Opinião da Resistência Popular Estudantil – RJ
Para compreendermos a profundidade das intencionalidades ocultas dessas conversas que se desdobram no golpe de 2016 e a operação Lava-Jato, precisamos olhar para além do cenário nacional e entender um pouco da geopolítica recente e suas implicações. O governo petista, mesmo mantendo fortes relações econômicas com os Estados Unidos, governou no sentido de se afastar de um alinhamento ideológico com o eixo Casa Branca – Wall Street e construir iniciativas voltadas à multipolaridade e ao fortalecimento do Brasil, enquanto potência regional e global. Isso é exemplificado pelo fortalecimento do Mercosul, a criação da Unasul, Celac e dos BRICS, assim como pela redução expressiva da importância da Organização dos Estados Americanos (OEA), bloco alinhado aos Estados Unidos. Apesar disso, manteve-se a função histórica do país dentro da divisão internacional do trabalho, a saber, agroexportadora. Nesse sentido, a China se torna um grande parceiro econômico do Brasil e este o segundo país latino-americano que mais recebe investimentos chineses, ficando atrás somente da Venezuela. Esse expressivo crescimento da relevância chinesa na economia e na infraestrutura de outros países não se restringiu à América Latina, se fazendo presente também na África e na própria Ásia, sendo uma manifestação do poderio econômico do bloco euro-asiático, encabeçado por Rússia e China, na disputa geopolítica com o Ocidente, principalmente Estados Unidos e Europa. Essa inversão na correlação de forças vem ocorrendo desde os anos 2000 e a própria construção do BRICS, com planos de um Banco de Desenvolvimento próprio, assim como uma nova moeda a ser utilizada nas transações em substituição do dólar, mostra a intenção desses países de não ficarem a reboque de uma potência que, ainda que possua grandíssimo poderio bélico como demostração de força nos conflitos pela hegemonia global, se mostra cada vez mais decadente economicamente.
Na politica interna dos EUA, há um crescente desgaste das guerras de rapina sucedidas pós-2001, caminhando, ao longo desses anos, para a quebra do consentimento dos falsos motivos proferidos pelos senhores da guerra de implementar a “Paz e a Democracia” no Oriente Médio, visto e denunciado nos órgãos internacionais, aumentando seu descrédito político. Com isso, as guerras imperialistas norte-americanas de intervenção direta são derrotadas e se esgotam como modelo tático. Desde grandes prejuízos militares e financeiro para o Estado, até as fracassadas tentativas de consolidar políticos alinhados aos EUA no Oriente Médio, com visível perda de credibilidade e protagonismo político no cenário global, vide sua derrota na Síria, os EUA adota outras estratégias. Mantendo sua voracidade, a águia americana volta seus olhos e esforços de pilhagem para o que considera ser seu quintal: a América Latina. Portanto, não seria mais tolerado governos que desafiassem sua soberania no continente, seja pelo fortalecimento do bloco euro-asiático, seja pela importância cada vez maior dos recursos estratégicos latino-americanos na disputa econômica global. A floresta amazônica, o Aquífero Guarani, o pré-sal brasileiro e o petróleo venezuelano estão na ordem do dia da agenda imperialista norte-americana. Nesse contexto, o império utiliza uma tática relativamente nova nas guerras e intervenções militares, apareceu pela primeira vez nos manuais militares dos Estados Unidos em 2010, mas que já foi amplamente usada desde então, chamada de Guerra Hibrida. A Guerra Híbrida é a união da tática utilizada nas revoluções coloridas do início do século em países árabes, com a guerra não convencional, entendida como qualquer tipo de força não oficial. Esse tipo de guerra pretende desestabilizar política e economicamente um Estado-alvo de forma indireta, fomentando por meio de agentes e redes sociais conflitos internos nos países, que podem ser étnicos, religiosos, culturais, sociais etc. Essa desestabilização, que pode variar desde protestos rasos até um processo de guerra civil, se bem-sucedida, pode levar a um golpe ou renúncia do dirigente considerado hostil aos interesses norte-americanos ou até insuflar movimentos separatistas no território. E é justamente a aplicação dessa tática no contexto brasileiro que permitiu o golpe brando que afastou Dilma Rousseff, e consequentemente o Partido dos Trabalhadores do poder político, sendo a operação Lava-Jato, iniciada em 2014, a principal ferramenta lawfare utilizada. Não por acaso, como divulgado pelo