Artigo de opinião por Ricardo Flores Barreto[1]
A arte de rua sempre esteve nos cotidianos das cidades. Desde muito antes do surgimento dos grandes conglomerados urbanos que conhecemos hoje, os locais comuns e de grande circulação, como mercados, praças e templos religiosos, contavam com a presença de músicos, dançarinos, ilusionistas e contadores de histórias que impressionavam as multidões em troca do famoso “passar o chapéu”.
Com o crescimento urbano desenfreado que o mundo presenciou especialmente nos últimos séculos, as artes de rua também se multiplicaram e, hoje, seguem fazendo parte do cotidiano das cidades em suas diversas manifestações, como a música, as artes circenses, os grafites, as rodas de rima, o slam, dentre inúmeras.
A realidade atual dos artistas de rua não é algo a se romantizar. Se, por um lado, há sempre alegria por parte dos transeuntes de presenciar um músico em uma esquina no meio do caos das selvas de pedra; por outro, o caminho que levou aquele artista a essa situação por vezes não é tão belo quanto a sua arte.
Muitas vezes pode ter sido pelo desemprego ou por falta de oportunidades que um artista acaba tendo que se aventurar nas performances de rua para garantir sua própria sobrevivência, por vezes enfrentando condições precárias de trabalho, como é o caso de grande parte dos malabaristas e acrobatas de trânsito. Além disso, a falta de políticas públicas de incentivo à arte e à cultura, bem como os baixos salários e cachês, também contribuem para a precarização das categorias artísticas, o que se agravou exponencialmente com a pandemia[2], levando muitos artistas a acabarem se apresentando nas ruas também em busca da própria sobrevivência.
Não é por acaso que, como é perceptível no cotidiano das cidades, o número de artistas de rua vem crescendo tanto no Brasil nos últimos anos, marcados justamente pela precarização e pelo aprofundar da crise e dos ataques contra os direitos do povo, bem como pelos cortes de investimentos em cultura.
Dada essa difícil situação, é mais do que nunca necessária a solidariedade, o apoio-mútuo e o acolhimento aos artistas de rua, que vêm enfrentando corajosamente a precarização e, ainda assim, tornam os cotidianos conturbados das grandes cidades tão mais agradáveis e ricos.
É com todas essas questões em mente que os artistas de rua se mobilizam Brasil afora pela garantia de seus direitos e da dignidade de seu trabalho, especialmente frente à repressão que frequentemente sofrem das forças de segurança pública e privada. No Rio de Janeiro, essa luta resultou na aprovação da Lei Estadual nº 8.120/2018, que expressamente garantiu a possibilidade de apresentações artísticas em estações e composições de transportes públicos, como trens, barcas e metrôs.
Foi ainda cedo, contudo, para se comemorar. Dentre os dois únicos deputados estaduais que votaram contra o projeto, consta um dos nefastos filhos do igualmente nefasto atual presidente da república, Flávio Bolsonaro, que não satisfeito em ter perdido a votação na Assembleia Legislativa, propôs ação judicial contra a lei, que foi declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.[3] Atualmente, o caso está em análise no Supremo Tribunal Federal, com o ministro Luís Roberto Barroso como relator do caso.[4]
Não é nada surpreendente que alguém como Flávio Bolsonaro seja desprezível ao ponto de não saber reconhecer o valor das artes de rua ao ponto de querer proibi-las, e de também não ter qualquer sensibilidade com a realidade difícil que os artistas de rua passam ao ponto de querer dificultar ainda mais seus trabalhos.
O que causou espanto, contudo, é que uma lei aprovada em assembleia legislativa, após longo debate com a sociedade civil e deixando inclusive abertura para a devida regulamentação por parte do Poder Executivo e dos órgãos técnicos reguladores competentes, tenha sido julgada inconstitucional de forma tão rasa e tosca como o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro o fez.
Em seu acórdão, aprovado pela maioria do plenário do TJRJ, o relator desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes não citou um único trecho sequer da Constituição da República no sentido de defender sua conclusão de inconstitucionalidade. Pelo contrário, muito ironicamente, o único dispositivo constitucional transcrito na decisão é justamente o artigo 5º, inciso IX, da Constituição, que garante a liberdade artística independente de qualquer licença.[5] Para defender a disparatada tese de inconstitucionalidade das manifestações artísticas nos transportes, o relator teve que recorrer a um verdadeiro malabarismo argumentativo em nome de suposta “proporcionalidade” e “razoabilidade” da lei, por ela supostamente ferir o “sossego”, o “bem-estar” e a “segurança” de terceiros.
