Em meio a distintas formas de luta contra o agronegócio construídas no país, recentemente entramos em contato uma iniciativa chamada Teia dos Povos (clique aqui para visitar o site) com atuação na região Nordeste brasileira. Criada a partir dos acúmulos da I Jornada de Agroecologia da Bahia (2012) a Teia do Povos é uma rede com papel de traçar agendas de ações anuais no fortalecimento das comunidades e elos que a integram. Buscam fortalecer a luta pela terra a partir da organização de base pela agroecologia, recuperação de sementes crioulas e desenvolvimento de alternativas energéticas com foco na autonomia territorial. Nós do Repórter Popular realizamos, então, uma entrevista com Erahsto Felício, da divisão de comunicação da Teia, para conhecermos mais sobre o trabalho desenvolvido e também as perspectivas dessa articulação pelo qual nutrimos grande simpatia.
Vamos a ela.
– A Teia fala de questões como “autonomia territorial” e “territórios autônomos”. O que vocês entendem como “território” e “comunidade”? E como construir esta autonomia territorial? A agroecologia tem papel importante nesse processo?
Nosso país, até 40 anos atrás, não teria dificuldade de entender o sentido de comunidade. Este sentido está se perdendo em ritmo acelerado com a profusão das ideologias neoliberais que nos tem atacado. Então, há pouco tempo todos viviam em algum tipo de comunidade, podia ser uma vila, um bairro, uma aldeia indígena, um acampamento cigano, até mesmo bairros e regiões de bairros possuíam uma dinâmica de comunidade, ou seja, de reconhecimento mútuo e sentimento de pertença ao coletivo. Nós estamos vivendo uma degradação desta forma de sociabilidade com a inculcação dos valores individuais e individualistas no seio dos coletivos. E é daí, da resistência das comunidades, que queremos pensar o aspecto do território. Mestre Joelson Ferreira (camponês do assentamento Terra Vista do MST) fala que o problema do MST era ir até a cerca. Ou seja, ocupava, conseguia a posse da terra, produzia, e agora? Para além de produzir uma unidade produtiva de forma coletiva era preciso pensar o território, ou seja, as nascentes, o bioma, a vizinhança, como a vida flui naquele rincão e organizar o povo, portanto, em torno dos símbolos e significados daquela terra. É preciso ter um sonho plenamente vivo de organização da terra e de transformação da terra num lugar nosso que tenha papel na transformação do mundo, isto é território. E a autonomia é fundamental para garantir que as mudanças de governo e de desígnios do capital não nos tire o que conquistamos. Por isto, é preciso cuidar da água da chuva, da semente crioula, da captura da energia até da criação de nossas próprias escolas que são Escolas dos Povos, com nossas características. E não há dúvida alguma da importância da agroecologia, pois é ela que harmoniza a relação das necessidades de produção e geração de riqueza com o cuidado do bioma, da terra, da vida em sua abundância. Sem agroecologia a sustentabilidade do projeto revolucionário sucumbe com a degradação do solo e a destruição das águas.
– A Teia dos Povos está na Bahia e possui uma irmã, Teia dos Povos Tradicionais do Maranhão, ambas no nordeste brasileiro, mas já existe algumas iniciativas, elos e núcleos em outros estados do país. Quais seriam os principais conflitos e lutas que as comunidades que integram a Teia vivenciam? E na região do Nordeste, quais seriam as principais ameaças e ataques que as comunidades vem sofrendo?
Hoje as principais ameaças estão ligadas com grandes projetos ou mega empreendimentos, como os de cima gostam de chamar. Então, há comunidades do Povo de Fundo e Fecho de Pasto sendo atacados por mineração e usinas eólicas no norte da Bahia, quilombolas sofrendo com a tomada de terras por linhas de transmissão que vai de Sergipe ao Recôncavo da Bahia, poluição e destruição ambiental nas áreas pesqueiras de todo o litoral (desde antes do crime do petróleo nas praias), há grilagem de terras e empreendimentos de “desenvolvimento” retirando comunidades quilombolas no Maranhão e uma guerra com assassinatos de indígenas naquele mesmo Estado. Nós irmanamos com muita gente de luta e vimos neste ano uma lista de ameaça de morte dos Pankararu em Pernambuco, naquele mesmo estado um incêndio de escola indígena Pankaruru, incêndio de casas de Gamela no Piauí. Nós estamos diante de uma guerra por terra que sempre ocorreu, mas agora com a alta do dólar, com a crise de alimentos mundial, há mais ataques para minerar e para transformar nossos territórios em pastagens de gados e outras produções do agronegócio.