Wikileaks, o homem a frente da operação, ou melhor uma das torres do tabuleiro, que chegou a ser considerado herói pela classe-média anti-petista, Sérgio Moro, participou de uma conferência produzida pelo Departamento de Estado norte-americano que, supostamente, pretendia consolidar a aplicação bilateral de leis e práticas de contraterrorismo, contando com a presença de diversos outros juízes e policiais federais. A conferência, chamada de Projeto Pontes e ocorrida em 2009, terminou com a conclusão da necessidade de cursos de aprofundamento sobre o tema, os quais seriam fornecidos nas capitais de outros estados brasileiros. Em 2010, divulgaram documentos que mostravam a insatisfação das petrolíferas americanas por terem ficado de fora das negociações do pré-sal brasileiro, além da promessa do tucano José Serra de mudar as regras caso fosse eleito. A mesma organização, Wikileaks, divulgou em 2013 documentos ultrassecretos da NSA, Agência Nacional de Inteligência do governo norte-americano que revelavam todo um sistema de espionagem dos emails, celulares, conversas trocadas entre a, na época presidenta, Dilma Rousseff e seu círculo mais próximo, como assistentes pessoais, assessores, embaixadores, entre outros, selecionando os principais alvos a serem espionados e elencando um nível de prioridade nas informações maiores dos que as advindas da Alemanha e França.
Esses sigilosos documentos, que revelam um pouco das políticas imperialistas disfarçadas de diplomacia dos Estados Unidos, já nos alertavam suficientemente bem sobre a possibilidade de investidas dos EUA na política brasileira a fim de garantirem seus objetivos. A principal dessas investidas foi a Lava-Jato, que se aproveitou do histórico descontentamento da população com o sistema político brasileiro, surfando na onda da luta anticorrupção. Promovendo, concomitantemente à operação, uma série de movimentos políticos (MBL, Vemprarua etc), midiáticos, jurídicos, além de provas e processos que transcorriam ao arrepio da lei, sendo alguns inconstitucionais e ilegítimos, como o vazamento de informações sigilosas dos processos para a mídia, assim como a divulgação de conversas privadas entre Dilma e Lula, teatralmente interpretado pelos ancoras da Globo. Entre tantas outras ferramentas, se concretizou o golpe, acabando de vez com 13 anos de conciliação de classes, garantindo a continuidade e celeridade necessária do ajuste fiscal – iniciada em 2015 com Joaquim Levy, ex-ministro da Fazenda de Dilma – para a crescente acumulação de riquezas dos rentistas. Também garantiu, em 2018, a eleição de um candidato muito mais subserviente aos interesses
norte-americanos, grande entusiasta de políticas ultraliberais que poderia levar a cabo o Estado Policial de Ajuste, com certo apoio das classes altas e médias da população. Essa subserviência já ficou escancarada, seja em gestos simbólicos como bater continência em presença de autoridades do governo estadunidense, seja na falta de reciprocidade e desequilíbrio na balança em prejuízo para o Brasil no encontro de Bolsonaro com Trump. Ao que tudo indica, no governo proto-fascista de Bolsonaro, os imperialistas estarão com o terreno livre para saquear quantas riquezas acharem necessárias sem precisar derramar uma gota de sangue de seus soldados.
O material divulgado pelo Intercept, que promete trazer ainda mais escândalos, de acordo com o jornalista Glenn Greenwald, vem no sentido de reforçar esse caráter farsante, partidário e ideológico da operação Lava-Jato, uma vez que explicita motivações pessoais dos procuradores em tirar o PT do poder executivo, assim como conversas ilegais entre o promotor Daltan Dallagnol e o juiz Sérgio Moro, ou seja, entre a parte acusadora e a parte responsável por julgar o caso. Outras informações já tinham sido divulgadas nesse sentido, como a conversa de Romero Jucá sobre o acordão entre políticos e o Supremo para estancar a sangria das investigações, além do vídeo de Kenneth Blanco, divulgado em 2017, que apontou para os benefícios do fornecimento informal, e, portanto, ilegal, de informações por parte da procuradoria geral do Departamento de Estado norte-americano aos procuradores brasileiros
responsáveis pela Lava-Jato. Enfim, não é uma, nem duas, nem três o número de evidências que nos levam a concluir a interferência direta dos EUA nos processos políticos que se desenrolam desde 2014 no Brasil, e a importância da Lava-Jato como principal ferramenta dessa guerra híbrida, a fim de consolidar o imperialismo norte-americano na América Latina.
