[PARTE 2] Como a reforma da previdência ataca direitos de trabalhadores/as e beneficia o mercado de capitais.

Em fevereiro do ano passado escrevi no Repórter Popular sobre a proposta de Reforma da Previdência do então Governo Temer. A votação da Reforma da Previdência foi suspensa temporariamente em virtude do decreto de Intervenção Federal no Rio de Janeiro. Um ano depois, a pauta retornou imersa num projeto de Governo neoliberal. Precisamente no dia 20 de fevereiro de 2019, Jair Bolsonaro e Paulo Guedes entregaram à Câmara nova proposta de Reforma da Previdência visando a cumprir sua tarefa maior perante o mercado: o arrocho nos direitos sociais e a capitalização do fundo previdenciário.

Dessa forma, torno a escrever sobre Reforma da Previdência, aproveitando linhas e ideias do meu texto anterior, mas revisando e adicionando os novos elementos da proposta e do Governo Bolsonaro. O texto está sendo publicado em duas partes: a primeira parte contextualizando a proposta de Guedes e desnudando o seu objetivo (https://reporterpopular.com.br/parte-1-como-a-reforma-da-previdencia-ataca-direitos-de-trabalhadores-as-e-beneficia-o-mercado-de-capitais/) e a segunda, que segue agora, parte trazendo aspectos práticos de aplicação da reforma em nossas vidas.

  1. Como vai ficar a nossa aposentadoria?

a) Tempo mínimo de Contribuição:

Para se aposentar atualmente é necessário comprovar 15 anos no mínimo de contribuição previdenciária ou comprovar atividade rural durante o mesmo tempo: 15 anos. Com a reforma, o tempo mínimo de contribuição passa a ser 20 anos. O texto proposto também acaba com a possibilidade de aposentadoria por tempo de contribuição, independente de idade, que existe hoje para mulheres que completaram 30 anos recolhendopara o INSS e homens que atingem 35 anos.

b) Idade:
Atualmente, o homem trabalhador urbano que não é segurado especial pode se aposentar
a partir de 65 anos. A mulher trabalhadora urbana que não é segurada especial pode se aposentar com 60 anos. Essa diferença de idades leva em consideração a tripla jornada de trabalho a qual historicamente nós, mulheres, somos submetidas: trabalho doméstico, cuidado com as crianças e trabalho externo. Vivemos em uma sociedade que nos exige trabalhar mais e muitas vezes nos paga menos pelos mesmos serviços.

Aposentar-se 05 (cinco) anos mais cedo não é privilégio para mulher, como ouvimos cotidianamente as propagandas desse governo ajoelhado ao patriarcado. Com a Reforma da Previdência homens continuarão a se aposentar com 65 anos e mulheres passarão a se aposentar com 62 anos. Com a
mudança, homens passariam a trabalhar em média 12 anos a mais, e as mulheres 17 anos a mais para
conseguirem se aposentar.

c) Trabalhadores/as rurais, indígenas, pescadores, marisqueiras, garimpeiros.

A Lei 8.213, de 1991, que trata dos planos de benefício da Previdência Social, afirma que o trabalhador rural pode se aposentar comprovando o “efetivo exercício de atividade rural” por 15 anos, sem necessariamente contribuir por todo esse tempo. Essa contribuição era comprovada usualmente por declarações de sindicato e associações de trabalhadores rurais, espaços organizativos e de atuação social também. Mas a medida provisória 871, de 18 de janeiro, transfere dos sindicatos para as prefeituras a comprovação do tempo trabalhado no campo, criando um Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) para segurados rurais. Com o fim da Declaração de Atividade Rural emitida pelos sindicatos, a aposentadoria também deverá ser homologada por uma Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), credenciada no Plano Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural.

Se essa medida provisória se consolidar, será complicado manter a independência política de sindicato e associações rurais, pois ela retira do sindicato a legitimidade para representar trabalhadores rurais além de colocar a declaração de atividade rural como moeda de troca nas prefeituras, fortalecendo o coronelismo. Com a nova proposta de Reforma da Previdência, no entanto, sequer a declaração de
atividade rural será suficiente para aposentadoria. Segurados especiais terão que contribuir por 20 anos e as famílias (grupo familiar) terão de contribuir com, no mínimo, R$ 600,00 ao ano, mesmo se não produzirem e, portanto, não venderem nada, no período.