– Recentemente, em alguns países como Equador e Chile, assistimos massivos processos de mobilização e revolta popular, tendo grande protagonismo de comunidades indígenas, como no Equador. No Chile e Argentina os Mapuche também já vem por um longo processo de lutas. Como a Teia entende o papel das comunidades indígenas, quilombolas, os negros e negras nas periferias e favelas nos processos de luta no contexto brasileiro?
Nós nos reunimos a cada dois anos numa jornada de agroecologia. E ao fim de cada encontro nós escrevemos uma carta. Desde 2017 estamos falando da construção de uma grande aliança preta, indígena e popular porque entendemos que apenas a federação, a unidade, dos povos pode enfrentar o latifúndio que é o mais longevo e poderoso inimigo das pessoas pobres deste país. Então, em 2018 nós começamos a avançar para consolidar melhor a relação campo-cidade que em nossa articulação não era tão forte. Fomos à grande cidade conversar com os sem teto e com os quilombistas maloqueiros de quebrada. E fizemos uma aliança com o MSTB (Movimento Sem Teto da Bahia) onde construímos junto com o MPA uma cisterna na ocupação Manuel Faustino para que eles não precisasem ficar atravessando o asfalto, em tempo de ser atropelados, para pegar água. E fizemos uma horta bonita, Horta África Livre, na comunidade da Reaja Ou Será Morto, Reaja Ou Será Morta. Reafirmamos nossa aliança e temos ampliado isto Bahia a fora. Agora veja, esta não é uma conversa nova, qualquer militante da velha guarda sabe que a estratégia de luta para avançar numa revolução no país é a aliança urbano-rural, campo-cidade. Agora a gente precisa se perguntar:o que ocorreu com essa prioridade? Ou melhor, por que esta aliança não avança? Então, o que expressamos nas nossas últimas duas cartas é a necesidade de construir esta aliança para enfrentar o racismo e o capitalismo e todas as opressões sistêmicas, é o que estamos fazendo. Mas, nós somos pequenos em nossa caminhada e precisamos de irmãs e irmãos para concretizar essa esperança de dias melhores.
– Vocês acham que a esquerda, de modo geral, consegue dialogar com lutas, sujeitos e comunidades como quilombolas, indígenas, tradicionais? Se não, quais seriam as maiores dificuldades?
Os movimentos sociais que surgem das comunidades, povos e territórios quase sempre são de esquerda. Então, de alguma forma o movimento indígena é de esquerda, o quilombola também e assim por diante. O problema, portanto, não é na natureza da esquerda que é inclusiva, diversa e olha para baixo. O problema nos parece em cima, nos quadros dirigentes das organizações, numa postura arrogante e soberba de querer dirigir a luta de povos que possuem suas próprias lideranças e formas de organização próprias. Há um eurocentrismo e um racismo presente em parte da esquerda institucional e nestas organizações ditas radicais. O afastamento que parte destas organizações tiveram das bases também não as ajuda a reconhecer as formas de organização e luta dos povos, que é diferente, que possui especificidades da própria formação de cada povo. Esta diferença não atrapalha na unidade se aprendemos a conhecê-la. Pelo contrário, vira uma vantagem pois temos formas e habilidade políticas distintas aqui e acolá. Porém, há um descolamento de parte da esquerda na luta dos povos. Há companheiros – sobretudo homens – que seguem explicando demais como devem lutar, que não param com simpósios, colóquios, seminários de teorias, mas com pouca contribuição da realidade concreta dos povos. Então, existe uma ocupação que precisa virar assentamento, existe um povo indígena na beira de estradas e precisa retomar seu território. A gente chega num momento em que discutir a dialética de Hegel ou alienação segundo Lukács fica em segundo plano diante da catástrofe que estamos vivendo. E isto não é uma revolta à teoria, é um chamamento para equilibrar a atenção dada aos estudos e a erudição com as necessidades urgentes das ruas, quebradas, roças e aldeias.
