vem ganhado adesão da categoria e apoio das comunidades, justamente por relacionar pautas quando envolvem a vida de todos, servidores e moradores.
Leonardo: Ainda há muitas escolas e outros equipamentos públicos em reconstrução. As aulas, em algumas escolas que foram atingidas severamente pela enchente, começaram mesmo sem estarem preparadas para isso. Há ainda escolas com banheiro químico. Duas das escolas atingidas tiveram suas direções removidas e pelo menos na EMEF Migrantes, no bairro São João, a motivação está relacionada a denúncias públicas feitas pela direção, que tratavam das péssimas condições que estava a escola na véspera do ano letivo.
Outra questão muito séria é o repasse de parte da reconstrução das escolas para grupos privados como o Instituto Cultural Floresta, entre outras. Há ainda muitas dúvidas sobre o fluxo do dinheiro usado nessa reconstrução, o que deveria ser tratado com transparência pelas instituições públicas. Mas esse não parece ser o forte deste governo.
REPOP: Sabemos que o sindicato (SIMPA) chamou uma paralisação de 24h no passado dia 20 de março e que teve boa participação da categoria nessa medida de luta. Contudo, segue a peleia e ao que tudo indica o governo de Porto Alegre segue dando poucos ouvidos ao que se reivindica. No dia 23, a assembleia geral dos municipários tomou decisão de greve a partir do 1º de abril. O que podemos esperar dessa luta nos próximos dias?
Leonardo: O governo Melo tem dado pouquíssima atenção aos educadores e servidores públicos em geral. Ao contrário; ele faz pouco caso da situação desses trabalhadores, e com isso revela seu descaso com os serviços públicos no município. Já são mais de 33% de defasagem salarial; são muitos trabalhadores adoecendo; e ele prefere terceirizar, contratar empresas privadas para gerir os serviços públicos em todos os níveis.
Vejamos o caso do Escritório da Reconstrução. O número de CCs, pessoas contratadas para organizar a reconstrução das áreas atingidas, é enorme, e o que foi realizado até aqui? Quanto recebem esses CCs e para fazerem o quê? Há muitas questões a respeito disso e vemos Porto Alegre alagar em qualquer chuva muito menor do que aquelas de 2024.
Enquanto os gastos com empresas privadas e CCs crescem, o ataque aos serviços públicos seguem na mesma proporção. Nas escolas, há muita insatisfação com relação à precarização, às péssimas condições de trabalho, ao ambiente completamente inadequado, ao aumento das temperaturas, aos violentos ataques impostos às escolas e à rede municipal de ensino. A tendência é o clima esquentar.
Thiago: É isso, um movimento que vem numa crescente, muito devido ao quadro de desmonte e de ataques que tentamos descrever brevemente nas perguntas anteriores. O dia 20/03 foi um marco na retomada dos grandes atos de rua promovidos pelos municipários de Porto Alegre. A força de uma pedagogia das ruas se fez presente no imaginário e nas ações diretas de corte de ruas e denúncia dos ataques do prefeito e do seu secretariado, atulhados de inimigos do povo, sanguessugas dos recursos e militantes da causa dos grandes empresários que se pretendem donos da cidade. O que se espera é um movimento crescente de adesão da categoria e uma agenda de manifestações públicas nos espaços da gestão e nos locais de trabalho. No dia 02/04 uma nova assembleia deve avaliar e definir os próximos passos. A determinação é lutar e fazer que o poder público respeite a cidade, servidores, moradores, toda gente. Tomar de volta a cidade, devolver a dignidade para o povo. Esse é o sentimento que deveria mover todos os esforços de uma greve que é por direitos para toda gente.
REPOP: Que mensagem podem deixar pra toda a família trabalhadora de outros setores e ocupações, pras comunidades da periferia, pro povo que é usuário dos serviços públicos nessa hora de greve?
Thiago: A mensagem é que essa é uma luta dos municipários, mas que para além das pautas corporativas, quer devolver a qualidade dos serviços públicos para a população, quer fazer recuar os inimigos do povo e devolver o que é público para a cidade, tirar a sanha do capital especulativo de cima do que é nosso… Nessa hora, nessa luta, toda manifestação de apoio é bem-vinda e faz cada vez mais dessa luta uma luta da cidade contra os ataques e destruição do patrimônio público. Não tá morto quem luta e quem peleia! Vamos pra cima!
Leonardo: A grande maioria da população sabe da situação das escolas, dos educadores, de quem trabalha na educação e nos serviços públicos. É urgente somar nessa luta em defesa dos serviços públicos, dos trabalhadores e da cidade de Porto Alegre, atualmente sob ataque severo de quem está por trás do governo de turno.