Vale ressaltar, contudo, uma análise rápida sobre o governo petista. Apesar de evidente o golpe juridico-parlamentar de 2016, é necessário apontar que o Partido dos Trabalhadores pouco fez no sentido de mudanças estruturais na sociedade brasileira. Seja no enfrentamento das elites políticas, agrárias e financeira, que são historicamente submissas ao imperialismo do Tio Sam, seja em políticas que realmente garantissem algo de sólido e permanente à classe trabalhadora ou ainda com um trabalho de base que permitiria o desenvolvimento de uma consciência de classe e a mobilização dos trabalhadores na defesa de seus interesses. Pelo contrário, o governo de coalizão defendido pelos dirigentes petistas, que preconizava uma aliança com as classes dominantes, foi um dos responsáveis pela preparação do terreno para a construção do Estado Policial de Ajuste que vivemos hoje. Agente direto de uma série de ofensivas aos direitos dos trabalhadores, desde o aprofundamento da
privatização do ensino superior, cortes bilionários na educação, decretos como o da Garantia de Lei e Ordem, Lei Anti-Terrorismo, alianças políticas espúrias, corrupção, manutenção do mecanismo de extorsão de riquezas nacionais, conhecido como dívida pública, até a convocação de grandes representantes da elite para compor o governo, como Henrique Meirelles e Kátia Abreu, isso só para citar alguns dos ataques. Em outras palavras, os governos petistas nunca apontaram para uma real mudança nas estruturas excludentes e repressivas da sociedade brasileira, na verdade seguiram com a prática neoliberal, um pouco mais tímida talvez. Esse neoliberalismo envergonhado pôde ser garantido pelo ciclo positivo das commodities exportadas para a China com preços elevados, permitindo o crescimento econômico de diversos países latino-americanos, incluindo o Brasil. Contudo, passado o período desse boom e também instaurada a crise de 2008, o cenário logo se modifica e as mesmas elites com quem o Partido dos Trabalhadores se aliaram, se organizam para tirá-lo do poder e intensificar o caráter exploratório e agressivo das inerentes as políticas neoliberais, destruindo em poucos anos os parcos avanços conquistados em mais de uma década.
Sabemos que nunca vivenciamos um Estado Democrático de Direito, a nós, os debaixo, nos reserva a mão pesada do Estado Policial de exceção permanente. Agora precisamos entender o desdobramento dos fatos expostos, sua pretensa naturalização e normalização do atual estado de coisas que estamos vendo por parte dessa corja subserviente. Não é a toa que a primeira experiência neoliberal foi no regime militar, a saber, Chile de Pinochet em meio a bipolaridade global. Não é a toa que estamos vendo a crescente militarização da vida social e o soerguimento do Estado Policial ainda mais forte, com seus pacotes anti-crime, liberação das armas etc, em meio ao mundo cada vez mais multipolar. No neoliberalismo é sempre muito difícil de manter o verniz democrático, levando ao limite as instituições burguesas, revelando, não a sua aparência teórica de Estado Democrático de Direito, mas sua essência prática de Estado de exceção e violência organizada contra os que ainda depositam sua fé nelas. Com isso, nossos inimigos preparam-se para o plano B com o iminente esgarçamento dos 31 anos de Nova República. Cabe a nós nos prepararmos para a única saída possível do cenário
vindouro e da miséria instalada.
Fontes:
Foto destacada: Vitor Texeira
https://exame.abril.com.br/economia/por-que-o-brasil-surfou-na-onda-das-commodities/
https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/golpe-como-elemento-da-guerra-hibrida/
https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/o-brasil-no-epicentro-da-guerra-hibrida/
https://wikileaks.org/Nos-bastidores-o-lobby-pelo-pre.html
https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/06/relacao-sergio-moro-eua.html
https://csalignac.jusbrasil.com.br/noticias/362318528/wikileaks-revela-treinamento-de-moronos-eua