– A Teia se articula e dialoga com os movimentos e comunidades urbanas? Como a Teia entende esta relação entre as lutas do campo, florestas e da cidade?
Como dissemos, estamos fortalecendo esta relação nos últimos anos. Há um caminho muito bonito pela frente. E estamos aprendendo que há muita gente querendo lutar na cidade e sem orientação, sem saber como ajudar. A Divisão de Comunicação é basicamente composta por pessoas urbanas, algumas desterritorializadas, sem povo, sem território, em busca de algo. Então há muita tarefa para ser construída neste aspecto. No processo de começar a organização da Jornada de Agroecologia de 2019, nossa sexta, tivemos apoio, por exemplo, de um sindicato de professores federais (SINASEF) que entendendo a importância da relação com o campo, com o povo que luta, que enfrenta na concretude toda esse espírito reacionário há mais tempo. Então, nós seguimos acreditando nisto. Por outro lado, tem que desmistificar essa dicotomia tão grande entre campo e cidade. No sul da Bahia há uma luta bonita de pescadores e extrativistas da Resex de Canavieiras. A Reserva Extrativista toma quase todo litoral do município, qualquer dissociação entre campo e cidade ali precisa ser apenas didática, pois são estes pescadores que movimentam a receita daquele município, compra no comércio e etc. A vida das pessoas da cidade está, portanto, ligada a eles também. O peixe que se come na barraca de praia, quem pegou? Quando houve o derramamento de petróleo na costa nordestina, foram estes pescadores que limparam as praias do município com ajuda de voluntários. Nós podemos fazer uma dissociação agora que sabemos que a praia limpa e o ambiente menos contaminado foi feita em comunhão entre voluntários urbanos e pescadores e extrativistas? É apenas um exemplo pra dizer: há muito mais irmandade e proximidade nesta relação que podemos pensar. A Brigada Ojeffersson do MST doou mais de uma tonelada de alimentos para os companheiros da Reaja em Salvador. Viajaram mais de seis horas para alimentar o povo da quebrada e ajudar na luta no cárcere. Isso é nosso trabalho concreto.
Foto: Nádia Akauã Tupinambá, Jorge Rasta (Casa do Boneco de Itacaré), Mestre Lua e Hamilton Borges (Reaja), Sexta Jornada de Agroecologia da Bahia, Utinga-Ba 2019.
– Vocês identificam lutas e experiências de organização popular que estejam avançado e acumulando atualmente? Quais?
Sempre olhamos para as periferias como as grandes potências de luta para uma ruptura verdadeira com o capitalismo e com o racismo. As contradições encerradas ali nos dizem que é onde há verdadeiras capacidades de fazer avançar a luta. Porém, do ponto de vista organizacional, também são complicadas porque são territórios muitas vezes militarizados por grupos que não organizam a emancipação dos povos, sejam milicianos ou vendedores de drogas. Então sabemos das dificuldades reais em erguer uma organização desde ali. Mas, estamos vendo muito acúmulo, o surgimento de lideranças jovens muito fortes e comprometidas com a luta. O próprio assédio do capital e da branquitude apoiando parte destas lideranças mostra isto. Se essa gente chega para coptar ou para fragmentar a luta é porque, como nós, enxergam o tesouro que está ali. Agora, no Brasil de hoje, vemos que os povos indígenas possuem uma dianteira de organização, luta e rebeldia frente ao mau governo. São os que não saíram nenhum momento das ruas – por assim dizer – desde que o mau governo começou. Isto é radicalmente diferente do recuo dos sindicatos. Há ainda que destacar que entre o povo mais precarizado surgiu fagulhas de rebeldia. Estamos falando dos trabalhadores de aplicativos que fizeram demonstrações de força muito potentes neste ano. Porém ninguém há de duvidar da capacidade do movimento campesino brasileiro. Se hoje parece que não estamos vivendo uma jornada de lutas poderosas entre as organizações campesinas, não há dúvida que nestas é que estão o maior acúmulo de organicidade e capacidade de enfrentamento. Uma vez que a chama revolucionária voltar aquecer estes corações, as foices se amolam e uma luta grande pode ocorrer, sem dúvida.