A idade mínima para trabalhadoras rurais aumentou de 55 para 60 anos e será necessário 20 anos de efetiva contribuição para aposentadoria especial, o que na prática significa não só retardar, mas impedir o povo do campo de acessar a previdência social.

d) Professores

Até o momento, professores de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio e cargos que se expõem a agentes nocivos à saúde têm direito à chamada aposentadoria especial. Essa separação decorre do fato de tais profissionais estarem expostos a trabalhos mais desgastantes ou arriscados.

Docentes da iniciativa privada não têm um piso etário, apenas a exigência de tempo de contribuição de 25 anos para mulheres e de 30 para homens. Para docentes que atuam no serviço público, é exigida uma idade de 50 anos (mulheres) e 55 (homens).

Com a proposta de Reforma da Previdência, docentes da iniciativa privada passam a ter idade mínima de 60 anos para aposentadoria e um tempo de contribuição de 30 anos. Docentes de iniciativa pública passam a ter idade mínima também de 60 anos e 30 anos de contribuição para ambos, além de 10 anos de serviço público e pelo menos 5 anos no cargo.

e) Regras de transição

Estão previstas três regras de transição diferentes para quem pretendia se aposentar por tempo de contribuição pelo INSS no ano de início de vigência da Reforma. O texto da proposta é confuso e, acredito, propositadamente. Ao fim e ao cabo o objetivo da Reforma é tornar mais distante o tempo em que os trabalhadores poderiam se aposentar e tornar menor o valor que receberiam. Vamos analisar.

A primeira regra é um sistema de pontuação que soma a idade ao tempo de contribuição do segurado. Esse total deve ser de 86 para mulheres e 96 para homens em 2019 e sobe gradativamente até 2033, quando chega a 100 pontos para mulheres e 105 para os homens. Subir gradativamente significa trabalhar mais tempo e contribuir mais.

A segunda regra para quem já completou o tempo de contribuição fixa uma idade mínima preestabelecida. Esse piso etário sobe seis meses a cada ano: começa em 56 anos para mulheres e 61 anos para homens e vai até os 65 e 62 anos. Ou seja: o trabalhador/a já completou o tempo de contribuição exigido, mas mesmo assim terá que trabalhar mais.

A terceira regra é para quem está a dois anos de cumprir o tempo de contribuição mínimo para a aposentadoria, segundo a regra atual, que é de 30 anos (mulher) e 35 anos (homem). Esses/as trabalhadores/as poderão optar pela aposentadoria sem idade mínima (já que já completarão o
tempo de contribuição exigido), mas será aplicado o fator previdenciário*, além de um “pedágio” de 50% do tempo que falta.

Para quem pretendia se aposentar por idade mínima pelo INSS, a transição segue apenas
uma regra: a idade das mulheres sobe de forma gradual (6 meses a cada ano) dos atuais 60 anos até chegar a 62 anos em 2023. O tempo mínimo de contribuição, para homens e mulheres, também sobe 6 meses a cada ano: vai dos atuais 15 anos em 2019 até 20 anos em 2029.

2. Como fica o direito à pensão por morte?

A proposta de Temer estabelecia uma cota de 50% da média das remunerações do falecido para a família, mais um acréscimo de 10% por dependente. Bolsonaro iguala as regras para o serviço público e privado. O benefício passa a ser de 60% do valor que o segurado recebia ou teria direito se fosse aposentado, com mais 10% por dependente adicional, até atingir o limite de 100%. A mudança é mais dura com os beneficiários do Regime Próprio, que hoje recebem 100% do benefício até o teto do INSS mais 70% do que superar esse teto.

3. O que é Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS) e como ficará com a Reforma?

O Benefício de Prestação Continuada é destinado a idosos/as e pessoas com deficiência, impossibilitadas de trabalhar e que não tenham outra fonte de renda para sobreviver. É um benefício para pessoas em situação de miserabilidade.

A proposta de reforma da Previdência de Bolsonaro antecipa a idade de benefício para idosos pobres, em contrapartida reduz significativamente os valores iniciais pagos. Hoje, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) é pago a partir de 65 anos, mas com a proposta passa a 60 anos. O valor atual é de um salário-mínimo e passaria a R$ 400 a quem tem 60 anos, chegando ao valor do salário-mínimo somente para quem tiver 70 anos.

Além disso, a proposta visa a dificultar um processo que já é por demais burocrático para comprovar a renda do beneficiário.

