29 de setembro de 2017, Bruno Lima Rocha
O exercício de hegemonia da Superpotência vem do monitoramento e punição discricionária sobre a arquitetura financeira mundial através da qual sua oligarquia, retroalimentada por um sistema de portas giratórias entre os aparelhos de Estado e os componentes do Sistema do BIS e complementares, elege alvos de forma discricionária, atuando a partir do interesse direto de grupos de pressão dos EUA.
É urgente interpretar tanto a situação do capitalismo financeiro em sua etapa contemporânea, como as formas não militares de exercício da hegemonia – hoje desafiada – da Superpotência no Sistema Internacional (SI). Precisamos analisar a perda de perspectivas da semiperiferia em termos da promoção de um desenvolvimento capitalista autônomo num ambiente de economia globalizada com dominância financeira e gestão hegemônica da potência principal da arquitetura do Sistema Monetário Internacional.
Este ambiente, ainda que nos períodos de boom funcione expandindo o crédito (tal foi o caso brasileiro), nos períodos de instabilidade penaliza de formas variadas a periferia. Para tal é primordial conhecer a “livre mobilidade” de capitais, preconizado pela ideologia neoliberal e viabilizado pela existência dos chamados paraísos fiscais e formas de lavagem de dinheiro. Estas só não são “toleradas” pela potência hegemônica quando é do interesse dos capitais posicionados junto a Washington impedirem a utilização desse expediente pelos capitais periféricos. Escolhendo como e a quem punir, trata da capacidade única repressiva exercida pelos Estados Unidos da América (EUA) como forma de projeção permanente de seus excedentes de poder, impedindo qualquer política de controle total dos fluxos pelos países periféricos. Isso significa não apenas que estes se tornem válvula de escape para os capitais forâneos, como também restringe o uso de políticas direcionadoras do capital nacional à produção, não gerando assim trabalho vivo e incremento de renda nacional.
Tal modelo de acumulação só é possível através da atual de mobilidade de capitais voláteis e evasão de riquezas, e estes só operam com o pleno funcionamento dos chamados paraísos fiscais – Jurisdições Secretas – relacionados tanto com a criação de holdings controladoras e empresas fantasmas, de tipo offshore. Ao mesmo tempo, a discricionariedade punitiva impera. O uso seletivo do monitoramento, vigilância e repressão da Superpotência proporciona-lhe uma vantagem competitiva absoluta em relação aos demais países, em especial os emergentes liderando a Semiperiferia. Através do complexo industrial militar, em especifico no sub-complexo de tecnologia, telemática, telecomunicações e vigilância eletrônica, os EUA conseguem antecipar-se na escolha de alvos, elevando sua capacidade punitiva e de subordinação de possíveis concorrentes (conglomerados empresariais e/ou empresas estatais de capital misto) no controle de cadeias de valor globais.
De um ponto de vista sistêmico, a arquitetura financeira mundial e o emprego do complexo de vigilância eletrônica, evidenciado com a denúncia do Sistema PRISM, são conjuntos superpostos. Tal sistema equivale à adequação de projeção de poder mundial dos EUA, iniciado formalmente em 2002, adequada à etapa financeira do capitalismo globalizado, reconhecendo que os parques de manufatura haviam se deslocado para o eixo Ásia-Pacífico e as áreas em disputa estão na Semiperiferia do capitalismo do século XXI.
Se analisarmos o modus operandi do sistema das Jurisdições Especiais, fator central na arquitetura financeira mundial – e ao contrário do senso comum, observaremos que não se trata de um conjunto de “ilhas isoladas” – vê-se a conformação em sua maioria, de territórios associados ou diretamente pertencentes aos países centrais do capitalismo global (China incluída). Portanto, caso houvesse real vontade punitiva por parte dos departamentos de Estado, Defesa e Justiça dos EUA, o alvo permanente seria observar o fluxo financeiro mundial através das práticas e usos das Jurisdições Especiais, incluindo as operações ao descoberto do chamado shadow banking ou sistema bancário-sombra (como no mercado colateral de derivativos). Vale ressaltar; as atividades complementares bancárias complementares não reguladas formam o “shadow banking” e são a possível futura bolha a ser deflagrada no SI.