– Tivemos 12 anos de governo do PT no Brasil. Que se seguiu por um processo que podemos entender como uma ruptura do capital com qualquer tipo de pacto social, que nos coloca em um ciclo de avanço do ultraliberalismo e da extrema direita com ataques ao povo pobre, principalmente negro, indígena e periférico. Qual seria o saldo desses 12 anos de governo PT e do campo democrático sobre os processos de organização e mobilização popular?
O PT é o maior partido de massas do país. Seus insucessos e fracassos são também os insucessos e fracassos de um massa gigantesca de trabalhadores que apostou neste caminho institucional. A reflexão que fazemos é menos sobre o partido e mais sobre a natureza da democracia brasileira. Muitos de nós votamos e ajudamos a eleger os governos petistas. Mas há democracia no país? É possível ter democracia com uma brutal desigualdade social? É possível ter democracia com a concentração fundiária que faz ter milhões lançados em periferias insalubres e um único homem possuir milhares de hectares de terra? Então, é preciso ter a definição correta de que o Estado-nacional ele é burguês na sua essência, na sua genética. Ele é fundado pela escravidão, então o racismo é um pilar que sustenta o Estado brasileiro. Sem entender isto podemos cair na ilusão de vitórias eleitorais que não vão conseguir emancipar os povos. Os militares, ao assumir o golpe, mostraram que não toleraram nem mesmo que o governo Dilma buscasse rever a história do regime ditatorial empresarial-militar de 1964. São serviçais do imperialismo estrangeiro que impede qualquer nacionalismo voltado aos interesses do povo mais pobre do país. Nós estamos falando de uma história reincidente. Agora, por que os povos não foram ao apoio do partido na hora do golpe? Por que o partido não convocou o povo à rua para fazer a defesa da prisão injusta de seu principal líder? Estas questões estão, aí sim, associadas à própria gestão desta nação burguesa. Nós temos que falar com clareza, a Usina de Belo Monte ataca os territórios dos Juruna e dos Araras e agora todos sabem que o projeto estava errado, que os indígenas e ambientalistas estavam certos. É preciso dizer, a PF e a Força Nacional atacaram o Território Tupinambá da Serra do Padeiro e transformaram aquelas matas no sul da Bahia em um inferno de perseguição indígena. A violência da Marinha no Quilombo Rio dos Macacos é inesquecível. Tudo isso faz o povo saber que campo deve defender – e seguir, por vezes, apoiando eleitoralmente -, mas não colocar seu corpo para defender um projeto eleitoral que lhe persegue. É isso que vamos ver em pouco tempo no Maranhão dada a violência contra povos tradicionais.
– Uma questão sobre a região onde está radicado alguns dos mais importantes trabalhos da Teia. A esquerda se refere muito ao chamado consórcio do nordeste, governos progressistas, e em uma resistência da região ao bolsonarismo, de acordo com os votos das últimas eleições. Como estão as políticas destes governadores para as comunidades indigenas, quilombolas, assentamentos, tradicionais?
Se você perguntar para alguém do Movimento de Pescadores e Pescadoras (MPP) como o governo petista lida com a questão das comunidades pesqueiras, você não vai ouvir flores, vai conhecer violações sistemáticas do meio ambiente, da saúde do povo das águas e etc. Na Bahia há uma clara aliança do governo com o latifúndio. As outorgas de água no Oeste Baiano fizeram comunidades atacarem uma fazenda do grupo Igarashi em 2017 porque simplesmente os ribeirinhos e comunidades tradicionais ali estavam ficando sem água morando ao lado do rio. Uma professora gritou na frente da polícia militar nessa oportunidade: “ninguém vai morrer de sede nas margens do (rio) Arrojado”. E é isso, tiveram que quebrar maquinários, dar um prejuízo de dezenas de milhões de reais para que o Estado lhes ouvissem quanto a seca dos rios pelo agronegócio. E esta é a regra nas outorgas de água, não há exceção. Nossa última Jornada de Agroecologia foi no coração das Terras Payayá na Chapada Diamantina, em Utinga. Ali o rio que dá nome ao município foi represado na nascente. É algo inacreditável. Isso para não falar da política de extermínio. Este ano fez cinco anos da chacina do Cabula em Salvador. A execução de 12 jovens pretos de uma comunidade periférica de Salvador fez o governador se solidarizar não às famílias das vítimas, mas aos policiais homicidas. Então a guerra racial ela ultrapassa o interesse apenas nas terras dos povos. As notícias que nos chegam do Maranhão são iguais e às vezes pior, com um uso de violência muito forte nas comunidades tradicionais. A situação do Quilombo Cajueiro, por exemplo, em Alcântara, deve ter ensinado muito sobre o quão longe vai a reflexão progressista na hora de colocar os interesses à frente da sua gente.