4. O caso de servidores públicos

Como já escrevi: a Reforma acaba com a aposentadoria por tempo de contribuição. Não será mais possível, como hoje, aposentar-se apenas por tempo de contribuição sendo necessários 30 anos de contribuição (mulher) ou 35 (homem), com dez anos de serviço público e cinco no cargo, além de idade mínima de 55 anos (mulher) e 60 (homem).

A proposta de reforma da previdência do Governo Bolsonaro modifica a idade de contribuição de servidores públicos. Atualmente, é 60 anos para mulheres e 65 para homens e são exigidos dez anos de serviço público, sendo pelo menos cinco anos no cargo. Com a aprovação da reforma, passará a ser 62 anos para mulheres e 65 anos para homens, com 25 anos de contribuição, sendo, pelo menos, dez anos de serviço público e cinco no cargo.

A regra de transição do Regime Próprio de Previdência (RPPS) também prevê um sistema de pontuação com idade e tempo de contribuição que vai de 2019 a 2033. Para as mulheres, a soma de idade e tempo de contribuição sobe gradativamente de 86 em 2019 para 100 em 2033, enquanto, para os homens, os pontos evoluem de 96 em 2019 a 105 em 2028. Ou seja: a tendência é que trabalhemos cada vez mais tempo enquanto a aposentadoria se afasta cada vez mais.

5. Outros aspectos importantes no texto da Reforma.

Além destes aspectos práticos, a Emenda Constitucional apresenta a proposta, já tratada na Parte 01 do texto, do sistema de capitalização, inspirado na desastrosa previdência social do Chile e busca acabar com a perspectiva solidária de previdência da qual tratei no início do texto. Aquela perspectiva em que todos contribuem solidariamente para garantir as aposentadorias e benefícios de agora e as do futuro.

A ideia da capitalização é apresentada como uma simples proposta de individualizar a aposentadoria através do depósito em uma poupança individual que contribuirá todo mês com um valor fixo, sem ter certeza de quanto receberá no futuro. Na prática, isso significa injetar generosa dose de capital nos bancos, entregando o dinheiro das contribuições dos trabalhadores à iniciativa privada.

Além disso, segunda a proposta apresentada por Bolsonaro, a partir de janeiro de 2024, haverá um
ajuste da idade mínima a cada 4 anos para todos os trabalhadores. Esse aumento ocorrerá de acordo com a expectativa de vida do nosso povo a partir dos 65 anos. Isso significa que quando aumentar o tempo esperado de vida dos idosos, subirá também a idade em que eles vão poder se aposentar, numa proporção de 75%. É literalmente trabalhar até morrer.

É destruidor os efeitos que essa reforma vai causar em nossas vidas e representa a consolidação de um governo neoliberal e de arrocho dos nossos direitos sociais. É preciso fortalecer a paralisação nacional e construir uma greve geral desde a base que não se curva a negociações que barganham nossos direitos e só se encerra com a retirada de pauta da Reforma.

Ficou com dúvidas? Consulta a calculadora de aposentadoria no Repórter Popular: https://reporterpopular.com.br/calculadora/.

Melka Barros é advogada, militante de Direitos Humanos e da luta pelos territórios de povos tradicionais no Ceará e escreve nesta coluna quinzenal com análises de fôlego sobre política, direito e conjuntura no Brasil.

 

Fontes:
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Paulo, v. 18, n. 3, p. 33-40, Setembro de 2004. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0102-88392004000300004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 Mai 2019.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc20.htm>. Acesso em: 15 mai. 2019.
______. Emenda Constitucional no 41, de 19 de dezembro de 2003. Modifica os arts. 37, 40, 42, 48, 96,
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dispositivos da Emenda Constitucional no 20, de 15 de dezembro de 1998, e dá outras providências.
Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc41.htm>. Acesso
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______. Lei no 12.654, de 28 de maio de 2012. Institui o regime de previdência complementar para os
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fixa o limite máximo para a concessão de aposentadorias e pensões pelo regime de previdência de que
trata o art. 40 da Constituição Federal; autoriza a criação de 3 (três) entidades fechadas de previdência
complementar, denominadas Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do
Poder Executivo (Funpresp-Exe), Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal
do Poder Legislativo (Funpresp-Leg) e Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público
Federal do Poder Judiciário (Funpresp-Jud); altera dispositivos da Lei no 10.887, de 18 de junho de 2004;
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