Não obstante, o Tribunal também julgou inconstitucional a lei com base em afirmações completamente delirantes e preconceituosas, de que os artistas seriam na verdade “pessoas desempregadas (…) realizando qualquer tipo de performance, constrange[ndo] os usuários dos serviços prestados pelas concessionárias a lhes darem dinheiro”, praticando “doutrinação política e ideológica, causando constrangimentos aos usuários que não comungam de tal ou qual ideologia, os quais se vêem tolhidos e impedidos de exprimir sua insatisfação, pena de serem rechaçados por uma minoria que, muitas das vezes, demagogicamente, aplaudem às ‘apresentações artísticas’.” Enfim, nada mais fora da realidade, como é típico de uma casta judiciária que definitivamente não utiliza o transporte público por preferirem seus carros oficiais e motoristas pagos com o dinheiro do povo.
Delírios elitistas à parte, a declaração de inconstitucionalidade de uma lei regulamentando apresentações artísticas nos transportes públicos é, mesmo juridicamente, ridícula. A intenção do Poder Legislativo em editar a referida lei foi justamente a de promover e incentivar a cultura, como é dever do Estado por mandamento da própria Constituição, em seu art. 215,[6] não cabendo qualquer controle por parte do Poder Judiciário quanto à conveniência da norma ou não, por se tratar de opção de política pública, conquistada, lembre-se, através da pressão e da luta popular. Trata-se, portanto, de uma clara intervenção política do Judiciário em outro poder, evidenciando mais uma vez que quando se trata de atacar o povo e de garantir os interesses das elites, não há separação de poderes a se respeitar.
“É o espectador, e não a vida, que a Arte realmente reflete”, como já escrevia Oscar Wilde,[7] escritor irlandês perseguido e censurado na Inglaterra no começo do século XX por ser homossexual. A frase se aplica perfeitamente aos artistas de rua nos transportes: frente ao cotidiano caótico dos centros urbanos e suas inúmeras contradições sociais, a pacatez dos transportes públicos e de seus passageiros “indo pra algum lugar, trabalhar, estudar, passear, roubar, sei lá”[8] mais do que nunca deve ser provocado pelas intervenções artísticas, seja por meio da poesia rítmica ou de passinhos de hip-hop de jovens periféricos, de um tango argentino de Carlos Gardel tocado por algum violinista desempregado, ou mesmo pela inusitada cena do Homem-aranha rebolando em um vagão de metrô ao som de Anitta.[9] Enfim, apenas o condizente com a efervescência cultural das cidades.
Embora a lei estadual que regulamentou as manifestações artísticas nos transportes públicos surtisse efeitos apenas no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, o tema ter chegado no Supremo Tribunal Federal faz com que o caso possa afetar o Brasil inteiro. Isto porque, seja qual for a conclusão em que a Suprema Corte chegar, pela constitucionalidade ou pela inconstitucionalidade das apresentações artísticas, o caso passará a servir como precedente em todo o país.
Assim, caso se julgue pela constitucionalidade da lei estadual fluminense, não só ela voltará à vigência, como leis semelhantes poderão ser aprovadas por outros estados sem semelhantes questionamentos de inconstitucionalidade. Caso, contudo, o STF considere a lei inconstitucional, quaisquer leis no mesmo sentido que forem editadas serão igualmente anuladas pelo judiciário.
Eis a importância do tema e, consequentemente, da continuidade da luta popular que resultou na aprovação da Lei Estadual nº 8.120/2018, de modo que também se pressione para que o STF retome a sua vigência. Lembre-se sempre que não se pode contar com a boa vontade de governantes ou juízes para fazer valer os nossos direitos, mas apenas a mobilização popular e a organização pela base nos trará qualquer vitória.
[1] Ricardo Flores Barreto é graduando em direito e militante do Movimento de Organização de Base do Rio de Janeiro (MOB-RJ)
[2] Confira-se, por exemplo, matéria daqui do Repórter Popular sobre a luta da categoria dos músicos para sobreviver durante a pandemia: https://reporterpopular.com.br/a-musica-ajuda-a-viver-a-luta-de-uma-categoria-e-seu-sindicato-para-sobreviver/
[3] Ação de Inconstitucionalidade nº 0055833-71.2018.8.19.0000
[4] Recurso Extraordinário nº 1.295.018 / RJ
[5] Art. 5º. (…) IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
[6] Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
[7] Oscar Wilde. O retrato de Dorian Gray. Prefácio.
[8] Racionais MCs. A vítima.
[9] https://www.youtube.com/watch?v=qhvr5avRB4M
* Foto de destaque: Coletivo Hip Hop no Vagão
Revisão: Melka Barros