.
Foto: Sexta Jornada de Agroecologia da Bahia protesta contra as outorgas de água do governo estadual ao agronegócio.
– E o que fazer diante desta conjuntura? Quais seriam os maiores desafios?
Nossos mais velhos e nossas mais velhas tem explicado que a Terra e o Território é o início, o fim e o meio, como dizia Raul Seixas. Em que sentido? Falamos o início porque quem não possui terra e está marginalizado na sociedade precisa entender de uma vez por todas que Terra é poder. Que melhor do que direitos é meios de produção, pois ali nós podemos gerar riqueza e construir nossa vida com mais independência. Quem está na Terra precisa fortalecer a consciência sobre o quão importante é a vida e a geração de riqueza desde ali. Que esta riqueza não é só do capital, mas da geração de vida, de conservação dos biomas, de produção de água e de oxigênio porque nossa visão de presente inclui o futuro de nossas crianças, dos futuros filhos delas e dos filhos de seus filhos. A Terra é o meio porque é a condição pela qual conseguimos nossa luta. Quem irá financiar nossa luta? Os capitalistas do estrangeiro que se acham filântropos de lutas, mas possuem largo histórico de sabotagem da radicalidade, que possuem interesses geopolíticos de desestabilizar governos e ampliar suas margens de lucro com nossas lutas? Não acreditamos neste caminho. Nós devemos autogerir nossa luta com nossos esforços e com a solidariedade dos companheiros que longe da Terra podem nos apoiar. Mas, o fundamental vem da riqueza gerada na Terra. Então, ter acesso à Terra é conseguir financiar a luta pelo enfrentamento ao latifúndio, ao capitalismo, ao racismo. É neste sentido que a Terra é o meio de alcançarmos nosso objetivo. E, então, a Terra também é o fim porque quando avançarmos e vencermos o latifúndio, teremos condições de trazer mais irmãs e irmãos humilhados em beiras de estradas, periferias atacadas cotidianamente pelo sistema de segurança, e construir nossos grandes quilombos, aldeias, territórios de povos livres. O fim é o território com autonomia, com condições de disputar a política sem baixar a cabeça, sem pedir merenda, sem pedir esmola. E é aqui que reside um dos maiores desafios. Muita gente nossa se acostumou com uma política de reivindicação de direitos. De buscar melhorar as condições de vida e a postura da República. Então é um pedido de uma nova política pública aqui e outra ali. É isso que Mestre Joelson chama de merenda. Ele fala que seus mais velhos dizem que quem muito merenda acaba não almoçando. O que ele quer dizer? Que o Estado nos dão estas políticas públicas para não nos dar poder, ou seja, para não nos dar Terra. Então, há muita gente que ainda crê excessivamente que vai conseguir melhorar um pouquinho hoje e amanhã e não aposta mais em construir desde a Terra e o Território a própria luta política com autonomia. O desafio, portanto, é avançar na necessidade de aliar a vontade por mudanças à construção de uma grande luta, de uma aliança ávida por derrotar o latifúndio custe o que custar, pois é isto que eles estão fazendo conosco. Então, há um chamado para esta luta. Este chamado, contudo, não é um chamado por amor, é um chamado pela dor. A destruição ambiental, as queimadas, a fome que galopa em nossa direção, tudo isto tem despertado muita gente para um outro nível de consciência. E para isso há que entender: nós não vamos lutar todos juntos, sob a mesma bandeira. As diferenças são muito concretas no processo organizacional. Então, há que saber construir alianças na ação. Pois, sem prática as diferenças que temos nos separarão, porém na ação real, as diferenças acabam se apoiando para a realização da tarefa. Aqui falamos sempre um ditado atribuído aos povos Malês e que cabe para esta reflexão: paz entre nós, guerra aos nossos senhores!