Também contrariamente do que diz o senso comum e a legislação dos países membros do G20 financeiro (como a do Brasil, por exemplo), o foco na punição em “lavagem de dinheiro” como escoamento de ativos de procedência duvidosa não é o fator central de acumulação e depósitos destas Jurisdições – evidenciando assim o emprego discricionário das investigações. Logo, podemos afirmar sem exagero algum, que ao focar na lavagem de dinheiro, as legislações afins e oriundas de determinações da Superpotência reproduzem o alvo limitado nas cadeias de valor com origens duvidosas, o que representaria uma ínfima parcela dos ativos circulantes através do planeta.
Abismo, hipocrisia e a autarquia da jogatina no Brasil
O abismo é profundo e a hipocrisia também. Por exemplo, o excesso de liquidez circulante e a recuperação das economias dos países do centro do capitalismo com perdas e reposições da ordem de Usd 15 trilhões de dólares (após a bolha imobiliária e derivativa de 2007-2009), não gerou emprego vivo ou renda nacional. Ao contrário.
Vale trazer a observação de Belluzzo e Galípolo (ver https://goo.gl/8dwJ6W): “… a expansão da liquidez financia a aquisição de ativos já existentes, como a recompra das próprias ações ou o aumento de recursos líquidos, a fim de acumular ativos financeiros e reforçar balanços, em vez de financiar a aquisição de bens e serviços. Novas bolhas de ativos.”
Não seria um exagero ao afirmar que estamos em fase de extração de riquezas como na versão sofisticada de uma etapa de acumulação selvagem. Há incongruência entre geração de riqueza – em escala mundo e de base mutável – e aumento da renda nas sociedades. Ainda conforme Belluzzo e Galípolo: “A riqueza agregada é o estoque de direitos de propriedade e títulos de dívida gerados ao logo de vários ciclos de criação de valor. A renda nacional é o fluxo de renda criado pelo investimento em nova capacidade produtiva e no consumo das famílias, o próprio valor em movimento. As injeções de liquidez concebidas para evitar a deflação do valor dos ativos já acumulados não estimularam a criação de valor em movimento, mas incitaram e excitaram a conservação e a valorização da riqueza na sua forma mais estéril, abstrata.”
No Brasil, a alta gerência e administração do Banco Central representam esta porta giratória não apenas para a banca operando no país, como para o capital parasita e volátil transnacional que fatura em cima das operações de rolagem da dívida e uso de “poupança” externa. A riqueza agregada pelos financistas – sempre no limite da responsabilidade e colocando a população no prego – não tem relação alguma com a renda nacional, o trabalho vivo ou a alocação de recursos para políticas públicas, tanto como forma de atenuar as desigualdades como dinamizar ou redistribuir a economia não drenada pelos parasitas da jogatina. Qualquer proposta de governo que não se atreva a domar o Banco Central, subordinando-o à soberania popular vai estar simplesmente repetindo mais do mesmo e ficando à mercê de externalidades ou da capacidade de arranjo com o andar de cima nacional, marcado pelo neocolonialismo e a perene ameaça de “ir para Miami”, evadindo ainda mais as riquezas já sugadas em nossa sociedade. Assim, a única possibilidade real de que isso venha a acontecer não é a adesão incondicional ao pacto interno ou ao arranjo pela tal da governabilidade, e sim justo ao contrário, com a independência de classe e a capacidade decisória dos movimentos sociais e populares por em cima do governo de turno ou da candidatura do momento.
Bruno Lima Rocha é professor de relações internacionais e de ciência política (www.estrategiaeanalise.com.br para textos e colunas de áudio / estrategiaeanaliseblog.com para vídeos e entrevistas longas no rádio / blimarocha@gmail.com para E-mail e Facebook).